A ideia da divisão emergiu na minha cabeça. Estamos divididos. O olhar que me lançou era um olhar de desdém ao vascaíno. O outro dele era o vascaíno com uma série de defeitos que se atribui a ele. Eu mesmo, ao pensar num alemão, no sentido em que se usa nos morros do Rio, fortalecia a ideia de divisão, entre mim e o outro, nós e eles. Passamos por uma campanha eleitoral pesada. O outro do petista era o tucano e vice-versa. Todos falamos em superar a divisão, depois de outubro, e achar saídas para os grandes problemas nacionais.
Entre o lugar onde estamos agora e a ilha onde nos reconciliaremos há um oceano de petróleo, na verdade um petrolão, o maior escândalo de nossa História.
Dilma afirmou na Austrália que seu governo foi o primeiro a combater a corrupção. Jogou o Lula na fogueira, tentando, como um canguru, driblar a tempestade que a ameaça.
Dilma não quis investigar. O que apareceu no escândalo surgiu de um trabalho autônomo da polícia e da Justiça.
Nesse período, Dilma brincou de esconde-esconde. Orientou sua base a boicotar a CPI. Abriu-se um inquérito na Petrobras para apurar denúncias de suborno na compra de plataformas, e constatou-se que nada houve de errado. Inocentes. Na Holanda, a empresa SBM confessou ao governo de seu país que pagou US$ 139 milhões a diretores da Petrobras.
Milhões pra cá, milhões pra lá, um diretor indicado pelo partido na cadeia, o tesoureiro do partido denunciado na delação premiada, a cunhada do tesoureiro levada à PF, tudo isso acontecendo, Dilma e o PT fazem cara de paisagem, como se não fosse com eles.
Nos depoimentos até agora, mais de R$ 200 milhões foram entregues ao homem do PT na Petrobras. O homem é amigo do tesoureiro. Talvez Dilma acredite que esse dinheiro todo foi doado à Africa para combater o surto do ebola. Mas a lógica indica que tenha sido usado nas campanhas políticas. Campanhas caras, de líderes e postes, estes mais caros ainda, porque demandam profissionais para redesenhá-los da cabeça aos pés, passando, naturalmente, pelo cérebro.
Estamos entrando numa tempestade, e a única forma de atravessá-la é admitir as evidências e aceitar que o bloco no poder assaltou a Petrobras.
Isto vale também para as empresas. Os advogados vão orientá-las a negar, embora já existam tantos depoimentos incisivos. No exterior, o conselho óbvio seria admitir o erro, pagar por ele, reformular sua estratégia. A visão macunaímica de que não importam os fatos, mas sim as versões, certamente será superada pelo realismo.
O bloco no poder pensou que isso poderia ser apenas do tamanho do mensalão. Ignorou que estava assaltando uma empresa com vínculos internacionais. Investigam na Holanda, nos Estados Unidos: o cerco está fechado. Dilma e o PT não perceberam que estão no fim da linha. E acabaram de ganhar as eleições. Será preciso muita humildade para sobreviver.
E isso não é o forte de quem quer dobrar a aritmética nas contas públicas, esconde o salto de 122% no desmatamento da Amazônia, põe para baixo do tapete números da redução da miséria.
Tudo por um modelo que preserva o emprego, dizia Dilma. Enquanto isso, 30.283 pessoas perderam seus postos de trabalho no mês em que ela se reelegeu. E como não bastasse o domínio dos números, querem o domínio das mentes: o ministro da Justiça diz à oposição como ela deve se comportar diante do escândalo. Todo um complexo político-empresarial que atrasa o Brasil foi por terra no dia do Juízo Final. Nem precisava de um impulso tão grande: estava podre.
Quando Dilma se distanciou, olimpicamente, do escândalo da Petrobras, lembrei-me do primeiro artigo que escrevi sobre o tema: “Passa passa Pasadena, quero ver passar”. Era o seu título. E veio o petrolão como uma onda gigantesca.
Dilma aprovou a compra de Pasadena “sem ter os dados”. Isso cola no Brasil. Nos Estados Unidos, onde a negociata está sendo investigada, a responsabilidade alcança também os dirigentes. Ao se distanciar do escândalo da Petrobras, Dilma parece acreditar que nasceu de novo nas eleições e vai enfrentar a tempestade com guarda-chuva e galochas do marketing.
Vai se molhar. Há uma crise econômica pela frente. Investidores estrangeiros observam cautelosos. Precisamos deles, inclusive no pré-sal. Não dá para enganar mais e erguer o punho cerrado entrando na cadeia. Já era patética a performance de José Dirceu no mensalão. No petrolão, seria um gesto, num certo sentido, libertador: sair dali para uma clínica psiquiátrica.
30 de dezembro de 2014
Fernando Gabeira
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 23/11/2014
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