"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 28 de abril de 2015

O REFÚGIO DOS CANALHAS


Daqui a alguns dias, haverá ruidosas comemorações pelo fim da Segunda Guerra Mundial na Europa, iniciada em setembro de 1939, com a invasão da Polônia pela Alemanha nazista. Em 7 de maio de 1945, no quartel general das forças norte-americanas, em Reims, no Nordeste da França, a rendição incondicional foi assinada pelos generais alemães. No dia seguinte, em Berlim, ocupada pelos soviéticos, por exigência destes repetiu-se a solenidade, tornando-se o dia 8 uma data histórica.

Eufóricas, as gentes beijavam-se nas ruas, como na bela foto que correu mundo, do marinheiro e da enfermeira, enlaçados, cinematográficos. Da festa, porém, não puderam participar mais de 40 milhões de soldados e civis mortos enquanto duraram os combates.

Entretanto, como se os deuses da guerra ainda não estivessem saciados, o conflito continuaria na Ásia. Iniciado com a invasão japonesa na China, em 1937, encerrou-se apenas em 2 de setembro, alguns meses, muitas matanças e duas bombas atômicas depois do 8 de maio. Foi lá onde as perdas materiais e humanas bateram os recordes: as estimativas falam de cerca de 50 milhões de mortes — de balas e de bombas, de fome, de epidemias e de outras catástrofes. É certo que o assunto nem sempre merece a devida ênfase, talvez porque as vidas asiáticas, para muitos, não pesem tanto quanto as europeias, mas o fato é que nunca se matou e morreu tanto no continente asiático como naqueles longos e sinistros anos.

Muito já se disse a respeito da Segunda Guerra Mundial. Há vários ângulos possíveis e legítimos: a história militar continua suscitando interesse, é a fascinação da maldade, como assinalou Oscar Wilde. A glória dos chefes, vitoriosos ou vencidos, no formato biográfico, ainda apaixona, gerando a indagação irônica de F. Dostoiévski: “Por que é mais glorioso bombardear uma cidade do que assassinar alguém a machadadas?” O viés econômico flagra as mutações que se verificaram no quadro das “economias de guerra” e os avanços tecnológicos, resultantes das necessidades bélicas. O estudo das relações internacionais faz aparecer a questão das responsabilidades pela tragédia. A história social volta os olhos para ver como se viravam os homens e as mulheres comuns — civis e soldados — no meio daquela sangueira desatada.

É à história política que se vincula o estudo do tema de que aqui se tratará: a questão nacional e o nacionalismo durante a conflagração. Uma invenção de fins do século XVIII, produto de grandes revoluções — a americana e a francesa —, imaginada por muitos como uma particularidade que se esgotaria no século seguinte, ao contrário, reiterou-se, alcançando culminâncias inesperadas no século XX, impregnando a guerra, com seu duplo caráter.

De um lado, o nacionalismo agressivo do fascismo italiano, do nazismo alemão e do militarismo japonês. Como imaginar que sociedades sofisticadas, instruídas e estimadas como civilizadíssimas, como a alemã e a italiana, pudessem se empolgar com a submissão pela força e com o genocídio de outros povos? Como se conceber os japoneses, delicados e sutis, refinados na arte das boas maneiras, educadíssimos, embarcados em colossais matanças na vizinha China, matriz civilizacional de grande influência em sua própria cultura e história?

Um dos mistérios do nacionalismo, porém, é que ele não tem apenas a face liberticida. Há um outro lado nesta moeda, o da libertação. Na Ásia os nacionalismos conseguiram, afinal, se afirmar como alternativas de poder: libertaram-se dos japoneses e, depois, das potências coloniais europeias. O mesmo aconteceria, com variações, nas Américas, na África e na Europa. A ordem era cerrar fileiras em torno da liberdade dos Estados nacionais, reprimindo-se outras identidades e diferenças, distintos interesses. Deram-se até casos paradoxais, de ditaduras lutando pela liberdade, como o Estado Novo brasileiro.

Na União Soviética, outra ditadura em luta pela liberdade, e, além disso, socialista e internacionalista, foi também necessário cultivar valores nacionalistas para escapar do aniquilamento. Abandonou-se o formoso hino da Internacional e se compôs um outro, de ressonâncias russas. Não haveria mais “camaradas”, mas “irmãos” e “irmãs”. No fim de tudo, na Praça Vermelha, Stalin enalteceu o caráter russo da resistência. Para os russos, a Segunda Guerra Mundial seria uma “guerra pátria”, e é nestes termos que recordarão a vitória obtida há 70 anos.

E, assim, guerreando-se, matando e morrendo, opressores e oprimidos, oprimindo-se, os humanos inclinaram-se frente à pátria e às suas promessas épicas, unificados e uniformizados, dispostos e desejosos de morrer e de matar. Na morte, a promessa de vida no corpo da nação, eterna. Na vida, o desejo de morte para salvar a nação. Na liberdade, em germe, a sua perda.

Esquecidos da sábia advertência do Dr. Samuel Johnson: “O patriotismo é o último refúgio dos canalhas”.

28 de abril de 2015
Daniel Aarão Reis

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