Os viajantes que vão de Zurique, de outras cidades da Suíça e da maioria dos países da Europa para Milão e para o norte da Itália já estão rodando a até 250 quilômetros por hora na linha de trem que passa pelo novo túnel do Monte São Gotardo, a mais recente maravilha da engenharia mundial — com quase 60 quilômetros perfurados na rocha bruta, é o túnel mais longo do mundo, e sua construção tornou-se uma epopeia comparável à da travessia subterrânea do Canal da Mancha, entre Inglaterra e França. Enquanto isso, no Brasil, a última notícia que o público pagante teve em matéria de estrada de ferro foi o anúncio, dias atrás, de que o Tribunal de Contas da União proibiu qualquer entrega de dinheiro do Erário à "Ferrovia Transnordestina" apresentada desde o governo
do ex-presidente Lula como um monumento à redenção do Nordeste; seria também uma prova de que foi preciso um operário chegar à Presidência deste país para ensinar que grandes obras não podem ser feitas só no "Sudeste". A decisão foi tomada porque a Transnordestina assumiu a proporção de calamidade fora de controle em matéria de agressão ao Tesouro Nacional, incompetência técnica absoluta e desrespeito ao cidadão. O resumo real do que aconteceu aí é o seguinte: dez anos após anunciadas as obras, não existe ferrovia nenhuma. Em compensação, existe uma dívida de 35 bilhões de reais.
Sempre se pode dizer: "Não dá para comparar a Suíça com o Brasil". Não dá mesmo — não é realista, não é lógico e é inútil. A Suíça é uma coisa, o Brasil é outra, e não existe nenhuma previsão, pelo menos por enquanto, de que fiquem mais parecidos algum dia em termos de conduta por parte do poder público. Ainda assim, o caso das duas ferrovias oferece uma excelente oportunidade para pensar um pouco nessa coisa ruim chamada "governo". Tudo bem, ninguém está querendo por aqui que os governantes tenham um desempenho semelhante ao de lá; mas, francamente, também não há nenhuma obrigação de serem tão ruins desse jeito. A Transnordestina, lançada em 2006 para ligar os portos de Pecém, no Ceará, e Suape, em Pernambuco, além de abrir um novo acesso ao mar para o interior do Piauí, deveria ser entregue em 2010. Não foi. Já estamos em 2016 e nada — não há no momento nem sequer um palpite sobre a data de entrega. Descobriu-se que as obras foram iniciadas sem um projeto de engenharia coerente. Não existe nenhuma dificuldade geográfica especial na área (nada de túneis a 550 metros de altitude, por exemplo), mas dos 1700 quilômetros da estrada só há trilhos em 600, onde não passa trem algum. Sua função, no momento, é serem estragados pelo tempo ou furtados para a venda a peso do seu aço. O novo túnel do maciço de São Gotardo, aberto ao público dias atrás, foi entregue seis meses antes do prazo contratado e custou o que deveria custar — o equivalente a pouco mais de 10 bilhões de dólares. Por uma dessas coincidências da vida, a soma é praticamente igual aos 35 bilhões de reais de dívida que as empresas estatais responsáveis pela Transnordestina têm a apresentar como resultado de seus esforços até agora. Dá o que pensar. Quando a Suíça resolve fazer uma estrada de ferro, as pessoas passam a andar de trem; no Brasil, ficam devendo. É lindo, isso.
Também chama atenção, no caso, um fenômeno curioso, que provavelmente só acontece no Brasil: quanto mais a tecnologia avança no mundo desenvolvido, mais as obras públicas brasileiras demoram para ficar prontas. Numa época em que a ciência da engenharia é capaz de vencer os mais ingratos desafios da natureza, dentro dos prazos e dos orçamentos previstos, é como se o Brasil estivesse vivendo no tempo da régua de cálculo e do trator a gasolina; no ritmo de trabalho seguido pelos dois últimos governos, a Ponte Rio-Niterói ainda estaria em obras. Estradas como a Transnordestina, segundo apontou o TCU, apresentam "vícios de construção" e "erros primários" de técnica ferroviária. A transposição de águas do Rio São Francisco é uma coleção de ruínas. Usinas hidrelétricas geram energia inútil, porque não há linhas de transmissão — e por aí se vai. Para piorar, o governo que não faz é o mesmo governo que não deixa fazer, na sua paixão contra o resultado prático e no seu pânico diante de qualquer benefício público feito pela iniciativa privada. Nesse meio-tempo, o mundo continua a girar. A primeira ferrovia do São Gotardo é de 1882; por lá, já estão na terceira. Por aqui, a grande discussão é saber se os que não fizeram vão voltar ao governo para continuar não fazendo.
16 de junho de 2016
J.R.Guzzo, VEJA
do ex-presidente Lula como um monumento à redenção do Nordeste; seria também uma prova de que foi preciso um operário chegar à Presidência deste país para ensinar que grandes obras não podem ser feitas só no "Sudeste". A decisão foi tomada porque a Transnordestina assumiu a proporção de calamidade fora de controle em matéria de agressão ao Tesouro Nacional, incompetência técnica absoluta e desrespeito ao cidadão. O resumo real do que aconteceu aí é o seguinte: dez anos após anunciadas as obras, não existe ferrovia nenhuma. Em compensação, existe uma dívida de 35 bilhões de reais.
Sempre se pode dizer: "Não dá para comparar a Suíça com o Brasil". Não dá mesmo — não é realista, não é lógico e é inútil. A Suíça é uma coisa, o Brasil é outra, e não existe nenhuma previsão, pelo menos por enquanto, de que fiquem mais parecidos algum dia em termos de conduta por parte do poder público. Ainda assim, o caso das duas ferrovias oferece uma excelente oportunidade para pensar um pouco nessa coisa ruim chamada "governo". Tudo bem, ninguém está querendo por aqui que os governantes tenham um desempenho semelhante ao de lá; mas, francamente, também não há nenhuma obrigação de serem tão ruins desse jeito. A Transnordestina, lançada em 2006 para ligar os portos de Pecém, no Ceará, e Suape, em Pernambuco, além de abrir um novo acesso ao mar para o interior do Piauí, deveria ser entregue em 2010. Não foi. Já estamos em 2016 e nada — não há no momento nem sequer um palpite sobre a data de entrega. Descobriu-se que as obras foram iniciadas sem um projeto de engenharia coerente. Não existe nenhuma dificuldade geográfica especial na área (nada de túneis a 550 metros de altitude, por exemplo), mas dos 1700 quilômetros da estrada só há trilhos em 600, onde não passa trem algum. Sua função, no momento, é serem estragados pelo tempo ou furtados para a venda a peso do seu aço. O novo túnel do maciço de São Gotardo, aberto ao público dias atrás, foi entregue seis meses antes do prazo contratado e custou o que deveria custar — o equivalente a pouco mais de 10 bilhões de dólares. Por uma dessas coincidências da vida, a soma é praticamente igual aos 35 bilhões de reais de dívida que as empresas estatais responsáveis pela Transnordestina têm a apresentar como resultado de seus esforços até agora. Dá o que pensar. Quando a Suíça resolve fazer uma estrada de ferro, as pessoas passam a andar de trem; no Brasil, ficam devendo. É lindo, isso.
Também chama atenção, no caso, um fenômeno curioso, que provavelmente só acontece no Brasil: quanto mais a tecnologia avança no mundo desenvolvido, mais as obras públicas brasileiras demoram para ficar prontas. Numa época em que a ciência da engenharia é capaz de vencer os mais ingratos desafios da natureza, dentro dos prazos e dos orçamentos previstos, é como se o Brasil estivesse vivendo no tempo da régua de cálculo e do trator a gasolina; no ritmo de trabalho seguido pelos dois últimos governos, a Ponte Rio-Niterói ainda estaria em obras. Estradas como a Transnordestina, segundo apontou o TCU, apresentam "vícios de construção" e "erros primários" de técnica ferroviária. A transposição de águas do Rio São Francisco é uma coleção de ruínas. Usinas hidrelétricas geram energia inútil, porque não há linhas de transmissão — e por aí se vai. Para piorar, o governo que não faz é o mesmo governo que não deixa fazer, na sua paixão contra o resultado prático e no seu pânico diante de qualquer benefício público feito pela iniciativa privada. Nesse meio-tempo, o mundo continua a girar. A primeira ferrovia do São Gotardo é de 1882; por lá, já estão na terceira. Por aqui, a grande discussão é saber se os que não fizeram vão voltar ao governo para continuar não fazendo.
16 de junho de 2016
J.R.Guzzo, VEJA
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