Em nossa série de fact-checking dedicada a Ciro Gomes, não poderíamos deixar de analisar o que ele tem a dizer sobre Previdência. Muitas das afirmações que analisaremos podem ser vistas nesta entrevista ao Infomoney. Pretendemos demonstrar que Ciro, embora tenha uma compreensão parcial do assunto, recorre à desonestidade para ofuscar o debate e não sabe como resolver o problema.
“O problema da Previdência hoje deriva, em grande parte, da demografia e do fato de as maiores pensões levarem mais da metade das despesas.”
Classificação: falso
Ciro está correto ao afirmar que o problema da Previdência é reflexo do envelhecimento rápido da população, mas o gasto com pensões, embora alto, na casa de 3% do PIB, não chega à metade do gasto previdenciário total, que equivale a 13% do PIB. E isso inclui todas as pensões, não as maiores, às quais Ciro se refere.
A maior despesa previdenciária, que atingiu 8% do PIB e, portanto, mais da metade do gasto total, é do Regime Geral de Previdência Social, ou seja, do INSS.
“A grande questão básica hoje é que, se você tem as receitas destinadas pela lei versus as despesas para a Previdência, não há déficit.”
Classificação: falso
Antes de entrar em detalhes, é preciso esclarecer uma coisa: é irrelevante para a discussão de reforma previdenciária se há ou não déficit na Previdência. O déficit (ou, se o caro leitor preferir, superávit) de 2016 está dado, independentemente de haver reforma ou não. O que interessa ao debate é a evolução das contas previdenciárias.
O assunto desvia a atenção do que realmente interessa – a saber, que a Previdência é uma bomba relógio, uma vez que a população está envelhecendo rapidamente. A favor de Ciro, deve-se ressaltar que ele não usa este ardil para negar a necessidade de uma reforma. Feitas as ressalvas, vejamos por que Ciro está errado.
Ciro defende que não há déficit na Previdência e, para prova-lo, mostra que se somarmos todas as receitas de contribuições (CSLL, PIS/PASEP e COFINS) à receita previdenciária e subtrairmos as despesas, o resultado é positivo – um superávit, portanto. Sustenta, ainda, que só se fala em déficit porque parte da receita das contribuições foi desvinculada da Seguridade Social para pagar juros da dívida.
O problema com esta tese é que as contribuições previdenciárias são inferiores aos benefícios concedidos, como consta da página 7 do Relatório Resumido de Execução Orçamentária.
Adicionar esta ou aquela contribuição social é apenas uma forma obtusa de dizer que a Previdência absorve receitas não previdenciárias à custa de outras atividades governamentais – e não há lei ou definição que mude o fato.
Quando Ciro afirma que devemos adicionar as contribuições à receita previdenciária, está tacitamente dizendo que as as outras áreas da Seguridade, como assistência social e saúde, devem financiar a Previdência, como notou Pedro Fernando Nery, um consultor legislativo do Senado. E mais, ao somar receitas desvinculadas pela Desvinculação de Receitas da União (DRU), Ciro exige que áreas além da Seguridade, como educação, transporte, segurança pública e outras também financiem o rombo.
Aliás, como a DRU tornou-se uma espécie de bode expiatório, julgamos necessário desmentir alguns “fatos alternativos” sobre o tema. Em primeiro lugar, a DRU não incide sobre contribuições previdenciárias, apenas contribuições sociais. Em segundo lugar, o total desvinculado pela DRU foi R$ 91,7 bilhões em 2016. Para referência, apenas o déficit (em sua acepção mais comum) do Regime Geral de Previdência Social, que atende os trabalhadores do setor privado, foi de R$ 138,1 bilhões no mesmo ano, de acordo com o Relatório Resumido de Execução Orçamentária. Desta forma, afirmar que na ausência da DRU não haveria déficit está errado por todos os motivos supracitados.
Ainda em relação à DRU, mas fugindo da Previdência, a receita desvinculada não tem sido usada para pagamento de juros, visto que o governo federal não acumula superávits primários desde 2013 e, portanto, não quita juros da dívida.
“Todas as vezes em que se reflete sobre um problema complexo no Brasil, os oportunistas a serviço dos interesses prevalecentes no país acabam reduzindo opiniões que deveriam ser complexas. (…) Qualquer pessoa que tenha um mínimo de decência e não esteja a serviço da manipulação de informações, vê [que não não existe déficit].”
Classificação: extremamente controverso
Esse é um artifício retórico já analisado no último texto desta série e muito frequente no discurso de Ciro: tratar seus opositores como malucos, desonestos e isolados, enquanto ele seria a voz sensata e desinteressada do debate.
O fato é que o déficit da previdência tem um conceito consagrado há décadas, que Ciro simplesmente ignora. A lista de “oportunistas a serviço dos interesses prevalecentes”, que “não tem um mínimo de decência e estão a serviço da manipulação” inclui:
Dilma Rousseff
Tribunal de Contas da União
Instituição Fiscal Independente (Senado)
Fábio Giambiagi, o economista brasileiro com mais livros publicados sobre o tema e servidor público
Antonio Palocci
José Dirceu
Marcos Lisboa, presidente do Insper e secretário de política econômica no governo Lula
Marcio Holland, professor da FGV-SP e secretário de política econômica no governo Dilma
Fernando Haddad, que calculava sob o mesmo método o déficit municipal em São Paulo
A lista considera basicamente instituições do Estado brasileiro responsáveis pelas contas públicas e políticos do PT, mas poderia ser muito maior. Quase todos reconhecem a existência do déficit. Fernando Haddad, a quem Ciro já convidou para ser seu vice em 2018, seria oportunista, indecente e manipulador, segundo Ciro.
O uso dessa ferramenta de argumentação depende, é claro, de um juízo de valor, não podendo ser tratado como falso. Mas é importante informar ao leitor a desonestidade deste argumento – e sua recorrência no discurso de Ciro.
“[Falando sobre idade mínima] A expectativa de vida no semi-árido do Nordeste chega a 62 anos. Um carvoeiro no interior do Pará também não [tem expectativa de vida de 65 anos].”
Classificação: extremamente controverso
Aqui há dois problemas. O primeiro é que Ciro usa a expectativa de vida ao nascer. Esta medida é inadequada à discussão, já que mortalidade infantil e mortes por causa da criminalidade entram nesta conta e a “puxam” para baixo. Embora ambos temas sejam sérios e mereçam atenção, uma criança que morra antes de completar cinco anos ou um jovem que seja assassinado não se aposentarão, seja qual for o regime.
Quando se quer saber por quanto tempo um aposentado gozará das aposentadorias, a medida apropriada para o debate é a expectativa ao se aposentar. A expectativa de vida de um brasileiro aos 65 anos, por exemplo, está em 18,4 anos – ou seja, espera-se que o vivente chegue aos 83,4 anos. Ciro, no entanto, fala muito claramente da expectativa no semi-árido do Nordeste. Não temos estatísticas neste nível de detalhe, mas, de acordo com Pedro Fernando Nery, a tempo de vida esperado na região Nordeste aos 60 anos é 81 anos (vide a gráfico 13 deste texto) – não muito diferente do resto do país, mesmo contando com aqueles que vivem nas regiões mais pobres do sertão nordestino.
Um segundo erro em que Ciro incorre ao atacar a proposta de idade mínima é que os trabalhadores mais pobres, sejam urbanos, sejam rurais, tipicamente se aposentam por idade mínima, não por tempo de contribuição, visto que frequentemente trabalham no setor informal. Desta forma, a imposição de idade mínima não os afeta.
“Acredito que devemos que evoluir do regime de repartição para o de capitalização. (…) A parte mais complexa disso é a transição de um regime para outro, mas há como fazer isso.”
Classificação: controverso
Diferentemente de outros que se opõe à proposta de reforma previdenciária, no entanto, Ciro reconhece a necessidade de alguma reforma e até mesmo de uma idade mínima de aposentadoria. Mais especificamente, ele propõe que se substitua o regime de repartição pública, em que os trabalhadores hoje pagam os benefícios dos aposentados de hoje, por um regime de capitalização, em que os trabalhadores poupam compulsoriamente parte de sua renda para pagar suas próprias aposentadorias.
Ciro diz na entrevista ao Infomoney que detalhou sua proposta no livro “O Próximo Passo: Uma alternativa prática ao neoliberalismo”. De fato, nas páginas 91 e 92, aponta o regime de Cingapura como o exemplo a ser seguido.
Não menciona, no entanto, como faria a transição. Em suas entrevistas, diz apenas que a transição seria difícil, mas factível. Convidamo-lo, então, a detalhar este aspecto de sua proposta, pois, como veremos em breve, ele é crucial.
Declaramos, pelo bem da honestidade, que a partir daqui traçaremos um cenário com base em hipóteses nossas, não uma proposta concreta de Ciro.
Suponhamos que Ciro seja eleito e decida implementar sua reforma previdenciária. Ele não poderia, por óbvio, deixar de pagar àqueles que já se aposentaram ou que contribuíram ao INSS – afinal, trata-se de direito adquirido ou parcialmente adquirido. Ademais, fazê-lo seria mais draconiano do que a proposta atual, à qual Ciro diz se opor.
Tampouco poderia exigir que novos ingressantes no mercado de trabalho paguem a aposentadoria daqueles que usufruem do sistema antigo, pois assim lhes daria direito a aposentarem-se pelo INSS e derrotaria o propósito de sua reforma.
Restaria impor uma divisão: aqueles que entrassem no mercado de trabalho antes da reforma contribuiriam ao INSS e por ele se aposentariam; aqueles que entrassem depois não teriam direito ao INSS, mas pagariam apenas a própria aposentadoria. Isso implica que as receitas previdenciárias diminuiriam, uma vez que o número de contribuintes começaria a cair à medida que eles se aposentam. Por outro lado, os efeitos sobre o gasto só se fariam sentir quando não houvesse mais ingressantes no INSS. Por fim, caberia ao governo cobrir a diferença até o último aposentado pelo INSS morrer. Como o próprio Ciro reconheceu, seria custoso, mas seria viável?
Agora pedimos a nosso leitor que esqueça nosso cenário hipotético por um instante e inspecione o gráfico abaixo: as projeções foram feitas sob a hipótese de que o regime atual se mantenha. Note as trajetórias de despesa e receita; o déficit representa o volume de receitas não previdenciárias que a Previdência absorverá do governo e, em última análise, da sociedade. Este gráfico sugere que, a não ser que se faça algo, a carga tributária crescerá sobremaneira e o Estado se reduzirá a uma máquina de pagar aposentadorias, levando, eventualmente, ao colapso fiscal do país.
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Imagine agora que Ciro implemente sua reforma com a transição que supusemos e as receitas previdenciárias diminuam como proporção do PIB, em vez de manterem-se constantes. Em última análise, o plano de Ciro apenas anteciparia o desastre. Com um gasto previdenciário alto e crescente, o governo não pode se dar ao luxo de abrir mão da receita previdenciária.
Tudo isso foi evidentemente construído sob nossas hipóteses, não uma proposta detalhada de Ciro. Não acreditamos, no entanto, que ele será capaz de criar um jeito de tornar sua reforma viável. De qualquer forma, nosso desafio permanece: de que forma pretende fazer a transição do regime de repartição para capitalização?
Ao cabo, a proposta de Ciro poderia fazer sentido vinte anos atrás, quando o país era mais jovem e o custo da transição não era tão alto; defendê-la hoje, entretanto, é irresponsável.
Em suma, Ciro Gomes demonstra entender que há um problema com a Previdência – o que é um avanço em relação a muitos políticos, reconhecemos -, mas não parece ter nada a adicionar à discussão além de “fatos alternativos” e soluções fantasiosas. Consideramos duas possibilidades: ou ele é sincero e não entende do assunto; ou ele não é sincero e suas afirmações não passam de retórica para vender-se ao eleitorado hostil à reforma.
Ambas atestam sua temeridade e nenhuma das duas traz bons augúrios. Como vimos recentemente, um candidato que promete algo e faz o oposto quando eleito terá uma gestão infeliz. E um presidente que não saiba identificar e resolver os problemas do país porá tudo a perder.
09 de setembro de 2017
Maurício Schwartasman
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