Diferentemente do que acontece no Reino Unido, na política brasileira falhas morais e desvios de conduta são ignorados
A deputada inglesa Andrea Leadsom abandonou a disputa pela chefia do governo do Reino Unido porque foi desmascarada ao apresentar um currículo “exagerado”. Não foi só por isso, claro, mas a imprensa e seus colegas do Partido Conservador bateram nesse ponto: como uma candidata a primeira-ministra pode tentar alterar sua biografia para se valorizar? O ato foi considerado uma falha moral e um erro de estratégia política.
Se estivesse disputando algum cargo no Brasil, não teria que se preocupar com isso. Dilma Rousseff fez pior. Foi apanhada pela imprensa em 2009 com um currículo falso, apresentou umas desculpas esfarrapadas e seguiu em frente. Nem seus adversários bateram nesse ponto.
Na política brasileira, desvios de conduta e falhas morais não são consideradas. Os políticos não renunciam nem quando apanhados com contas secretas, por que iriam se preocupar com “mentirinhas”?
Reparem na diferença: Andrea Leadsom, que concorria com Theresa May pelo cargo de primeira-ministra, disse em entrevistas que havia dirigido negócios financeiros por 25 anos. Seu currículo oficial a apresentava como diretora de duas instituições financeiras.
Os jornalistas checaram e, bem, era diferente. Ela havia trabalhado em instituições financeiras, mas em funções secundárias e não ligadas diretamente à gestão dos investimentos. Também não havia sido diretora, mas vice-diretora, como admitiu — e numa área não financeira, entre muitas outras vices, como descobriu a imprensa.
Sua capacidade de liderar o país já estava em xeque — e ela certamente perderia a disputa para Theresa May se fosse bater voto. Mas aquela falha liquidou sua candidatura. E mais outra declaração: que seria melhor primeira-ministra porque era mãe. Depois pediu desculpas a May, mas já era fim de caminho.
Pensaram nas declarações sem sentido da presidente Dilma? Pois tem mais: em 2009, então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, já escolhida candidata pelo presidente Lula, ainda mantinha no seu currículo oficial, registrado no site do governo, que era mestre em Teoria Econômica e doutoranda em Economia Monetária pela Unicamp. Na Plataforma Lattes, base oficial de dados de currículos na área acadêmica, constava até o nome da tese de mestrado, a data de obtenção do título (1979) e o nome do orientador.
Tudo falso, como apurou primeiramente a revista “Piauí” e depois O GLOBO. Não havia tese nenhuma, nem curso de mestrado ou doutorado concluídos. Dilma apenas frequentara aulas no doutorado. Como se explicou? Disse que não fazia a menor ideia de quem havia colocado os dados na Plataforma Lattes. Desculpa esfarrapada: só a própria pessoa tem os documentos e senhas para mexer no seu currículo. Pode passá-los para alguém, mas aí sabe ou tem a obrigação de saber o que a outra pessoa está fazendo.
E no site da Casa Civil? Outro pequeno equívoco que mandou corrigir.
Como não percebeu os “erros” durante tanto tempo? Estava trabalhando pelo Brasil — aliás, Dilma disse que não pôde apresentar teses justamente porque estava trabalhando. Mas quando, em entrevistas, era apresentada como mestre, ela não corrigia.
E ficou por isso mesmo. Parece que estava dizendo algo do tipo: Qual é? Vão criar caso por uma bobagem?
O deputado Eduardo Cunha vai perder o mandato — quer dizer, pode perder o mandato, nunca se sabe — por uma mentira. Ele disse, oficialmente, em comissão da Câmara, que não tinha contas no exterior. Quando apareceram as contas, veio com essa desculpa de que as contas não estavam em nome dele, mas de trusts, um tipo de operação financeira. Que fosse ele o beneficiário do trust, portanto, o “beneficiário” do dinheiro, não quer dizer nada, diz o deputado até hoje.
Não faz o menor sentido, mas virou um caso complicado, muitos políticos concordam com Cunha, dizem que não se pode cassar um mandato por um deslize menor — e a Câmara e o Supremo Tribunal Federal gastam tempo, energia e dinheiro com essa história.
Dizem por aqui que política é a mesma farra em qualquer país. Não é.
Na Inglaterra, não se diz que a deputada Leadsom cometeu um pequeno deslize. Diz-se que se ela mente no currículo, o quanto não mentiria no governo? Se ela apresenta um currículo falso — algo de sua inteira responsabilidade — o que mais pode fazer?
E por falar em casos acadêmicos: em 2011, o ministro da Defesa da Alemanha, Karl-Theodor zu Guttenberg, renunciou ao cargo porque foi apanhado em um plágio na sua tese de doutorado. Ele tinha 39 anos, era o mais promissor político do momento. O tal “erro”, como ele admitiu, havia sido cometido 15 anos antes, quando ele nem pensava em política.
Pediu desculpas e saiu. A universidade cassou o seu título.
Pois é, pensaram assim: se o cara começa roubando no doutorado, imaginem o que mais pode fazer.
15 de julho de 2016
Carlos Alberto Sardenberg
A deputada inglesa Andrea Leadsom abandonou a disputa pela chefia do governo do Reino Unido porque foi desmascarada ao apresentar um currículo “exagerado”. Não foi só por isso, claro, mas a imprensa e seus colegas do Partido Conservador bateram nesse ponto: como uma candidata a primeira-ministra pode tentar alterar sua biografia para se valorizar? O ato foi considerado uma falha moral e um erro de estratégia política.
Se estivesse disputando algum cargo no Brasil, não teria que se preocupar com isso. Dilma Rousseff fez pior. Foi apanhada pela imprensa em 2009 com um currículo falso, apresentou umas desculpas esfarrapadas e seguiu em frente. Nem seus adversários bateram nesse ponto.
Na política brasileira, desvios de conduta e falhas morais não são consideradas. Os políticos não renunciam nem quando apanhados com contas secretas, por que iriam se preocupar com “mentirinhas”?
Reparem na diferença: Andrea Leadsom, que concorria com Theresa May pelo cargo de primeira-ministra, disse em entrevistas que havia dirigido negócios financeiros por 25 anos. Seu currículo oficial a apresentava como diretora de duas instituições financeiras.
Os jornalistas checaram e, bem, era diferente. Ela havia trabalhado em instituições financeiras, mas em funções secundárias e não ligadas diretamente à gestão dos investimentos. Também não havia sido diretora, mas vice-diretora, como admitiu — e numa área não financeira, entre muitas outras vices, como descobriu a imprensa.
Sua capacidade de liderar o país já estava em xeque — e ela certamente perderia a disputa para Theresa May se fosse bater voto. Mas aquela falha liquidou sua candidatura. E mais outra declaração: que seria melhor primeira-ministra porque era mãe. Depois pediu desculpas a May, mas já era fim de caminho.
Pensaram nas declarações sem sentido da presidente Dilma? Pois tem mais: em 2009, então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, já escolhida candidata pelo presidente Lula, ainda mantinha no seu currículo oficial, registrado no site do governo, que era mestre em Teoria Econômica e doutoranda em Economia Monetária pela Unicamp. Na Plataforma Lattes, base oficial de dados de currículos na área acadêmica, constava até o nome da tese de mestrado, a data de obtenção do título (1979) e o nome do orientador.
Tudo falso, como apurou primeiramente a revista “Piauí” e depois O GLOBO. Não havia tese nenhuma, nem curso de mestrado ou doutorado concluídos. Dilma apenas frequentara aulas no doutorado. Como se explicou? Disse que não fazia a menor ideia de quem havia colocado os dados na Plataforma Lattes. Desculpa esfarrapada: só a própria pessoa tem os documentos e senhas para mexer no seu currículo. Pode passá-los para alguém, mas aí sabe ou tem a obrigação de saber o que a outra pessoa está fazendo.
E no site da Casa Civil? Outro pequeno equívoco que mandou corrigir.
Como não percebeu os “erros” durante tanto tempo? Estava trabalhando pelo Brasil — aliás, Dilma disse que não pôde apresentar teses justamente porque estava trabalhando. Mas quando, em entrevistas, era apresentada como mestre, ela não corrigia.
E ficou por isso mesmo. Parece que estava dizendo algo do tipo: Qual é? Vão criar caso por uma bobagem?
O deputado Eduardo Cunha vai perder o mandato — quer dizer, pode perder o mandato, nunca se sabe — por uma mentira. Ele disse, oficialmente, em comissão da Câmara, que não tinha contas no exterior. Quando apareceram as contas, veio com essa desculpa de que as contas não estavam em nome dele, mas de trusts, um tipo de operação financeira. Que fosse ele o beneficiário do trust, portanto, o “beneficiário” do dinheiro, não quer dizer nada, diz o deputado até hoje.
Não faz o menor sentido, mas virou um caso complicado, muitos políticos concordam com Cunha, dizem que não se pode cassar um mandato por um deslize menor — e a Câmara e o Supremo Tribunal Federal gastam tempo, energia e dinheiro com essa história.
Dizem por aqui que política é a mesma farra em qualquer país. Não é.
Na Inglaterra, não se diz que a deputada Leadsom cometeu um pequeno deslize. Diz-se que se ela mente no currículo, o quanto não mentiria no governo? Se ela apresenta um currículo falso — algo de sua inteira responsabilidade — o que mais pode fazer?
E por falar em casos acadêmicos: em 2011, o ministro da Defesa da Alemanha, Karl-Theodor zu Guttenberg, renunciou ao cargo porque foi apanhado em um plágio na sua tese de doutorado. Ele tinha 39 anos, era o mais promissor político do momento. O tal “erro”, como ele admitiu, havia sido cometido 15 anos antes, quando ele nem pensava em política.
Pediu desculpas e saiu. A universidade cassou o seu título.
Pois é, pensaram assim: se o cara começa roubando no doutorado, imaginem o que mais pode fazer.
15 de julho de 2016
Carlos Alberto Sardenberg
Nenhum comentário:
Postar um comentário