Obtida graças a uma superior habilidade para a articulação política e à notória incompetência do governo Dilma Rousseff (PT) nesse campo, a vitória na eleição para a presidência da Câmara parece ter subido à cabeça do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
A julgar por suas mais recentes declarações, tudo se passa como se os 267 votos que recebeu de seus colegas equivalessem às dezenas de milhões que teria de conseguir junto ao eleitorado brasileiro para se tornar presidente da República.
Em tese, os votos concedidos a Cunha pela maioria dos deputados têm precisamente o sentido de legitimá-lo como representante máximo de um Poder autônomo, cuja capacidade de se contrapor ao Executivo é garantia imprescindível para o equilíbrio republicano.
Todavia, o novo comandante da Câmara avança o sinal. Não se comporta como o orquestrador das tendências vigentes no plenário, mas parte para uma carreira solo.
Já adiantou, a respeito das deliberações da Casa, o que quer e o que não quer, o que aceita e o que recusa, o que será admitido ou não por sua vontade individual, mesmo que a vaca (para recorrer à imagem da moda) tussa ou deixe de tossir.
Ocorre que a famigerada vaca não é tão metafórica assim. Em qualquer votação do Legislativo está em jogo, a rigor, a vontade da maioria do povo brasileiro.
O presidente da Câmara decreta, contudo, que projetos que tratem da legalização do aborto, por exemplo, só entrarão em pauta se passarem por cima de seu cadáver --expressão usada em entrevista ao jornal "O Estado de S. Paulo". O tema não merece discussão republicana, em especial se for para realizar uma consulta popular?
Não na sua ótica, que privilegia a ridícula proposta (de sua autoria) de criar o "Dia do Orgulho Heterossexual". Cunha entende que a vasta maioria da população sofre, ou corre risco de sofrer, discriminação por não ser gay.
O deputado, como se sabe, é evangélico. Há cerca de 80 de seus colegas com semelhantes convicções. A força dessa bancada supera sua representação numérica.
Agindo como porta-voz desse grupo, Cunha alcança vários objetivos ao mesmo tempo. Beneficiado pelo voto fisiológico do "baixo clero", o novo presidente da Câmara "ideologiza" seu papel justamente nas questões que dizem respeito ao foro íntimo dos cidadãos.
Assim Cunha amplia seu poder de barganha diante do governo, que mal e mal ainda não se rende ao conservadorismo religioso. Surge, ademais, como líder nacional, em posto de destaque numa conjuntura em que os principais partidos naufragam no descrédito.
Para insistir nas metáforas rurais, Cunha canta de galo. Resta saber se resiste à "tosse da vaca", ou aos riscos de denúncia em alguma operação da Polícia Federal.
16 de fevereiro de 2015
Editorial Folha de SP
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