Com o encerramento dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio de Janeiro e, agora, terminadas as eleições, as autoridades governamentais, tanto estaduais como federais, já ensaiam desmontar o forte e bem sucedido esquema de segurança posto em prática em nossa cidade para atender tanto o "games time", como o pleito eleitoral, isto é, limitado pelo período dos dois aludidos eventos esportivos e das eleições, ocorridos praticamente em sequência.
O povo carioca, sobressaltado como sempre, já sente na pele o retorno da criminalidade de rua como um tsunami, que se aprofundará tão logo as forças federais levantem acampamento e retornem definitivamente aos seus postos de origem.
sociedade, os negócios e empreendimentos do Rio de Janeiro não mais se satisfazem com a efeméride de uma segurança destinada apenas aos "games times" dos inúmeros eventos internacionais aqui sediados; o Rio precisa sair da solução "para inglês ver" e dar ao seu cidadão a sensação perene de segurança, a saber, operar políticas de segurança pública corajosas e enfrentadoras que priorizem o "life time" em detrimento do "games time".
Desta feita já antevemos reprises de tragédias como o latrocínio brutal que vitimou o médico e ciclista Jaime Gold, em Maio de 2015, quando este pedalava na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos cartões postais do Rio de Janeiro.
A pergunta é uma só: por que não se policiou efetivamente a Lagoa, se já se noticiavam inúmeros assaltos a faca, cometidos por jovens em bicicletas, contra pedestres e ciclistas? Qual a dificuldade que enfrentam os comandantes da polícia para colocarem seus homens maciçamente nas ruas, a serviço da sociedade?
Essa situação de medo e insegurança nos impõe trazer a discussão um assunto pouco abordado e que talvez seja uma das causas desta e de muitas outras tragédias anunciadas da crônica policial da nossa cidade.
Não precisa ser nenhum expert para perceber que a segurança pública enfrenta profunda crise no Brasil. É só acompanhar as últimas notícias e estatísticas. Estariam sendo assassinados seis brasileiros por hora no nosso país, conforme edição recente do Anuário de Segurança Pública.
Há inúmeras razões e dezenas de falhas no nosso modelo. Mas um dos problemas é bem conhecido e pouquíssimo comentado. Trata-se de um verdadeiro tabu para as próprias chefias de polícia. Há um aspecto, em especial, que não permite que as policias funcionem cem por cento e, registre-se, com pesar, a falta de determinação em mudar esse quadro em especial: a prática do “bico” nas policias civis e policias militares dos estados.
O contribuinte não faz idéia do número de policiais fazendo “bico” nos dias de hoje. O gestores da segurança pública, os secretários de segurança, os chefes de polícia e os comandantes das policias militares têm que pensar, antes de mais nada, na segurança dos contribuintes, que mantêm a polícia e pagam seus salários. A polícia existe não existe para si, mas para a sociedade.
Como pode o aparelho policial funcionar, se pelo menos cinqüenta por cento de seu corpo estaria entregue a uma prática que desfoca a tropa do interesse central, isto é, de servir ao público contribuinte? O “bico” cooptaria policiais de todas as classes e patentes, do soldado ao coronel, do detetive ao delegado.
Poderíamos começar a consolidar uma interessante teoria, a de que “uma coisa leva a outra, em looping”. A segurança pública é falha, e por isso diversas empresas privadas e algumas famílias abastadas contratam policiais da ativa para que funcionem como seus seguranças privados. Tal prática enfraqueceria mais ainda a segurança pública. Funcionaria, então, como um perfeito círculo vicioso. Essa ausência, ou desatenção, dos policiais para com suas missões oficiais (que paga mal) geraria uma demanda para os próprios policiais, na atividade privada (que paga bem).
Os “coronéis-delegados” negligenciariam seus “quartéis-delegacias”, pois estariam com a cabeça nos vultosos pagamentos privados. Daí a segurança pública naufraga, o que aumenta exponencialmente o mercado para atuação privada desses agentes da lei. A lógica é tão simples quanto cruel; seria uma roda que se retro-alimentaria.
Esse mercado de segurança privada deveria focar nos policiais aposentados e, também, buscar formação de alto nível, criando faculdades e cursos superiores de segurança pública e privada. Mas ao que parece, é mais fácil a cooptação dos policiais da ativa.
É certo que há um concerto de culpados e responsáveis, e não podemos nos eximir de nossas respectivas responsabilidades. Nós mesmos, enquanto sociedade, geramos essa roda solta da segurança pública. O policial que desejar trabalhar em caráter privado tem que largar a polícia, de maneira definitiva. Hoje em dia a polícia passou a ser o "bico".
Os salários são baixos quase que propositadamente, pois a sociedade é hipócrita; paga mal a sua polícia para poder comprar o guarda na esquina. No dia em que o guarda ganhar bem e der valor ao seu uniforme de polícia, a madame e a patricinha vão se surpreender. No Chile não passa pela cabeça das pessoas dar uma “cerveja” para um carabineiro. O problema é sistêmico por aqui.
O “bico” é, também, um fator de desmotivação para aqueles valorosos oficiais que não se engajam nessa atividade. Os que se dedicam exclusivamente às suas instituições, enxergam a si próprios como injustiçados do sistema vigente, pois resistem com as dificuldades financeiras impostas por baixos salários. Tudo é muito injusto para quem procede corretamente.
Outra balela que os defensores desse anacronismo vivem a repetir, é que tal prática seria adotada nos Estados Unidos. A permissão lá é relativa, e ocorre por parte de alguns departamentos, e várias polícias não a autorizam em hipótese alguma, como a de Los Angeles e de Nova Iorque. No nosso caso, quem leva a mordida é o cidadão comum que não tem dinheiro para comprar o seu policial particular.
É algo – aparentemente – tão difícil de ser enfrentado pela própria administração policial, que algumas secretarias de segurança pública começam a ensaiar a sua autorização expressa, contra todo o interesse público que envolve a questão. Definitivamente é difícil fazer o que é certo neste país.
Se estivéssemos vivendo na Finlândia, e se a nossa cidade fosse Helsinque, tudo bem, contudo, aqui, no Rio de Janeiro, perder o foco da missão oficial é algo extremamente prejudicial. Ser permissivo com isso é não querer comprar a briga com uma turma grande de colegas da polícia, em detrimento de milhões de pessoas que compõem a sociedade.
A primeira medida administrativa a ser tomada para mitigar a prática do “bico” seria a extinção, ou a drástica diminuição, das escalas de plantão, que viabilizam as folgas diárias de milhares de policiais. Deixar em casa, sem ter o que fazer, homens e mulheres jovens, e com necessidade de complemento de suas rendas, é um convite para tal desvio de conduta.
Não me assustaria se soubesse que todos esses atentados que alvejam policiais militares e civis, de folga, nada mais fossem do que situações que ocorrem durante o curso do abominável “bico”. O “bico” desfoca, distrai e, ademais, é o primeiro degrau para problemas mais sérios. O policial começa fazendo “bico” para um empresário do ramo farmacêutico, e um dia aceita trabalhar para contraventores.
Aparentemente o “bico” não seria algo tão sério, entretanto, as suas consequências são muito mais profundas do que a sociedade pode imaginar, pois acaba permeando a conduta dos agentes da lei, no seu dia-a-dia, na força policial.
19 de novembro de 2016
Jorge Pontes é delegado federal e foi diretor da Interpol do Brasil.
O povo carioca, sobressaltado como sempre, já sente na pele o retorno da criminalidade de rua como um tsunami, que se aprofundará tão logo as forças federais levantem acampamento e retornem definitivamente aos seus postos de origem.
sociedade, os negócios e empreendimentos do Rio de Janeiro não mais se satisfazem com a efeméride de uma segurança destinada apenas aos "games times" dos inúmeros eventos internacionais aqui sediados; o Rio precisa sair da solução "para inglês ver" e dar ao seu cidadão a sensação perene de segurança, a saber, operar políticas de segurança pública corajosas e enfrentadoras que priorizem o "life time" em detrimento do "games time".
Desta feita já antevemos reprises de tragédias como o latrocínio brutal que vitimou o médico e ciclista Jaime Gold, em Maio de 2015, quando este pedalava na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos cartões postais do Rio de Janeiro.
A pergunta é uma só: por que não se policiou efetivamente a Lagoa, se já se noticiavam inúmeros assaltos a faca, cometidos por jovens em bicicletas, contra pedestres e ciclistas? Qual a dificuldade que enfrentam os comandantes da polícia para colocarem seus homens maciçamente nas ruas, a serviço da sociedade?
Essa situação de medo e insegurança nos impõe trazer a discussão um assunto pouco abordado e que talvez seja uma das causas desta e de muitas outras tragédias anunciadas da crônica policial da nossa cidade.
Não precisa ser nenhum expert para perceber que a segurança pública enfrenta profunda crise no Brasil. É só acompanhar as últimas notícias e estatísticas. Estariam sendo assassinados seis brasileiros por hora no nosso país, conforme edição recente do Anuário de Segurança Pública.
Há inúmeras razões e dezenas de falhas no nosso modelo. Mas um dos problemas é bem conhecido e pouquíssimo comentado. Trata-se de um verdadeiro tabu para as próprias chefias de polícia. Há um aspecto, em especial, que não permite que as policias funcionem cem por cento e, registre-se, com pesar, a falta de determinação em mudar esse quadro em especial: a prática do “bico” nas policias civis e policias militares dos estados.
O contribuinte não faz idéia do número de policiais fazendo “bico” nos dias de hoje. O gestores da segurança pública, os secretários de segurança, os chefes de polícia e os comandantes das policias militares têm que pensar, antes de mais nada, na segurança dos contribuintes, que mantêm a polícia e pagam seus salários. A polícia existe não existe para si, mas para a sociedade.
Como pode o aparelho policial funcionar, se pelo menos cinqüenta por cento de seu corpo estaria entregue a uma prática que desfoca a tropa do interesse central, isto é, de servir ao público contribuinte? O “bico” cooptaria policiais de todas as classes e patentes, do soldado ao coronel, do detetive ao delegado.
Poderíamos começar a consolidar uma interessante teoria, a de que “uma coisa leva a outra, em looping”. A segurança pública é falha, e por isso diversas empresas privadas e algumas famílias abastadas contratam policiais da ativa para que funcionem como seus seguranças privados. Tal prática enfraqueceria mais ainda a segurança pública. Funcionaria, então, como um perfeito círculo vicioso. Essa ausência, ou desatenção, dos policiais para com suas missões oficiais (que paga mal) geraria uma demanda para os próprios policiais, na atividade privada (que paga bem).
Os “coronéis-delegados” negligenciariam seus “quartéis-delegacias”, pois estariam com a cabeça nos vultosos pagamentos privados. Daí a segurança pública naufraga, o que aumenta exponencialmente o mercado para atuação privada desses agentes da lei. A lógica é tão simples quanto cruel; seria uma roda que se retro-alimentaria.
Esse mercado de segurança privada deveria focar nos policiais aposentados e, também, buscar formação de alto nível, criando faculdades e cursos superiores de segurança pública e privada. Mas ao que parece, é mais fácil a cooptação dos policiais da ativa.
É certo que há um concerto de culpados e responsáveis, e não podemos nos eximir de nossas respectivas responsabilidades. Nós mesmos, enquanto sociedade, geramos essa roda solta da segurança pública. O policial que desejar trabalhar em caráter privado tem que largar a polícia, de maneira definitiva. Hoje em dia a polícia passou a ser o "bico".
Os salários são baixos quase que propositadamente, pois a sociedade é hipócrita; paga mal a sua polícia para poder comprar o guarda na esquina. No dia em que o guarda ganhar bem e der valor ao seu uniforme de polícia, a madame e a patricinha vão se surpreender. No Chile não passa pela cabeça das pessoas dar uma “cerveja” para um carabineiro. O problema é sistêmico por aqui.
O “bico” é, também, um fator de desmotivação para aqueles valorosos oficiais que não se engajam nessa atividade. Os que se dedicam exclusivamente às suas instituições, enxergam a si próprios como injustiçados do sistema vigente, pois resistem com as dificuldades financeiras impostas por baixos salários. Tudo é muito injusto para quem procede corretamente.
Outra balela que os defensores desse anacronismo vivem a repetir, é que tal prática seria adotada nos Estados Unidos. A permissão lá é relativa, e ocorre por parte de alguns departamentos, e várias polícias não a autorizam em hipótese alguma, como a de Los Angeles e de Nova Iorque. No nosso caso, quem leva a mordida é o cidadão comum que não tem dinheiro para comprar o seu policial particular.
É algo – aparentemente – tão difícil de ser enfrentado pela própria administração policial, que algumas secretarias de segurança pública começam a ensaiar a sua autorização expressa, contra todo o interesse público que envolve a questão. Definitivamente é difícil fazer o que é certo neste país.
Se estivéssemos vivendo na Finlândia, e se a nossa cidade fosse Helsinque, tudo bem, contudo, aqui, no Rio de Janeiro, perder o foco da missão oficial é algo extremamente prejudicial. Ser permissivo com isso é não querer comprar a briga com uma turma grande de colegas da polícia, em detrimento de milhões de pessoas que compõem a sociedade.
A primeira medida administrativa a ser tomada para mitigar a prática do “bico” seria a extinção, ou a drástica diminuição, das escalas de plantão, que viabilizam as folgas diárias de milhares de policiais. Deixar em casa, sem ter o que fazer, homens e mulheres jovens, e com necessidade de complemento de suas rendas, é um convite para tal desvio de conduta.
Não me assustaria se soubesse que todos esses atentados que alvejam policiais militares e civis, de folga, nada mais fossem do que situações que ocorrem durante o curso do abominável “bico”. O “bico” desfoca, distrai e, ademais, é o primeiro degrau para problemas mais sérios. O policial começa fazendo “bico” para um empresário do ramo farmacêutico, e um dia aceita trabalhar para contraventores.
Aparentemente o “bico” não seria algo tão sério, entretanto, as suas consequências são muito mais profundas do que a sociedade pode imaginar, pois acaba permeando a conduta dos agentes da lei, no seu dia-a-dia, na força policial.
19 de novembro de 2016
Jorge Pontes é delegado federal e foi diretor da Interpol do Brasil.
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