Se na década de 1930 muitos prisioneiros soviéticos acreditavam que o GULAG era um grande engano, um imenso erro que de alguma forma havia sido escondido do olhar bondoso do kamarada Stalin, nos anos 1950 poucos alimentavam essa ilusão.
Nos últimos anos, os prisioneiros políticos esperavam e rezavam pela morte de Stalin, discutindo-a constante e sutilmente, de modo a não atrair a atenção dos informantes. Eles diziam ‘Ah, os georgianos vivem muito tempo’, uma frase que transmitia o desejo de sua morte sem de fato cometer traição.
Quando a morte de Stalin foi finalmente anunciada, em 5 de março de 1953, alguns continuaram cautelosos. Os presos políticos tiveram o cuidado de esconder sua excitação, pois temiam que ela lhes trouxessem uam segunda condenação.
Beria, que mal conseguira conter o júbilo diante do cadáver de Stalin, assumiu de fato o Poder e começou a fazer mudanças em uma velocidade espantosa. A 6 de março, antes que Stalin tivesse sido sequer sepultado, Beria anunciou uma reorganização da Polícia Secreta. Duas semanas mais tarde, Beria escreveu ao Presidium do Comitê Central um memorando no qual descreveu o estado dos campos de trabalho com surpreendente clareza. Ele informou que havia 2.526.402 detentos, dos quais apenas 221.435 eram realmente criminosos perigosos, e argumentou em favor da libertação de muitos dos restantes.
Com argumentos humanitários, Beria solicitou uma anistia para todos os prisioneiros com penas de 5 anos ou menos, para todas as mulheres grávidas ou que tivessem filhos pequenos, e para todos os menores de 18 anos. Um milhão de pessoas, no total. A anistia foi anunciada a 27 de março e a libertação começou de imediato.
Uma semana depois, em 4 de abril, Beria cancelou a investigação sobre a
Conspiração dos Médicos. Essa foi a primeira mudança visível para o público em geral. Mais uma vez, o anúncio apareceu noPravda: “As pessoas acusadas de conduzir incorretamente foram presas e devem responder a processo”.
Em segredo, Beria também promoveu outras mudanças. Proibiu que os funcionários da Polícia Secreta usassem força física contra os detentos, efetivamente acabando com a tortura.
Quanto ao GULAG, em 16 de junho ele colocou todas as cartas na mesa, declarando abertamente a intenção de “liquidar o sistema de trabalhos forçados, pois ele era economicamente ineficiente e não tinha nenhuma perspectiva de futuro”.
Até hoje as razões de Beria para realizar mudanças tão rápidas são um mistério. Alguns tentaram pintá-lo como um liberal secreto que padecia sob o sistema stalinista e ansiava por reformas. Os colegas de partido suspeitavam que ele estava tentando concentrar mais poderes na Polícia Secreta, e às custas do Partido Comunista livrar o MVD (antecessor do KGB) do fardo incômodo e caro dos campos seria simplesmente uma maneira de fortalecer o órgão. Beria estaria também tentando se tornar popular entre o povo e os antigos integrantes da Policia Secreta que agora retornariam dos campos distantes.
Entretanto, talvez a explicação mais provável para o comportamento de Beria fosse o seu conhecimento, mais do que qualquer outra pessoa na URSS. Beria realmente sabia que os campos eram dispendiosos e que a maioria dos presos era inocente. Afinal, ele se dedicara a supervisionar os primeiros e a prender os últimos durante boa parte da década anterior.
Fossem quais fossem seus motivos, Beria andou depressa demais.
Suas reformas perturbaram os colegas. Kruschev, a quem Beria subestimou profundamente, foi o mais abalado, talvez por ter ajudado a organizar as investigações sobre a Conspiração dos Médicos, talvez por causa da forte ligação com a Ucrânia. Kruschev também deve ter calculado que, cedo ou tarde, entraria em uma nova lista de inimigos de Beria. Aos poucos, por meio de uma intensa campanha de difamação, colocou os outros líderes do Partido contra Beria e, no final de junho, já havia conquistado todos. Numa reunião do Partido, cercou o prédio com tropas leais e seguiu-se a surpresa. Chocado, gaguejando, o homem que havia sido a segunda pessoa mais poderosa da URSS, foi preso.
Beria permaneceu na prisão pelos poucos meses que lhe restaram. Como seus antecessores, Yagoda e Yezhov, ele se ocupava escrevendo cartas, pedindo clemência. Seu julgamento foi realizado em dezembro. Não se sabe se foi executado então ou mais cedo, o fato é que no final de 1953 estava morto.
Os líderes da URSS abandonaram algumas políticas de Beria com a mesma rapidez com que elas haviam sido implantadas. Mas nem Kruschev e nem qualquer outro ressuscitou os grandes projetos de construção do GULAG e nem revogaram a anistia concedida por Beria.
Mas o relógio começara a soar: a era do GULAG chegava ao fim.
Vários guardas mudaram de atitude da noite para o dia, relaxando as regras antes mesmo de receberam ordens para tal. Um dos comandantes do lagpunkt de Alexander Dolguin, em Kolyma, começou a apertar as mãos dos prisioneiros e a chamá-los de kamaradas assim que soube da doença de Stalin, antes mesmo que ele fosse oficialmente declarado morto.
O regime nos campos afrouxou. Os prisioneiros que se recusavam a realizar qualquer tarefa particularmente extenuante, desagradável ou injusta e os que se recusavam a trabalhar aos domingos, não eram mais punidos. Protestos espontâneos irromperam e os manifestantes também não mais eram castigados.
Surgiram, então, os ingredientes para uma rebelião. Em 1953, fazia 5 anos que os moradoresdos campos especiais viviam isolados dos presos comuns e dos criminosos. Sozinhos, desenvolveram meios de organização interna e resistência sem paralelo na história anterior do GULAG. Durante anos eles estiveram à beira de um levante organizado, conspirando e planejando, e a única coisa que os detivera era a esperança de que a morte de Stalin significasse a libertação. Quando isso não aconteceu, a esperança foi substituída pelo ódio.
O texto acima resumido foi transcrito do livro “Gulag – Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos”, escrito por Anne Applebaum, em 2003, e publicado no Brasil pela Ediouro em 2004. Anne Applebaum é colunista e integrante do Conselho Editorial do jornal Wanshington Post. Foi correspondente do Economist em Varsóvia e trabalhou como editora internacional do Espectator, em Londres. Seu livro já foi traduzido em mais de 12 idiomas. Ganhou o Prêmio Pulitzer 2004 e o Britain’s Duff-Cooper Prize.
15 de maio de 2016
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
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