"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

A CULTURA DA OCUPAÇÃO

Aluno da UNICAMP impedindo professor de dar Aula - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=txvaAacboXE
18 de jun de 2016 - Vídeo enviado por Daniel Macedo
Aluno da UNICAMP impedindo professor de dar Aula .... cara é qualificado, PhD pela Universidade de ...


Tomam-se ruas, escolas, repartições e empresas tal e qual elevado exercício da liberdade de expressão — como se assim, num só golpe, não se sustasse igualmente o debate

O professor está em sala de aula. Tenta dar aula. A seu lado, malemolente, um jovem dança, sensualiza. Tem a expressão do descompromisso a serviço. É o invasor. Há música. Alta. Ainda assim, o professor insiste. É firme. Mantém a calma. Escreve no quadro-negro. Tenta trabalhar. Outros dois sujeitos aparecem. Invasores também. Tendo-se decerto na conta de heróis, apagam o que fora escrito, rabiscam palavras de ordem. O professor, porém, continua. Num canto, apresenta uma equação matemática. Que o jovem dançante, na segunda tentativa, afinal apaga. Aula encerrada.

Descrevi acima o vídeo recente em que o professor Serguei Popov, da Unicamp, vê-se impedido de lecionar pela performance de jovens marionetes. (Ao menos um deles, o dançarino indolente, que cursa licenciatura em Geografia, em breve será professor de seus filhos e netos, leitor; e não é exceção.) É preciso, pois, explicar as coisas à luz do que são: a inconsequência dos manipulados não os exime de responsabilidade sobre a violência que praticam. É preciso também, portanto, pesar-prezar valores: não interessa qual seja a reivindicação dos agressores; esta cultura da ocupação — a interdição dos espaços públicos para impor a agenda de grupos de pressão — é das mais nefastas manifestações da doença terminal brasileira, e tudo invalida. Tudo.

Protestar no Brasil, hoje, é ocupar — um eufemismo para invadir, tomar, interditar. O diálogo e o respeito ao próximo são ignorados no ato, mas se travestem de democratas os atores, de guardiões da liberdade. E não importa se — na sala do professor Popov, por exemplo — ao menos um aluno estivesse disposto a estudar. Não importa. Os democratas estão acima dessa coisa ultrapassada de indivíduo. São corajosos também, incensados como novidade, manifestantes românticos e radicais de uma nobre causa — contra a qual, aliás, não há quem esteja. (Ou alguém se opõe a melhores condições para o exercício da docência e da discência?)

Não é por acaso que a cultura da ocupação encontra sua mais influente aplicação em colégios e universidades. A ideia romântica radicalizada — a do estudante não apenas consciente, mas que lidera (pensa liderar), que bota a cara e interdita a escola (na verdade, somente empresta seu corpo ao projeto do partido, que, por sua vez, não reclamaria de ter um corpo, um jovem morto, para fazer de mártir) — é elemento-chave aqui. Há método, pedagogia, nessa opressão contra os interesses da maioria.

O cerceamento aos que querem produzir resultou na barbaridade de que estudantes, os que desejam estudar, tenham de marcar aulas secretas. A manipulação da juventude modelou até um coletivo surrealista, o dos estudantes grevistas. Eles tomam o colégio para si (ninguém entra, salvo se autorizarem), acampam em suas dependências (espécie de colônia de férias politizada), cozinham para si (ocasião em que mostram avançadas técnicas de cooperação) e tocam violão como expressão de que podem. (Os maiores tocadores de violão do país, aliás, estão fechados com eles.) Muito bem assessorados juridicamente, agem com autoritarismo, afrontam a vontade — da maioria, repita-se — de estudar, de trabalhar, desconhecem os deveres inerentes à liberdade, mas são reverenciados como defensores de direitos ameaçados (só têm direitos), bravos representantes de uma geração que finalmente assumirá as rédeas do próprio futuro.

Esta é a medida da falência política e educacional do país. Perdemos de todo a noção de individualidade — logo, de responsabilidade. Funcionamos sob a lógica do bando. Acomodamo-nos desta forma, tratando por peças respeitáveis no tabuleiro do jogo político aqueles que nos assaltam o direito de ir e vir. Tomam-se ruas, escolas, repartições e empresas tal e qual elevado exercício da liberdade de expressão — como se assim, num só golpe, não se sustasse igualmente o debate público. Lembremo-nos: a ocupação das ideias — o sequestro da palavra, da linguagem — sempre precede. O Brasil, faz tempo, é gerido pelo norte ideológico da guilda, pelos interesses de classe, pelo modelo black bloc de negociação — e esses gestores tomaram e corromperam também o sentido do que seja direito, liberdade, democracia.

Não gostou de algo, senhor taxista? Ora, tranque a cidade. Obstrua as principais vias. Impeça o cidadão de circular. Intimide a população. Terá o endosso do poder público, o exemplo esclarecido de professores-doutrinadores e estudantes profissionais. Terá também a chancela da intelectualidade neste Brasil dos abaixo-assinados de patota, sempre democráticos, mas de que não se pode querer ficar de fora; país em que a discordância individual — a intenção de não subscrever um manifesto (sempre pela liberdade) — transforma em pária e aproxima o degredo.

Num futuro não distante, todo mundo será manifestante — se quiser prosperar. Será abaixo-assinado — se quiser pertencer. Terá de ser militante — se quiser ter existência reconhecida.


29 de junho de 2016
Carlos Andreazza é editor de livros
O Globo

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