ARTIGOS - ABORTO
Reduzir à politicagem uma questão que toca no valor da vida humana e na dignidade da vida e nos limites de definição do que é digno, correto ou errado fazer é, no mínimo, uma barbaridade.
Alguns seres humanos têm a capacidade de nos surpreender ao tornarem realidades as mais estapafúrdias hipóteses.
Explico melhor...
No livro A Morte da Medicina, joguei com a hipótese da perda de dignidade do feto e do bebê, e perguntei se caso não houvesse problema em matar um feto ou bebê por não o considerar pessoa, por que então haveria problema em vender suas partes ou degustá-lo como fina iguaria? Confesso que foi um gracejo na época, uma conductio ad absurdum de valor retórico, talvez.
E assisti surpreso a uma série de vídeos nos quais uma das maiores empresas abortistas do mundo, a Planned Parenthood, fundada pela excêntrica eugenista estadunidense Margareth Sanger, negociava pedaços de bebês e fetos, inclusive enquanto um “espécime” ainda com o coração batendo era dilacerado.
O que era hipótese grotesca e chocante virava realidade da noite para o dia.
Mas quando acho que posso tomar fôlego, eis que um novo fato surpreende. Em um dos melhores periódicos médicos do mundo é publicado um comentário no mínimo curioso, demonstrando certa indignação com a indignação alheia, reclamando dos incoerentes defensores da dignidade da vida humana[1]. Mas fico surpreso porque o artigo inteiro nada mais é do que uma série de proposições falaciosas ao redor de um grande espantalho[2] inventado pela autora Alta Charo, importante bioeticista da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos.
A autora começa reclamando sobre as grandes “vias de esperança” (avenues of hope) que poderão ser destruídas pelo ativismo de grupos politiqueiros. Segundo ela:
“(…) essas vias de esperança [para pacientes atuais e futuros por causa da pesquisa com tecido fetal] são ameaçadas [por meio do corte de verbas federais para a Planned Parenthood] por uma luta política pura – uma luta que, neste caso, não vai afetar de forma alguma o número de fetos abortados ou trazidos a termo, objetivo alegado pelos ativistas envolvidos.”
“(...) those avenues of hope [for current and future patients because of fetal tissue researching] are being threatened [by the Federal defunding of Planned Parenthood] by a purely political fight – one that, in this case, will in no way actually affect the number of fetuses that are aborted or brought to term, the alleged goal of the activists involved.”
Há vários erros no raciocínio exposto.
Declarar que tudo não passa de uma briga política é cometer um dos grandes crimes filosóficos dos quais se tem notícia: reducionismo. Reduzir à politicagem uma questão que toca no valor da vida humana e na dignidade da vida e nos limites de definição do que é digno, correto ou errado fazer é, no mínimo, uma barbaridade. É ignorar, ou preferir não reconhecer, que há sim elementos políticos na discussão, mas que esta discussão é algo muito mais sério, amplo e profundo do que a política, é uma questão que aborda diretamente a cosmovisão de toda uma nação, senão de uma civilização. É uma questão essencial para a definição de quem são afinal os norte-americanos.
Alta Charo também parece melindrada sobre bagunçar esperanças alheias em grandes descobertas num futuro hipotético. Mas, desde que Hans Jonas publicou sua obra chamando a atenção da comunidade mundial de bioeticistas sobre o princípio da Responsabilidade e do Temor[3] - sendo acusado por muitos incautos de conservador justamente por não advogar o progresso científico acima do bem do indivíduo concreto e real de nosso tempo -, analistas prudentes perceberam que nenhuma esperança em algo hipotético e, portanto, opcional, no futuro, pode justificar uma falha ética no presente. Logo, não há razões para melindres a respeito de expectativas futuras se houver razões para melindres a respeito de falhas éticas graves no presente.
E verdade seja dita: o que mais se tem quando se fala em células tronco embrionários é esperança.
Dizer também que o número de abortos não diminuirá por meio do ativismo político e social de defensores da vida de fetos e bebês também não é uma proposição muito adequada. Há que se ter um pouco mais de cautela, pois numa situação relativamente nova no conhecimento geral e pouco pesquisada e analisada, não se sabe se a disponibilização de um mercado de pedaços de bebês e fetos não geraria um grande aumento do número de abortos. Da mesma forma, não se pode afirmar que a proibição da destinação de verbas federais à Planned Parenthood não geraria uma redução no número de abortos. Quem sabe? Eu não sei, e creio sinceramente que Alta Charo também não pode afirmar saber.
A seguir ela diz:
“Ao ver de perto a pesquisa em tecido fetal, observa-se o dever de usar esse precioso tecido na esperança de encontrar formas de prevenir ou tratar doenças devastadoras. Virtualmente qualquer pessoa neste país se beneficiou da pesquisa com tecido fetal. Todas as crianças que foram poupadas dos riscos e sofrimentos da catapora, rubéola ou pólio podem agradecer aos ganhadores do Prêmio Nobel e outros cientistas que usaram tal tecido para produzirem a vacina que nos protege.”
(“A closer look at the ethics of fetal research, however, reveals a duty to use this precious resource in the hope of finding new preventive and therapeutic interventions for devastating diseases. Virtually every person in this country has benefited from research using fetal tissue. Every child who’s been spared the risks and misery of chickenpox, rubella, or polio can thank the Nobel Prize recipients and other scientists who used such tissue in research yielding the vaccines that protect us.”)
Realmente o número de pessoas que se beneficiou com o uso de tecido fetal é incontável em quase um século de vacinas. Mas do fato que se pode utilizar tecido fetal para beneficiar o próximo não se depreende que tal tecido tenha que ser colhido de ações eticamente questionáveis. Por que não colher apenas tecido fetal decorrente de situações eticamente inquestionáveis como aquelas em que ocorre aborto espontâneo ou traumático acidental? Por que não investir em meios de pesquisa mais avançados para proliferar o tecido obtido por meios menos controversos e fornecer material suficiente para pesquisa sem incorrer em questões existenciais que podem comprometer os valores de todo um povo?
Ou por que não investir em novos tecidos e novas técnicas capazes de evitar problemas éticos?
Acomodar-se, cobrar coerência e continuidade em relação a determinada linha de pesquisa e ridicularizar um dos lados da questão não parece ser realmente o melhor caminho. E se eu quiser fazer o meu espantalho também, parece algo bem reacionário dentro de um contexto progressista, se é que vocês me entendem...
Há também a cobrança de uma coerência por parte dos defensores enragé da vida:
“Críticos apontam para os abortos por trás da pesquisa, afirmam que são antiéticos, e argumentam que a sociedade não pode endossá-los ou até mesmo beneficiar-se deles, sob o risco de encorajar mais abortos ou tornar a sociedade cúmplice com o que eles veem como um ato imoral. No entanto, eles têm se utilizado sobremaneira das vacinas e tratamentos derivados da pesquisa com tecido fetal, e não dão indicação de que irão abrir mão de benefícios obtidos. Justiça e reciprocidade sugerem que eles têm o dever de apoiar o trabalho, ou ao menos, não o atrapalhar. ”.
(“Critics point to the underlying abortions, assert that they are evil, and argue that society ought not implicitly endorse them or even indirectly benefit from them, lest it encourage more abortion or make society complicit with what they view as an immoral act. Yet they have overwhelmingly partaken of the vaccines and treatments derived from fetal tissue research and give no indication that they will forswear further benefits. Fairness and reciprocity alone would suggest they have a duty to support the work, or at least not to thwart it.”)
Alta Charo cobra um determinado tipo de coerência no mínimo questionável. Exemplifico com uma analogia.
Suponhamos que a medicina nazista, utilizando judeus, prisioneiros de guerra ou crianças com retardo mental, tenha produzido um avançado medicamento no passado que salvou muitas vidas arianas e não arianas até os dias de hoje. Utilizar tal medicação e reconhecer seu benefício não quer dizer que, automaticamente, há que se assumir um compromisso em seguir fazendo pesquisa e medicina nos moldes nazistas, ou utilizando judeus, crianças deficientes ou prisioneiros.
É muito mais coerente cobrar que, ao ser descoberta uma ameaça à ética, tal ameaça seja imediatamente avaliada e que chances de perpetuar um erro sejam suspensas até que se saiba melhor qual caminho tomar. Parar com a “venda” de fetos ou suspender temporariamente o aporte de novos espécimes para pesquisa não implicará imediatamente no fim das pesquisas com os tecidos fetais já colhidos, ou até mesmo na coleta de novos tecidos à medida em que novos abortos espontâneos ou sob condições mais seguras do ponto de vista ético continuem acontecendo.
A autora prossegue menosprezando a perspectiva alheia e declara que:
“(...) parece óbvio que as necessidades de pacientes de hoje e do futuro superam o que só podem ser gestos simbólicos ou políticos de preocupação. ”
“(...) it seems clear that the needs of current and future patients outweigh what can only be symbolic or political gestures of concern.”
Só parece óbvio, mas não é. Nesse esquema lógico, uma premissa não bate. Há uma falta de empatia mortal ao debate intelectual. O pressuposto de que se está ao lado da verdade e do bem, e que o próximo é um hipócrita interesseiro ou um simplório incapaz de sentimentos genuínos e profundos não parece contribuir para o ambiente respeitável de diálogo e compreensão que a Bioética exige.
Dra. Charo também observa uma ironia, que descreve como o fato de que:
“reduzir o acesso à contracepção [ao deixar de custear com verbas do governo a Planned Parenthood, que também atua na distribuição de anticoncepcionais] é o caminho mais certo para aumentar o número de abortos.”
“reducing access to contraception is the surest way to increase the number of abortions.”
Mas antes de ser uma ironia há uma possibilidade em jogo. Pode muito bem ser possível que outras organizações sem entraves éticos como a Planned Parenthood tomem para si o papel de orientar acerca da contracepção. Pode ser que novos serviços surjam. Pode ser que o número de abortos até diminua, afinal de contas, quem faz o aborto e o defende pode, de uma hora para outra, não estar lá. Não é possível afirmar que tirar verbas do contribuinte norte americano da megaempresa abortista aumentará de fato o número de abortos. Isso seria brincar de prever o futuro sem muita fundamentação em exemplos históricos.
Por fim, o artigo encerra com um tom fortemente retórico e emocional, tentando exibir a feiura moral daqueles que discordam:
O que era hipótese grotesca e chocante virava realidade da noite para o dia.
Mas quando acho que posso tomar fôlego, eis que um novo fato surpreende. Em um dos melhores periódicos médicos do mundo é publicado um comentário no mínimo curioso, demonstrando certa indignação com a indignação alheia, reclamando dos incoerentes defensores da dignidade da vida humana[1]. Mas fico surpreso porque o artigo inteiro nada mais é do que uma série de proposições falaciosas ao redor de um grande espantalho[2] inventado pela autora Alta Charo, importante bioeticista da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos.
A autora começa reclamando sobre as grandes “vias de esperança” (avenues of hope) que poderão ser destruídas pelo ativismo de grupos politiqueiros. Segundo ela:
“(…) essas vias de esperança [para pacientes atuais e futuros por causa da pesquisa com tecido fetal] são ameaçadas [por meio do corte de verbas federais para a Planned Parenthood] por uma luta política pura – uma luta que, neste caso, não vai afetar de forma alguma o número de fetos abortados ou trazidos a termo, objetivo alegado pelos ativistas envolvidos.”
“(...) those avenues of hope [for current and future patients because of fetal tissue researching] are being threatened [by the Federal defunding of Planned Parenthood] by a purely political fight – one that, in this case, will in no way actually affect the number of fetuses that are aborted or brought to term, the alleged goal of the activists involved.”
Há vários erros no raciocínio exposto.
Declarar que tudo não passa de uma briga política é cometer um dos grandes crimes filosóficos dos quais se tem notícia: reducionismo. Reduzir à politicagem uma questão que toca no valor da vida humana e na dignidade da vida e nos limites de definição do que é digno, correto ou errado fazer é, no mínimo, uma barbaridade. É ignorar, ou preferir não reconhecer, que há sim elementos políticos na discussão, mas que esta discussão é algo muito mais sério, amplo e profundo do que a política, é uma questão que aborda diretamente a cosmovisão de toda uma nação, senão de uma civilização. É uma questão essencial para a definição de quem são afinal os norte-americanos.
Alta Charo também parece melindrada sobre bagunçar esperanças alheias em grandes descobertas num futuro hipotético. Mas, desde que Hans Jonas publicou sua obra chamando a atenção da comunidade mundial de bioeticistas sobre o princípio da Responsabilidade e do Temor[3] - sendo acusado por muitos incautos de conservador justamente por não advogar o progresso científico acima do bem do indivíduo concreto e real de nosso tempo -, analistas prudentes perceberam que nenhuma esperança em algo hipotético e, portanto, opcional, no futuro, pode justificar uma falha ética no presente. Logo, não há razões para melindres a respeito de expectativas futuras se houver razões para melindres a respeito de falhas éticas graves no presente.
E verdade seja dita: o que mais se tem quando se fala em células tronco embrionários é esperança.
Dizer também que o número de abortos não diminuirá por meio do ativismo político e social de defensores da vida de fetos e bebês também não é uma proposição muito adequada. Há que se ter um pouco mais de cautela, pois numa situação relativamente nova no conhecimento geral e pouco pesquisada e analisada, não se sabe se a disponibilização de um mercado de pedaços de bebês e fetos não geraria um grande aumento do número de abortos. Da mesma forma, não se pode afirmar que a proibição da destinação de verbas federais à Planned Parenthood não geraria uma redução no número de abortos. Quem sabe? Eu não sei, e creio sinceramente que Alta Charo também não pode afirmar saber.
A seguir ela diz:
“Ao ver de perto a pesquisa em tecido fetal, observa-se o dever de usar esse precioso tecido na esperança de encontrar formas de prevenir ou tratar doenças devastadoras. Virtualmente qualquer pessoa neste país se beneficiou da pesquisa com tecido fetal. Todas as crianças que foram poupadas dos riscos e sofrimentos da catapora, rubéola ou pólio podem agradecer aos ganhadores do Prêmio Nobel e outros cientistas que usaram tal tecido para produzirem a vacina que nos protege.”
(“A closer look at the ethics of fetal research, however, reveals a duty to use this precious resource in the hope of finding new preventive and therapeutic interventions for devastating diseases. Virtually every person in this country has benefited from research using fetal tissue. Every child who’s been spared the risks and misery of chickenpox, rubella, or polio can thank the Nobel Prize recipients and other scientists who used such tissue in research yielding the vaccines that protect us.”)
Realmente o número de pessoas que se beneficiou com o uso de tecido fetal é incontável em quase um século de vacinas. Mas do fato que se pode utilizar tecido fetal para beneficiar o próximo não se depreende que tal tecido tenha que ser colhido de ações eticamente questionáveis. Por que não colher apenas tecido fetal decorrente de situações eticamente inquestionáveis como aquelas em que ocorre aborto espontâneo ou traumático acidental? Por que não investir em meios de pesquisa mais avançados para proliferar o tecido obtido por meios menos controversos e fornecer material suficiente para pesquisa sem incorrer em questões existenciais que podem comprometer os valores de todo um povo?
Ou por que não investir em novos tecidos e novas técnicas capazes de evitar problemas éticos?
Acomodar-se, cobrar coerência e continuidade em relação a determinada linha de pesquisa e ridicularizar um dos lados da questão não parece ser realmente o melhor caminho. E se eu quiser fazer o meu espantalho também, parece algo bem reacionário dentro de um contexto progressista, se é que vocês me entendem...
Há também a cobrança de uma coerência por parte dos defensores enragé da vida:
“Críticos apontam para os abortos por trás da pesquisa, afirmam que são antiéticos, e argumentam que a sociedade não pode endossá-los ou até mesmo beneficiar-se deles, sob o risco de encorajar mais abortos ou tornar a sociedade cúmplice com o que eles veem como um ato imoral. No entanto, eles têm se utilizado sobremaneira das vacinas e tratamentos derivados da pesquisa com tecido fetal, e não dão indicação de que irão abrir mão de benefícios obtidos. Justiça e reciprocidade sugerem que eles têm o dever de apoiar o trabalho, ou ao menos, não o atrapalhar. ”.
(“Critics point to the underlying abortions, assert that they are evil, and argue that society ought not implicitly endorse them or even indirectly benefit from them, lest it encourage more abortion or make society complicit with what they view as an immoral act. Yet they have overwhelmingly partaken of the vaccines and treatments derived from fetal tissue research and give no indication that they will forswear further benefits. Fairness and reciprocity alone would suggest they have a duty to support the work, or at least not to thwart it.”)
Alta Charo cobra um determinado tipo de coerência no mínimo questionável. Exemplifico com uma analogia.
Suponhamos que a medicina nazista, utilizando judeus, prisioneiros de guerra ou crianças com retardo mental, tenha produzido um avançado medicamento no passado que salvou muitas vidas arianas e não arianas até os dias de hoje. Utilizar tal medicação e reconhecer seu benefício não quer dizer que, automaticamente, há que se assumir um compromisso em seguir fazendo pesquisa e medicina nos moldes nazistas, ou utilizando judeus, crianças deficientes ou prisioneiros.
É muito mais coerente cobrar que, ao ser descoberta uma ameaça à ética, tal ameaça seja imediatamente avaliada e que chances de perpetuar um erro sejam suspensas até que se saiba melhor qual caminho tomar. Parar com a “venda” de fetos ou suspender temporariamente o aporte de novos espécimes para pesquisa não implicará imediatamente no fim das pesquisas com os tecidos fetais já colhidos, ou até mesmo na coleta de novos tecidos à medida em que novos abortos espontâneos ou sob condições mais seguras do ponto de vista ético continuem acontecendo.
A autora prossegue menosprezando a perspectiva alheia e declara que:
“(...) parece óbvio que as necessidades de pacientes de hoje e do futuro superam o que só podem ser gestos simbólicos ou políticos de preocupação. ”
“(...) it seems clear that the needs of current and future patients outweigh what can only be symbolic or political gestures of concern.”
Só parece óbvio, mas não é. Nesse esquema lógico, uma premissa não bate. Há uma falta de empatia mortal ao debate intelectual. O pressuposto de que se está ao lado da verdade e do bem, e que o próximo é um hipócrita interesseiro ou um simplório incapaz de sentimentos genuínos e profundos não parece contribuir para o ambiente respeitável de diálogo e compreensão que a Bioética exige.
Dra. Charo também observa uma ironia, que descreve como o fato de que:
“reduzir o acesso à contracepção [ao deixar de custear com verbas do governo a Planned Parenthood, que também atua na distribuição de anticoncepcionais] é o caminho mais certo para aumentar o número de abortos.”
“reducing access to contraception is the surest way to increase the number of abortions.”
Mas antes de ser uma ironia há uma possibilidade em jogo. Pode muito bem ser possível que outras organizações sem entraves éticos como a Planned Parenthood tomem para si o papel de orientar acerca da contracepção. Pode ser que novos serviços surjam. Pode ser que o número de abortos até diminua, afinal de contas, quem faz o aborto e o defende pode, de uma hora para outra, não estar lá. Não é possível afirmar que tirar verbas do contribuinte norte americano da megaempresa abortista aumentará de fato o número de abortos. Isso seria brincar de prever o futuro sem muita fundamentação em exemplos históricos.
Por fim, o artigo encerra com um tom fortemente retórico e emocional, tentando exibir a feiura moral daqueles que discordam:
“Esse ataque representa uma traição às pessoas cuja vida poderia ser salva pela pesquisa, e uma violação do dever mais fundamental da medicina e da política de saúde, o dever de cuidar.”
“This attack represents a betrayal of the people whose lives could be saved by the research and a violation of that most fundamental duty of medicine and health policy, the duty of care.”
Se o ataque é uma traição a pessoas do futuro, porque a venda de órgãos de fetos e bebês não seria uma traição aos seres humanos do presente? Se o dever fundamental da medicina e das políticas de saúde é cuidar do próximo, onde está o cuidado com as vidas interrompidas, ou com a sua dignidade?
A preocupação da doutora Charo é plenamente compreensível e respeitável dentro de uma perspectiva progressista e cientificista. O mínimo que se espera de alguém de sua importância como figura pública, bioeticista e educadora, é um esforço genuíno para compreender que a postura daqueles que ela chama de traidores e politiqueiros também é respeitável dentro de suas próprias perspectivas.
Criar espantalhos ou menosprezar problemas éticos nessa altura do campeonato não ajudará em nada ao debate bioético de qualidade.
Notas:
[3] JONAS, Hans. Princípio Responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro, RJ: Editora Contraponto, 2006.
19 de setembro de 2015
Hélio Angotti Neto, deão da Escola de Medicina da UNESC, é o fundador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina (SEFAM) e autor do livro A Morte da Medicina.
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