Numa de suas mais inspiradas composições, em parceria com Arnaldo Brandão, líder do grupo Hanói, Cazuza arranjou uma maneira de nos lembrar que o futuro está sempre repetindo o passado, como um museu de grandes novidades, embora o tempo não pare. Na verdade, Cazuza sempre se mostrou muito preocupado com as injustiças sociais, tinha vergonha de ser privilegiado. Quando ainda era jovem e morava na casa de seus pais, João e Lucinha Araújo, Cazuza recebeu a visita do cantor Orlando Moraes e lhe pediu desculpas ao amigo por se tratar de uma residência luxuosa, vejam como era simples e sensível. E não foi por acaso que compôs com o amigo Roberto Frejat aquela música pedindo uma ideologia para viver.
Se Cazuza ainda estivesse por aqui, a realidade do Brasil de hoje lhe seria ainda mais inspiradora. Na verdade, é como se presenciássemos a refilmagem de “Terra em Transe” em meio a uma conjuntura política corrupta e ensandecida, exatamente 50 anos depois da grandiosa obra de Glauber Rocha.
UM PAÍS CRIATIVO – O Brasil é altamente criativo, nenhum analista estrangeiro consegue entender nosso sistema de vida, totalmente “sui generis” e sem similar no resto do mundo. Fomos nós que criamos as escolas de samba, uma maneira surpreendentemente festiva de reunir e congregar todas as camadas da população. De repente, pobres, remediados e ricos, como num passe de mágica, podem se transformar em príncipes, escravos, artistas ou retirantes da seca, fantasiados e confraternizando entre si, porque todos são iguais no carnaval, vejam que invenção sensacional, precisamos ser assim o ano inteiro.
Não interessam as tendências ideológicas, essa bobagem que os homens lá do Velho Mundo criaram e que já não fazem sentido. Poucos percebem que o Brasil é o verdadeiro Novo Mundo, foi o local escolhido pelas civilizações de todos os continentes para se reunirem. É aqui que está sendo criada uma nova humanidade, totalmente miscigenada e sem os ranços de preconceito e ódio que caracterizam o único país parecido com o nosso, os Estados Unidos, que continuam a perseguir os imigrantes e não têm como se comparar a nós.
É certo que ainda somos pobres e esculhambados, mas um dia serenos inevitavelmente ricos e socialmente justos, é só uma questão de tempo.
ELES VÊM PARA CÁ – É o carnaval que encanta a maioria dos estrangeiros que continuam vindo para cá, para aprender conosco a buscar a felicidade. No grandioso desfile das escolas, é impossível deixar de perceber que os mais felizes são os pobres, que cultivam sorrisos permanentes, fazem questão de estar de bem com a vida, sem maiores falsidades.
Apesar da violência urbana, das balas perdidas, dos assaltos e dos riscos que correm, os estrangeiros insistem em visitar o Brasil, para aprender conosco essa lição de humanidade e convivência social entre ricos e pobres. Como assinalou há alguns anos o cineasta italiano Franco Zeffirelli, “o brasileiro é o último povo feliz do mundo”, e ele estava rigorosamente certo ao cunhar essa definição, qualquer pessoa pode notar.
Justamente por isso, as escolas de samba deveriam ser entendidas de outra forma, como instituições de um alcance mais amplo, porque na verdade são escolas de vida e de convivência social, nem interessa se continuam a ser liderados pelos bicheiros ou não.
LEMBRANDO PAULINO – Poucos sabem que esse congraçamento é coisa recente, começou há algumas décadas. E quem levou as elites para as escolas de samba foi o jornalista carioca Roberto Paulino. Quando ainda era jovem, foi administrar uma fábrica de componentes elétricos que seu pai, o célebre cirurgião Fernando Paulino, instalara na Mangueira, como investimento da família.
Paulino ficou amigo dos empregados, quase todos moravam na favela, e começou a frequentar as rodas de samba. Louro, de olhos azuis e morador da Zona Sul, acabou se tornando o primeiro presidente da Mangueira que não fazia parte da comunidade. Foi assim que tudo começou.
Certa vez, a escola não tinha dinheiro para desfilar e Paulino passou um cheque sem fundos na conta da fábrica, para comprar os tecidos das fantasias, e o pai teve de cobrir as despesas. É por isso que a memória do jornalista é tão cultuada na Mangueira. Sem perceber, Roberto Paulino estava acelerando uma evolução social revolucionária, cuja base hoje são as escolas de samba do Rio, cujo exemplo se disseminou pelo país inteiro.
###
NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Neste sábado, há o Desfile das Campeãs no Sambódromo. Ligue a TV e observe a passagem das escolas, para ver ricos e pobres, famosos e desconhecidos, todos juntos, lado a lado, ensinando como deve ser o mundo de amanhã. E eu, como comunista libertário, posso enfim antever e celebrar uma humanidade mais justa e igualitária, que terá de ser a realidade do futuro, com samba no pé e amor no coração. (C.N.)
03 de março de 2017
Carlos Newton
Nenhum comentário:
Postar um comentário