Responsável pela primeira condenação de um ex-presidente do Brasil por corrupção e pela prisão de políticos e empresários poderosos na Operação Lava-Jato, o juiz federal Sergio Moro está preocupado com a inércia do Executivo e do Legislativo no combate à corrupção. Ele aponta a possibilidade de mudança na jurisprudência que prevê o cumprimento de pena após condenação de segunda instância — o STF deve discutir se revê o entendimento nos próximos meses — como “tremendo retrocesso”.
Moro critica também a falta de punição mais rigorosa para quem comete o crime de caixa 2, que ele define como uma “trapaça eleitoral”, e a existência do foro privilegiado, que para o magistrado deveria ser extinto. Diante de um cenário que pode levar à impunidade, Moro sentencia: “A corrupção, evidentemente, não vai acabar”. Mas pondera: “É muito difícil voltar ao status quo anterior”. Na opinião do magistrado, a população não tolera mais certos comportamentos, como a corrupção, e está mais vigilante contra malfeitos. “O preço da integridade é a eterna vigilância” dos governados, declara.
A Lava-Jato conseguiu reduzir a corrupção no Brasil ou apenas a tornou mais visível?É muito difícil dimensionar a corrupção. Não se sabe quantos casos reais existem e o que se tem, normalmente, são dimensionamentos da percepção da corrupção. Nos índices da Transparência Internacional, o Brasil não se encontra numa posição muito tranquila. O que os casos judiciais revelam é que a percepção que tínhamos, de que a corrupção era muito grande no Brasil, de fato é real. São fatos graves e grandes. A corrupção evidentemente não vai acabar, mas se a impunidade estimula a corrupção, a diminuição da impunidade deve acarretar a diminuição igualmente da corrupção. Mas seria oportuno que houvesse reformas mais gerais por parte do governo, por parte do Legislativo, contra incentivos e oportunidades de corrupção. E isso é algo que está quase totalmente inerte.
O ano de 2018 será o quarto consecutivo de investigações. Novos casos de corrupção terão fôlego para escandalizar os brasileiros ou a sociedade já encara como “a regra do jogo”?Esse é um efeito colateral negativo, de a revelação de todos esses casos levar a um certo entorpecimento da sociedade brasileira. Mas casos mais recentes, amplamente divulgados, mesmo depois de tudo que aconteceu na Lava-Jato, trouxeram grande sentimento de repulsa da população. O político relacionado ao apartamento onde havia R$ 51 milhões, por exemplo. Me pareceu que a repulsa, quase três anos depois do início da Lava-Jato, revela que o repúdio continua grande.
As investigações mostraram que os principais partidos e muitos políticos se envolveram em algum tipo de irregularidade. Como o senhor entende a distinção entre caixa dois de campanha e corrupção?Tanto o caixa 2, que seria uma doação eleitoral irregular não contabilizada, como a corrupção, são crimes. Ambos têm de ter uma resposta institucional. O que é certo é certo, o que é errado é errado, e as pessoas que se envolveram sabiam que era ilegal e devem sofrer as consequências.
O caixa 2 ficará apenas no âmbito da Justiça Eleitoral?É um crime mal regulado na Legislação brasileira, está previsto no artigo 350 da Lei Eleitoral e é tratado como se fosse uma fraude documental. No fundo ele significa uma trapaça nas eleições e deveria ser punido mais rigorosamente.
Como o Brasil pode superar esse cenário, onde a corrupção se espalhou por quase todo o governo?É importante que os processos judiciais funcionem e sejam efetivos, que não tenhamos impunidade. Mas, mais do que isso, precisávamos de um discurso firme por parte das nossas lideranças políticas contra a corrupção, que fossem acompanhados de ações consistentes com esse discurso. Isso envolve não apenas mudança na legislação processual e penal, mas para diminuir incentivos e oportunidades de corrupção. Também o governante dando exemplo de um comportamento de honestidade. Porque, quando não existe isso, acaba desincentivando as pessoas comuns, a sociedade em geral, de se comportarem de maneira honesta.
O STF tem sido palco de divergências e polêmicas em relação aos investigados com foro privilegiado. O senhor esperava mais das investigações no Supremo?Por melhor que sejam as boas intenções dos juízes, magistrados e ministros envolvidos, esses processos são complexos e seguem melhor perante os juízes comuns. A primeira instância tem melhores condições de trabalhar esses processos do que os tribunais superiores, normalmente assoberbados dos casos mais diversos. Uma lição que tem que se extrair disso: se o foro privilegiado funciona na prática como blindagem de agentes públicos, ele deveria ser simplesmente eliminado ou reduzido significativamente.
Como o senhor avalia o andamento das denúncias?Se pensarmos num precedente importante, que foi a ação penal 470, o Mensalão, em que pese todos os méritos do STF, o caso levou anos do recebimento da denúncia até o julgamento. Seria melhor se tivesse levado menos tempo. Nos novos casos, o que se tem é o padrão do Supremo. O ministro Fachin tem feito um bom trabalho, mas o ritmo dos tribunais superiores é mais lento do que o das instâncias ordinárias.
Uma decisão sua — a condenação do Lula — pode deixar fora da eleição um presidenciável importante. Como o senhor se sente diante da possibilidade de ter influenciado diretamente a disputa de 2018?O papel do juiz é cumprir a lei. O juiz cumpre a lei e julga os processos segundo as leis. As consequências fora do processo não são da responsabilidade do juiz. Se eventualmente essa situação acontecer, não foi porque o juiz assim decidiu. Alguém cometeu um crime, a lei prevê inabilitações e isso pode acontecer.
O ex-presidente Lula, que foi condenado a nove anos e meio de prisão pelo senhor, faz criticas contundentes à investigação e diz que é vitima de perseguição política. Qual sua resposta a essa crítica?Eu já prolatei a sentença e tudo que eu tinha a dizer sobre o caso está nela. Hoje está submetida a recurso de apelação. Os desembargadores do TRF são pessoas absolutamente sérias e eles podem confirmar ou reformar a sentença. Estou absolutamente tranquilo quanto ao que eu decidi e ao que eles podem decidir, seja confirmando ou reformando a sentença.
Qual é o risco de o poder político encerrar as investigações ainda em andamento?Não é tão simples assim uma ação política que enterre as investigações. E existe uma democracia que é cada vez mais informada e mais demandante. Eu acho que, embora sob a sombra do retrocesso, é muito difícil voltar ao status quo anterior. As pessoas não toleram mais certos comportamentos da parte de seus governantes e querem que as instituições deem resposta. Parafraseando “o preço da liberdade é a eterna vigilância”, eu diria “o preço da integridade é a eterna vigilância” da parte dos governados. Riscos existem, mas isso não significa que a sociedade vá permitir retrocessos.
O senhor vê risco de retrocesso na legislação anticorrupção?O que me preocupa de mais imediato, nesse esforço anticorrupção, é que houve uma decisão muito importante do Supremo Tribunal Federal que foi a que prevê que a partir de uma condenação em segunda instância se pode executar a pena. Vejo com preocupação alguma sinalização de que o Supremo poderia rever esse precedente. Eu entendo que esse precedente, com todo respeito a quem pensa o contrário, deveria ser considerado um ponto de não retorno. Seria um tremendo retrocesso. E de certa maneira ele ilustra uma certa zona de incerteza. O Brasil vai caminhar para a frente, vamos buscar construir um ambiente de maior integridade na gestão da coisa pública ou nós estamos aqui pensando em dar passos para trás e retomar aquela impunidade como regra que tínhamos não há muito tempo atrás? Seria terrível se algo desta espécie acontecesse.
25 de dezembro de 2017
Cleide Carvalho
O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário