As cegueiras do niilismo neomarxista de Paulo Arantes
por Ruy Fausto
Paulo Eduardo Arantes é um
intelectual brasileiro fora de série. Até mais ou menos o final da década de 80,
quando já contava bem mais de 40 anos, seu perfil não se distinguia muito do de
seus colegas. Especialista em Hegel, sua tese, defendida na Universidade de
Paris X – Nanterre, tornou-se um clássico da bibliografia filosófica brasileira.
Excelente professor, homem de esquerda como muitos dos seus pares, a partir
daquela quadra enveredou por um caminho original.
Primeiro, o que então pareceu insólito, lançou um livro sobre o próprio Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), onde lecionava – um livro sem dúvida excessivo, pelo tratamento um pouco desmedido que ele deu ao objeto, mas muito bem escrito e que teve grande repercussão. Depois, embora professor de filosofia, ou justo por isso, ao mesmo tempo que publicava excelentes livros que fugiam do ramerrão universitário, foi manifestando uma postura explicitamente antifilosófica. Para dar só um exemplo: ele andou criticando Theodor Adorno, o grande pensador de Frankfurt, porque este ainda era filósofo. Ele, Arantes, caía fora da teia, indo parar aproximadamente lá onde estava o Marx da Ideologia Alemã (um Marx que opunha à filosofia uma certa ciência e a práxis).
Politicamente, também, ia mudando. Na juventude, Arantes era um homem de esquerda, radical como todo mundo nos meios universitários da época, mas era também, se posso dizer assim, moderado em seu radicalismo. O Arantes nouvelle manière, por outro lado, passa a professar um esquerdismo extremo, porém paradoxalmente mais ou menos desabusado, porque marcado – mais do que “temperado”– por um elemento quase niilista. Algo assim como a atitude de alguém que se alinha sob a bandeira revolucionária, mas, ao mesmo tempo, supõe que o capital ganhou e continuará ganhando.
Fui tomando distância em relação aos trabalhos de Arantes, meu velho amigo, a partir de seu livro O Fio da Meada: Uma Conversa e Quatro Entrevistas sobre Filosofia e Vida Nacional (1996), cujo tom me pareceu afetado, e o conteúdo, de um antifilosofismo um pouco sumário. Levei essas observações a público, o que, como se poderia esperar, foi muito mal recebido por sua torcida uniformizada, que nunca mais me perdoou.
O Novo Tempo do Mundo e Outros Estudos sobre a Era da Emergência, o livro mais recente de Arantes, publicado neste ano pela editora Boitempo, é uma coleção de ensaios (mais algumas entrevistas) que culmina com uma longa análise das mobilizações de rua em junho de 2013. Os textos ali reunidos tratam do fim das grandes esperanças revolucionárias, da revolta nos subúrbios parisienses, do neoliberalismo e do nazismo, do golpe de 64 e do pós-golpe, do tempo (um tempo de longas esperas) no cotidiano das sociedades contemporâneas, das “insurgências” e de sua repressão nas periferias, para não falar de outros aspectos da vida nas sociedades contemporâneas, com o Brasil e o mundo exterior aí reunidos. O que é novo em relação aos livros políticos anteriores de Arantes talvez seja a atitude, senão de otimismo, pelo menos de júbilo diante das mobilizações de 2013, visível no último ensaio. Uma atitude que se destaca do tom em geral cinzento das obras anteriores, e mesmo dos outros estudos nesse livro.
Do ponto de vista teórico, em particular, a novidade me parece estar na relação do autor com a filosofia. Se é complicado dizer precisamente onde ele se situa hoje, acho que em alguma medida sua atitude mudou. Se não chega a repor a carapuça, por ele execrada, do “filósofo”, agora seu discurso toma, muito mais do que antes – antifilósofo ou não, nunca foi fácil escapar de todo das garras da velha senhora –, a forma de uma espécie de filosofia da história.
Arantes parece ter-se livrado, além disso, de certas fórmulas fáceis (do tipo Auschwitz + Gulag + Hiroshima, “fórmula trinitária do Apocalipse da civilização capitalista”), cujo simplismo alguns críticos apontaram. Mas O Novo Tempo do Mundo, que certas rodas universitárias e meios políticos transformaram em algo como um texto de referência, é ainda, de algum modo, uma melodia de uma nota só: as críticas remetem sempre ao capital e ao capitalismo. O procedimento implica uma espécie de simplificação estratégica, que acaba ameaçando a força crítica da mensagem.
No plano político, uma das principais insuficiências do livro é a de que o comunismo está muito pouco presente na discussão, o que se justifica mal, dadas as pretensões da obra. Na realidade, O Novo Tempo do Mundo aponta para um deciframento da significação geral da história dos últimos 100 anos, o que torna aquela quase omissão um déficit sério. As dificuldades do texto, no plano político, não ficam por aí. Há nele uma espécie de carta branca para a violência, que, “revolucionária” ou não, é uma arma perigosa, cujo emprego tem de ser rediscutido. As qualidades formais do texto, indiscutíveis, não atenuam essas dificuldades. Em alguns casos, podem até agravá-las.
GRANDES ESPERANÇAS
A
ideia central do primeiro ensaio, que dá o nome ao livro, se constrói com as noções de “espaço de experiência” e de “horizonte de expectativa”. O espaço de experiência indica a percepção do passado (ou dos estratos do passado) que se tem no presente; o horizonte de expectativa, também dado no presente, trata do conjunto dos conteúdos (esperanças, temores, utopias) do que se espera para o futuro histórico. Com o advento da modernidade – escreve Arantes, na esteira de um clássico –, estabeleceu-se um grande distanciamento entre a experiência do presente (com seu passado), que passa a ser lido muito criticamente, e a expectativa do futuro, em verdadeira ruptura com o presente.
Essa distância, com suas “grandes esperanças”, se manteve até mais ou menos o início dos anos 70. A partir daí, ela encolheu, e passou-se a viver em uma era de “expectativas decrescentes”. O futuro já é presente, e o presente se prolonga em futuro. Como escreve o historiador e sociólogo Immanuel Wallerstein, a partir de ideias do teórico da história Reinhart Koselleck – os dois servem como referências fundamentais para o ensaio de Paulo Arantes –, “hoje a tensão entre a experiência presente, desvalorizadora do passado, e a espera de um futuro cada vez melhor foi largamente abolida”.
“A certa altura do curso contemporâneo do mundo”, diz Arantes, “a distância entre expectativa e experiência passou a encurtar cada vez mais numa direção surpreendente, como se a brecha do tempo novo fosse reabsorvida, e se fechasse em nova chave, inaugurando uma nova era, que se poderia denominar das expectativas decrescentes.” De fato, qualquer coisa de novo na relação com o futuro se estabeleceu no pós-68, e sobretudo depois de 1989. Mas, admitido o fato, seria preciso refletir se as noções de “espaço de experiência” e de “horizonte de expectativa”, bem como a ideia de “expectativas decrescentes”, descrevem, de forma suficientemente elucidativa, o que ocorreu. Não se trata de questionar a tese de que houve mudança, nem parte da descrição que dela se faz.
O problema é saber se podemos ficar por aí. Porque, por trás das alterações do regime do tempo, há evidentemente mutação no conteúdo das crenças (até aí dirão que é evidente, porém é preciso explorar bem esse conteúdo). Mais do que isso, é preciso indagar as causas da transformação, causas que têm muito a ver com aquele conteúdo.
Por outras palavras, “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” são categorias formais (formais transcendentais, se se quiser, do que, aliás, Koselleck está plenamente consciente), mas com as quais não deixa de surpreender que um teórico que se diz “materialista” se contente. Porque se ficarmos por aí, no registro das formas, e por brilhante que seja a teorização que as introduz, elas não nos dizem muito sobre o conteúdo que as preenche, suas bases efetivas e sua história. Caíram as “grandes esperanças”, é verdade. Mas qual era o teor dessas esperanças? Arantes o indica por meio de uma palavra hipostasiada: “Revolução”. (Pelo lado da direita, esperava-se antes o Progresso, mas, aqui, nos interessa mais a esquerda.) A hipóstase conotava uma grande transformação socioeconômica, mediada por um movimento violento, e que instauraria uma espécie de reino da igualdade.
Esse movimento não veio?
De certo modo, sim. Aconteceu alguma coisa que a teorização formal sabe, mas explora muito pouco: ocorreu um movimento violento. Pelo menos, supôs-se que o que se teve no mundo, na forma das chamadas revoluções russa, chinesa, cubana etc., era bem aquele movimento pelo qual se esperara. Assim, a partir do final de 1917, o futuro já existiria sur terre, isto é, no presente, mesmo se longe, e em processo de realização. O futuro estava “lá”, ainda que a alguns milhares de quilômetros de distância, e como futuro em devir.
Esse fato é em si mesmo importante, e não pode ser esquecido quando se descreve o que aconteceu. Porém, para além disso – eis aqui o ponto mais importante –, durante anos a realidade desses países mostrou objetivamente o contrário do que representava o conteúdo das grandes esperanças. A coletivização stalinista custou uns 6 ou 7 milhões de mortos; o Grande Salto para a Frente maoista, uns 30 milhões.
Ora, apesar dos horrores, durante anos a crença – por parte da maioria – persistiu. De fato, no momento em que, numa das duas grandes pátrias da Revolução, se perpetravam algumas das maiores matanças da história, continuava-se a ver o futuro em pleno processo de realização. A esperança não diminuíra, até aumentara. Só mais tarde, com a crise desses regimes, revelou-se o enorme engano. A terra prometida foi pulando de país para país, da URSS para a China, da China para Cuba e assim por diante, até sumir do mapa.
Por trás do “encurtamento das expectativas” e da instauração de um tempo de “expectativas decrescentes”, houve um grande fenômeno histórico, até certo ponto inédito, e que a teorização formal, abandonada a si mesma, oculta: um grande movimento de libertação e emancipação se tornou o seu contrário, a saber, desembocou em poderes autocráticos e “totalitários” – palavra de que Arantes não gosta, mas que vale, sim, usar. Poderes que superam de longe o que os séculos imediatamente anteriores haviam conhecido em matéria de violência e autoritarismo.
Essa grande inversão (nos seus três momentos: as revoluções, a própria inversão e a crença ilusória de que o futuro chegara) é um fato decisivo, senão o fato decisivo, para entender a história do século XX. Ora, o livro de Arantes – que, malgré lui ou não, oferece uma espécie de filosofia da história do século XX (mais o começo do XXI) – trata pouco disso. A história do comunismo está presente, mas apenas como um contraponto pálido, mesmo se recorrente.
Sem dúvida, a esse respeito o leitor dos livros anteriores de Arantes pode registrar um progresso. Lá onde ele se referia a “estados policiais” (felizmente, o autor nunca foi stalinista, mas esses “estados policiais” eram pouco mais do que deuses ex machina, sobre cuja origem não se dizia nada), agora fala (quando fala) em “ditadura burocrática” ou “burocracia stalinista”. Mas mesmo isso é insuficiente. Dizer, por exemplo, que houve “derrapagens fatais” do lado de lá da Cortina de Ferro pode ser bem simpático, mas fica muito aquém do que se exigiria de um livro que esboça uma teoria da história dos últimos séculos.
Dada a importância do tema, eu diria que um livro como esse, com mais de 460 páginas, deveria dedicar pelo menos umas 200 ao estudo daquele fenômeno. Fica evidente que o autor não vê com muita clareza o tamanho e o alcance do que ocorreu. Há uma passagem que é suficientemente expressiva a esse propósito, apesar de se situar numa nota, e de ser muito breve e alusiva. Falando sobre hierarquias e, em primeiro lugar, sobre as do capitalismo, Arantes se dispõe a introduzir uma referência ao “socialismo real”. “É que o capitalismo”, ele diz, “tem necessidade de uma hierarquia, ou melhor, assim como o capitalismo não inventou o mercado e o consumo, ele não inventa as hierarquias, pelo contrário, estas o precedem e o comandam de antemão.”
E continua: “Daí o fracasso do socialismo real: não basta suprimir a hierarquia econômica, supondo-se que isso tenha acontecido.”
No estilo do que se lê em suas obras anteriores, nas quais se explica o fiasco do “socialismo real” pelo fato de que se quis construir o socialismo em duas etapas (como se o problema fosse o das “etapas”), o presente texto nos diz que o “socialismo real” fracassa porque não suprimiu a hierarquia política preexistente (aquela que estava presente sob o capitalismo). Ora, não foi isso o que aconteceu, ou não foi precisamente isso.
O que ocorreu não foi que as sociedades burocrático-totalitárias emergentes deixaram de suprimir a hierarquia preexistente. Elas, na realidade, criaram uma nova hierarquia, e uma hierarquia que, sob muitos aspectos, era de base muito mais autoritária do que a anterior.
E mais: a nova hierarquia nasceu liquidando os elementos democráticos que despontavam no interior das formas antigas ou que haviam surgido no interior do processo revolucionário.
Esse movimento tem de ser pensado e estudado para entender o que significam exatamente o “encurtamento das expectativas” ou as “expectativas decrescentes”, sem o que não saímos de uma espécie de formalismo, mesmo se inteligente. Com a crise final cai certa mitologia. É verdade que com a queda dos mitos pseudorrevolucionários (a suposição de que a sociedade burocrático-totalitária era uma sociedade pré-socialista), surgem outros. Brota uma atitude mais conciliadora em relação à realidade presente no Ocidente, que é a do capitalismo. Mas essa realidade é também a da democracia. Há assim um movimento de perdas e ganhos que deve ser estudado de perto e criticamente, sem dissolvê-lo numa teoria abstrata do tempo.
DEMOCRACIA E CAPITALISMO
A
história do capitalismo, tal como ela é apresentada em O Novo Tempo do Mundo, não atribui nenhum lugar mais ou menos autônomo ao “político” (refiro-me ao Estado e ao governo). O político, no estilo da tradição marxista, aparece sempre como que “arrastado” pela história do capital. E a “política”, entendida como luta política, é sempre, ou quase sempre, a luta contra o capital. Mais particularmente, nem no plano do político nem no registro da política há alguma autonomia para a democracia. Há um lugar, mas só como um pendant político do capital.
Fica fora da perspectiva de Arantes que as lutas do século XIX tenham sido em considerável proporção lutas pela democracia (ver o exemplo dos cartistas ingleses) e, mais que isto, que tenha havido uma oposição fundamental entre capital e democracia, mesmo se o primeiro conseguiu inserir a última no seu “contexto” – mas essa inserção é sempre instável. Pode-se dizer, cum grano salis, que a “democracia” é para ele o que é para Bush, só que com sinais trocados. Um significante puramente ideológico, verniz político do capitalismo. Como acontece com o conceito de “totalitarismo”, Arantes parece supor que o uso ideológico de um termo exclui a possibilidade de que esse termo tenha paralelamente um significado crítico e rigoroso.
De novo aparece aqui, na obliteração do significante “democracia”, uma das expressões do procedimento geral operado por Paulo Arantes de hiperbolização do papel do capital e do capitalismo. Não se trata de negar o peso que teve e tem o movimento do capital e o capitalismo, enquanto força social, que ocupa grandes territórios da história moderna e contemporânea. Mas, no livro que examinamos, o capital e o capitalismo estão em toda parte, são uma espécie de “Sésamo” que abre todas as portas, que explica ou deve explicar tudo. E, se acontecer de o capital não explicar o objeto, é que este não deve existir.
É fantasma ideológico, percepção errada ou coisa semelhante. Apesar de tudo o que representam capital e capitalismo, insisto, há aí erro de fato e erro de lógica.
O capital e o capitalismo estão presentes quase por toda parte no mundo, no século XIX e mais ainda no XX. Resta saber como. Arantes trata o capital como se ele fosse a essência ou o fundamento de tudo. Ora, apesar da sua hegemonia, a rigor, o capital não é essência. Pelo menos não o é por toda parte. Eu diria – omitindo aqui referências mais extensas à Ciência da Lógica de Hegel, para não sobrecarregar o leitor – que ele é antes base do que essência. Ele está “por baixo” de quase tudo, como uma espécie de solo, mas esse solo não diz sempre o que circula por sobre ele.
Um exemplo interessante desse procedimento permanente de hiperbolização do capital aparece na discussão sobre a natureza do nazismo e dos campos de extermínio nazistas. Arantes opõe duas teses: a dos que aproximam o nazismo do capitalismo, e a dos que, como o historiador marxista Moishe Postone, professor da Universidade de Chicago, acentuam o lado anticapitalista, mesmo se simbólico, no nazismo. “O campo de extermínio nazista”, escreve Postone, “não representa uma versão terrível da fábrica capitalista [...], mas, muito pelo contrário, precisa ser visto como a sua grotesca negação‘anticapitalista’.” (A tese de Postone é a de que os nazistas procedem a uma espécie de morte ritual do capitalismo. Eles liquidam em massa os judeus, de quem eles haviam feito previamente a própria encarnação do dinheiro e do capital.)
Não vou discutir em detalhe essas teses. O que quero ressaltar é como, com esse deslocamento explicativo, finalmente nos deslocamos muito pouco. Ou os campos nazistas seriam homólogos das fábricas capitalistas, ou então eles seriam o seu oposto. Vê-se o que há de comum nas duas teses (que aliás poderiam coexistir, e que são, ambas, de extração marxista). A referência é sempre o capitalismo.
Mas, se nazismo e capitalismo se “tocam” de algum modo (tudo se toca de algum modo na história contemporânea e, no caso, o laço vai mesmo, sem dúvida, além dessa afinidade geral), isso não quer dizer, seja o sinal positivo, seja negativo, que o nazismo possa ser definido rigorosamente através do capitalismo.
O nazismo se define muito melhor pela democracia.
De fato, ele não é anticapitalista, mas ele também não é essencialmente (no sentido de que o capitalismo daria a sua definição) pró-capitalista. Ele é, sim, antidemocrático. Os chefes nazistas afirmaram e reafirmaram que sua tarefa era liquidar de vez a revolução igualitária dos liberais e dos socialistas, revolução que teve início no ano maldito de 1789. Ora, quem não é capaz de pensar a democracia senão como ideologia não pode entender nem definir o nazismo.
Partindo de um livro extraordinariamente interessante, Souffrance en France (1998), do psiquiatra Christophe Dejours, e de alguns outros textos, Arantes se dispõe a pensar o nacional-socialismo a partir da noção de “trabalho”. É possível. Mas o resultado é precisamente o de operar uma aproximação excessiva entre o nazismo e outras formas sociais (o capitalismo, em particular), o que convém a certa leitura marxista. Num dos raros textos em que o autor compara os campos nazistas aos campos stalinistas, ele contrapõe o “genocídio como trabalho” praticado pelos nazistas ao “extermínio pelo trabalho”, que caracterizaria a versão stalinista dos campos. Ora, o denominador comum a obter dessas fórmulas, apesar das aparências literais, não é o significante “trabalho”, mas os outros dois, quase sinônimos: “genocídio” e “extermínio”. Para chegar até aí, entretanto, seria preciso se libertar um pouco mais da “grade” (no duplo sentido do termo) marxista, que o aprisiona.
A GUERRA CIVIL MUNDIAL
S
e a história moderna e contemporânea é, num registro estrutural, mais ou menos reduzida à história do capital e do capitalismo, no plano das lutas (mas, finalmente, há pouca “luta” no livro de Arantes) ela é, senão “luta de classes”, pelo menos “guerra civil” (sem que fique muito claro até onde vai uma, até onde vai outra, ou se o autor assimila esta àquela). Bem entendido, houve muita guerra civil e também luta de classes no século XX, mas o século teve muito mais do que isso.
O mínimo que se poderia dizer é o que escreve Orlando Figes no prefácio do seu muito importante A Tragédia de um Povo: a Revolução Russa 1891–1924: “A revolução [foi] todo um complexo de diferentes revoluções, desencadeadas em meio à Primeira Guerra Mundial, e que provocaram uma reação em cadeia de mais revoluções, guerras civis, [guerras] étnicas e guerras entre nações.”
Ora, no esquema arantiano (que, bem entendido, deve ao filósofo e jurista Carl Schmitt, mas com inflexão materialista) a realidade é mais simples. Ele diz: “[...] as ‘potências’ vitoriosas na Primeira Guerra Mundial formaram uma outra Santa Aliança sob liderança norte-americana para esmagar a revolução europeia iniciada em 1917 e que nos anos 20 já assumira as proporções de uma Guerra Civil Mundial em que se confrontavam revolução e contrarrevolução.” A ideia aparece novamente numa referência às “marchas e contramarchas da luta de classes ao longo da Guerra Civil Europeia da primeira metade do século XX”. Em outro exemplo, a “guerra social havia se convertido em uma Guerra Civil Europeia, como ficaria claro depois de 1917”.
Assim, a história da primeira metade do século XX seria a história da “guerra civil”, na qual se reconhece a presença da luta de classes. Vê-se o alcance negativo da redução. O choque entre poderes de Estado, que foi um dos elementos maiores da história do século XX, se transforma em epifenômeno, simples ilusão fenomenal, nada mais do que uma aparência. Ele é substituído por uma suposta essência: a Guerra Civil dos poderes contrarrevolucionários lutando contra a Revolução. Repito: claro que houve guerra civil ou mesmo luta de classes no século XX, mas nada justifica reduzir toda a história do século ao confronto entre uma frente de poderes contrarrevolucionários, o dos vencedores da guerra de 1914–18, e uma frente revolucionária popular.
Na Espanha, por exemplo, houve uma verdadeira guerra civil, mas os contrarrevolucionários não eram aliados dos grandes vitoriosos da Primeira Guerra, mas da Alemanha e da Itália. As lutas no Terceiro Mundo, no mesmo século, tiveram uma dimensão classista, mas muito mediada por outros elementos, entre os quais o peso da Terceira Internacional, pretenso comando mundial do proletariado. Quando os dados empíricos confirmam pouco uma tese, tanto pior para esses dados e para a boa empiria. Entre o esquema ditado pela visão “revolucionária” dos fatos e a realidade, quem tem sempre a última palavra é o esquema, e não a realidade.
O mesmo poderia ser dito da forma pela qual é tratado o jogo de forças mundial no nosso presente. O quadro é o de um domínio esmagador do capital, na forma transfigurada do capital financeiro e também da dominação política. E, apesar de umas poucas referências à China, a dominação aparece, tanto do ponto de vista financeiro quanto do ponto de vista político, como essencialmente americana e, apesar de tudo, numa figura que lembra muito a do antigo imperialismo.
Mas a verdade é que nem o domínio americano é assim tão incontestável, nem representa ele hoje, sem mais e sempre, o lado “pior” (mesmo se ele está longe de ser “bom”). Sim, porque há atualmente muitos focos de opressão e de exploração do lado dos “pequenos poderes”. O sinistro Califado Islâmico, onde vendem mulheres e degolam e crucificam prisioneiros, é o último e melhor exemplo. O esquema de leitura do autor é simplista no balanço das forças e no julgamento político. Lembra o discurso de esquerda da época em que se travavam guerras coloniais.
Claro que Arantes não elogia nenhum califado, mas a impressão que se tem, lendo as passagens do seu livro relativas a esses temas, é a de um cenário de assimetria radical. O que simplifica muito o processo, e o deforma. Na mesma linha de ideias, há uma curiosa tendência a reduzir diferentes agências e organizações internacionais humanitárias a simples instrumentos do capital. Isso às vezes é o caso, mas nem sempre.
A primeira coisa a observar aqui é que os erros e crimes dos ocidentais não estão sempre no fato de intervir – às vezes eles residem justamente na não intervenção, como no massacre de Srebrenica, na Bósnia, ou no genocídio em Ruanda, ambos nos anos 90. Pode parecer um detalhe, mas não é, porque mostra a complexidade da situação.
E, nesse contexto, seria importante lembrar que, no caso do massacre dos tútsis em Ruanda, o Médicos Sem Fronteiras fez apelos dramáticos em favor de uma intervenção, apelos, aliás, que foram finalmente ouvidos, mesmo se tardia e limitadamente. Um exemplo importante que mostra o quanto o mote “intervenção internacional e filantropia” é simplificador e, por isso mesmo, falso.
“ESTADO DE EXCEÇÃO”
S
e a narrativa oferecida por Arantes padece de uma compreensão melhor das relações entre democracia e capitalismo, insuficiência que vem do impacto, apesar de tudo poderoso, do modelo marxista, a análise da história dos séculos XX e XXI, sobre a qual já falei alguma coisa, vem dominada por uma tese cada vez mais em voga, tese que tem sua origem nas ideias de Carl Schmitt – replicada depois por Walter Benjamin e, mais recentemente, pelo filósofo italiano Giorgio Agamben.
Trata-se da ideia de que a política do século XX pode e deve ser decifrada a partir da noção de “estado de exceção”: “[Há um] argumento geral desenvolvido por Giorgio Agamben na forma de um diagnóstico de época formulado nos anos 1990”, escreve Arantes, “segundo o qual o ‘estado de exceção’ – [...] état de siège [...], emergency powersou martial law [...] – tende cada vez mais a se apresentar como paradigma de governo dominante na época contemporânea.”
Em O Novo Tempo do Mundo, o “estado de exceção” ou de “urgência” – figura jurídica que suspende direitos e garantias constitucionais dos cidadãos, a ser adotada em princípio provisoriamente em situações de emergência, como guerras ou calamidades públicas, para aumentar a eficácia do Estado – aparece como uma fórmula que encerra uma verdadeira teoria geral da história do século passado e do que já se viveu do século atual, fórmula que vale para o capitalismo liberal-democrático, para os regimes mais ou menos autoritários, mas também para o nazismo. Quaisquer que sejam as aparências de um desses regimes políticos, o “estado de emergência” é sempre o seu segredo.
Para mostrar a universalidade do seu papel e o caráter, senão derrisório, pelo menos adjetivo de certas distinções entre regimes tidos como mais democráticos e outros claramente autoritários, invoca-se frequentemente a passagem da República de Weimar ao nazismo. Hitler pôde proclamar a lei marcial em 1933, após o incêndio do Reichstag, porque a Constituição da República de Weimar reconhecia essa possibilidade no seu capítulo sobre o estado de exceção. Reconstituir-se-ia assim a linha de continuidade entre a República de Weimar e o regime nazista.
Mas de que vale a tão falada tese de que o “estado de exceção” define a soberania na época contemporânea? Mais importante do que isso, até onde vai o poder explicativo da tese? Em primeiro lugar, seria preciso definir melhor o que a “exceção” representa. A primeira questão é a de saber se devemos considerá-la enquanto efetiva ou como virtual. O livro cita um texto de Agamben, que comenta Schmitt: “O funcionamento da ordem jurídica baseia-se, em última instância, em um dispositivo – o estado de exceção – que visa tornar a norma aplicável suspendendo, provisoriamente, sua eficácia.”
E Arantes observa que seria falso afirmar, como escreve um comentador, que, segundo a tese schmittiana sobre o estado de exceção, “toda a ordem legal ‘seria como que uma latente e intermitente ditadura’”. Muito bem. O estado de exceção tem de permanecer latente para se efetuar. Com isso, diz-se de fato alguma coisa. Porém, se ele se efetuar, o que acontece? A máquina não funciona, escreve Agamben, ou, como sugere Arantes, passar-se-ia à ditadura.
De novo, eu diria, muito bem. Porém, entre essas duas situações, de que ordem é a diferença? Apesar de suas explicações, Arantes (a partir de Schmitt e de Agamben, pelo menos tal como ele os lê) não vê certamente aí uma grande ruptura. Na realidade, a despeito das advertências, quer se trate do Brasil, quer se trate da Europa, o livro não cessa de aproximar os períodos democráticos dos períodos de ditadura.
A ditadura militar no Brasil e os governos que a sucederam seriam diferentes, mas não essencialmente diferentes. Sugere-se uma “substituição’’ de violências, fala-se de um “primeiro” e de um “segundo regime de violência”, um pouco como se, no primeiro caso, tivesse havido “matança seletiva” na cidade, e, no segundo, assassinatos “indistintos” na periferia. Mas a verdade é que não houve substituição de massacres: sob a ditadura, os dois morticínios coexistiam e se acumulavam.
Se o tema das afinidades entre a ditadura e a pós-ditadura no Brasil é do autor, o da quase continuidade entre Weimar e o nazismo é introduzido a partir de Schmitt e de Agamben. Enfim, a famosa teoria sobre “estado de exceção”, para tomá-la na sua expressão geral – teoria que é pobre na forma e errada no conteúdo –, tem antes de tudo a função de obscurecer a distância entre as democracias e as ditaduras, o que evidentemente limpa a barra das últimas e suja a das primeiras. Tal é, no fundo, o segredo da tão falada tese.
O primeiro resultado, desastroso, de tal teoria é que ela não vê o que há de radicalmente novo no nazismo. Este não é um avatar, mesmo extremo, do estado geral de exceção.
O nazismo é uma forma social original, monstruosa, bem entendido, mas que se revela essencialmente diferente dos regimes de capitalismo liberal-democrático, e mesmo de capitalismo autocrático. A referência à lei marcial de Hitler, proclamada com base no artigo sobre o estado de exceção contido na Constituição de Weimar, ou, antes, as consequências que se pretende tirar disso são um engodo. Que Hitler se tenha valido daquele artigo para declarar a lei marcial não explica nem a gênese do nazismo nem a sua essência.
Quanto às limitações sucessivas da liberdade sob Weimar, se derivam em parte dos projetos antidemocráticos das forças conservadoras, elas se explicam também, e muito, na origem, precisamente pela ameaça que representavam os nazistas para a República. Mas não só os nazistas, também os comunistas. Comunistas e nazistas sabotaram a República de Weimar. O que se costuma dizer é que a democracia de Weimar, como a democracia em geral, é “fraca”. E do “fraco” desliza-se para o “culpado”. Se a democracia é fraca, há que fortalecê-la, e não liquidá-la, como se pretende nos meios neoschmittianos... de esquerda.
Voltando ao tema geral. Talvez o mais interessante na crítica daquela, a meu ver, muito miserável teoria sobre a história contemporânea, teoria que enquanto esquema jurídico e único acaba apagando as descontinuidades presentes nessa história, seja insistir no fato de que ela tem como base, e não muito oculta, a crítica da democracia. A saber, a ideia de que a democracia é apenas uma variante de um mesmo poder autocrático.
Mas aqui essa indicação ganha um interesse particular, levando-se em conta o que escrevi sobre o peso do marxismo na leitura da história do capitalismo que o livro oferece, em particular sobre o eclipse do lugar das lutas democráticas e da democracia em geral. É que a tese schmittiana-agambeniana vem reforçar o déficit marxista em matéria de análise da democracia. Se a democracia aparecera antes, na esteira teórica do marxismo, como pouco mais ou menos do que como um epifenômeno do capitalismo, agora ela desponta como um simples avatar da trajetória do “estado de exceção”.
Para não prolongar muito mais esse ponto, essencial entretanto, faço apenas mais duas observações. Uma, a de que o nazismo e a Shoah acabam passando literalmente para um segundo plano, reduzidos a uma espécie de episódios do “caminho alemão”. Paulo Arantes escreve: “Entendido o antissemitismo nazi como uma tentativa paranoica de ultrapassar violentamente a história percebida como uma perene ameaça de descontrole e degenerescência, e ultrapassá-la por meio do Terror, o Holocausto passa para um discreto segundo plano, e o Nazismo, por sua vez, entra na conta das aberrações regressivas da via prussiana [...].”
Em segundo lugar, voltando ao belo livro de Christophe Dejours, que se ocupa do sofrimento no trabalho, observemos que Arantes extrapola muito as teses do autor. Dejours analisa a banalização do “sofrimento social” sob o neoliberalismo, banalização que se tornou célebre em outro contexto, a saber, a propósito do “mal” que praticaram os atores do projeto nazista. Entretanto, a comparação (nos dois casos, trata-se de “banalização”, melhor do que “banalidade”), que é perfeitamente válida dentro dos limites do que escreve Dejours, não permite afirmar que só com o neoliberalismo “podemos enfim atinar com a mola secreta do poder nazi”. A mola do nazismo era outra.
É importante ressaltar ainda, a propósito do livro de Dejours, o fato de que ele introduz uma espécie de fundamento para a crítica de esquerda, a ideia de “sofrimento social”. Fundamento que, bem entendido, é heterodoxo em relação a Marx (ao Marx maduro de O Capital, em todo caso) e se relaciona, como assinala Arantes, com a ideia de “alienação”. O “sofrimento social” é tratado por Dejours como uma “injustiça”, o que também nos leva para longe de Marx, que, como se sabe, era muito avesso aos termos “moralizantes”.
Mas, se ter dado destaque ao que escreveu Dejours é certamente um mérito de O Novo Tempo do Mundo, pode-se perguntar em que medida Arantes incorporou esses elementos heterodoxos como fundamentos gerais para uma crítica do capitalismo, em particular, e da exploração e opressão, em geral. Claro que aquelas noções estão de alguma forma presentes, pelo próprio fato de que o autor se utiliza abundantemente do que escreveu Dejours. Mas elas não “informam” ou, em todo caso, certamente não informam de um modo suficientemente claro e não contraditório, o conjunto do texto.
“NÃO QUEREMOS MAIS SER GOVERNADOS”
O
Novo Tempo do Mundo confere um lugar importante a certa literatura sociológica e crítica que trata da miséria e da violência nas periferias, nas favelas e em outros espaços do mesmo tipo. A questão central é a da violência policial. A realidade desta é indiscutível, e é com razão que o autor dá um relevo especial ao tema. Entretanto, também aqui há hipérbole. E esta corre o risco de enfraquecer o argumento, quando não de liquidá-lo.
Para dar um exemplo, muito característico, não posso deixar de comentar o que Arantes escreve sobre as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), forças de intervenção policial que atuam nas favelas do Rio, combinando ocupação do território e trabalho social. Não estou em condições de fazer uma avaliação precisa do que significaram e significam as UPPs. Elas obtiveram certamente alguns resultados na luta contra o tráfico. Mas sua atividade ficou marcada ou manchada por violências contra a população, além do fato de que, frequentemente, os traficantes abandonavam a zona sob intervenção para se instalar em outros pontos do território. Porém, o que de qualquer modo parece chocante no texto de Arantes é que ele vê as UPPs como um simples elemento de repressão policial, “trabalho social armado” que visa pacificar as populações. E da dualidade repressão/trabalho social (ecoando o arcuseano welfare/warfare) passamos à Batalha de Argel, à Guerra da Indochina ou às ações imperialistas na América.
Ora, quaisquer que tenham sido as violências praticadas pela polícia em diferentes situações, e independentemente do que escreve tal ou qual ideólogo, do lado de cá ou do lado de lá, que Arantes gosta de citar, as intervenções do tipo UPP não são de forma alguma comparáveis, mesmo mutatis mutandis, a eventos como as intervenções norte-americanas ou europeias na América, África e Ásia. Por uma simples razão: é que, de uma forma ou de outra, mesmo se concluirmos por uma condenação geral das UPPs, existe um fator, aí presente, que estava ausente nos outros casos, do qual o autor esquece (ou quase esquece, porque há menções, mas tão poucas e tão escondidas nas notas que a gente perde de vista). Este elemento é a criminalidade.
Ele cita um texto em que se afirma que “a presença de grupos armados é [...] um pesadelo para o conjunto da população carioca”. Há outras breves referências. Mas nada disso o impede de incluir as intervenções do tipo UPP num esquema mundial de intervenções imperialistas. E, talvez ainda mais importante, a intervenção do Estado acaba sendo reduzida a pouco mais do que um tipo especial de banditismo. A partir de operações como a das UPPs, Arantes chega à “evidência de que o Estado está voltando a ser a relíquia que sempre foi, um bando armado que vende proteção”. Ora, se é verdade que ações brutais de uma polícia arquicorrupta tendem a fazer do Estado algo como um poder de gangue entre outros poderes de gangues, nem de direito nem mesmo de fato o Estado, e mesmo o Estado brasileiro, representa hoje rigorosamente tal coisa.
Exagero na crítica? Arantes não quis dizer exatamente isto? A verdade é que, afinal, a gente pergunta: o autor acredita ou não que, de uma forma ou de outra, só através do Estado será possível combater a grande criminalidade? Porque finalmente não se sabe bem se Arantes é a favor ou contra o Estado. Existe, aliás, uma antinomia na palavra de ordem (que ele aprecia): “Não queremos mais ser governados, ou não mais assim.” Não queremos mais ser governados? Ou não queremos mais ser governados assim? Vai aí uma diferença que não é pequena.
Há um modo mais universal de desconstruir a hipérbole da explicação pelo capital, pelo capitalista, ou pela “forma atual de acumulação do capital”. Eu o insiro aqui, no final dessa sucessão de topos críticos, como um argumento que, de certa maneira, os resume. Arantes não cessa de denunciar as aberrações e violências do capitalismo contemporâneo. No que ele, em geral, tem certamente razão. Tudo é objeto de crítica. Mas aqui seriam necessárias algumas observações.
Há na realidade social – a distinção é utilizada por Marx, que, no seu sentido geral, a tomou de empréstimo de seu mestre Aristóteles – uma forma e uma matéria. Há uma base tecnológica, ligada a certo nível de desenvolvimento da ciência, além de certos pressupostos demográficos etc., o que, tudo junto, representa a matéria do social. Mas há também uma forma social, que, no caso das nossas sociedades ocidentais (e hoje, bem mais do que isso), é a forma capitalista. Bem entendido, a forma impregna a matéria, modifica-a, dá-lhe um caráter particular. De qualquer modo, não desapareceu a distinção entre forma e matéria. Perdê-la de vista é operar um movimento simetricamente inverso, mas não menos redutor, ao da crítica reacionária que transforma a forma em matéria (transforma o capitalismo em “sociedade industrial”). Aqui, pelo contrário, é a matéria que vira forma (a forma capitalista faz perder de vista a matéria).
Escamoteia-se, assim, o desafio que representa tentar pensar uma sociedade altamente desenvolvida do ponto de vista tecnológico como uma sociedade – o que ela poderia ser – emancipada. Que não se diga que a crítica não está obrigada a tanto. Ela não estava, de certo modo, no tempo de Marx, ou para Marx. O comunismo havia de resolver (quase) todos os problemas, e era melhor não abarrotar as “panelas do futuro”. Argumento válido, dentro de um certo quadro de pensamento, mas que não serve mais. Se é que alguma vez serviu.
Para dar um exemplo, a partir de certos autores, e no contexto de uma análise dos territórios em que domina uma ordem disciplinar, o autor escreve: “As companhias aéreas [...] são antes de tudo instituições disciplinares.” Em geral, não duvido, embora haja exagero nisso. Mas não se trata apenas de exagero.
Há aí um problema maior. Arantes não discute o que poderia ser uma sociedade emancipada em que, por exemplo existiriam aviões. Sim, porque podemos – e até devemos – imaginar uma sociedade emancipada em que haveria aviões. De fato, um projeto de emancipação não deve propor a liquidação de grandes conquistas tecnológicas, pelo menos na sua forma geral. E se é assim – independentemente da disciplinarização que existe, certamente, no nosso tempo –, é evidente que a presença daquela tecnologia implicaria um certo número de exigências, do tipo hierarquia de comando, organização da espera, e mesmo, conforme a situação, inspeção do que se embarca a bordo dos aviões etc.
Alguém pode dizer que me ocupo de banalidades, mas é a partir das banalidades que se pode ver o que não funciona na obra que examinamos. Minha tese é a de que Arantes confunde crítica da forma e crítica da matéria. Ou, antes, atribui à forma todos os problemas, inclusive aqueles que se devem à matéria. Isso certamente facilita as coisas para ele, mas não serve à crítica. Um ponto curioso é a denúncia que ele faz da fila, em particular da “fila para comer”. Esta remeteria, em última instância, às prisões e aos campos, como afirmaram sociólogos críticos.
Ah, que horror fazer fila para comer! Horror banalizado, já que, no que se refere a essa forma de disciplina, ter-se-ia perdido ou recalcado a reação original, que era de repulsa. Ora, a fila (incluindo a fila para comer) decorre muitas vezes de condições e exigências, por assim dizer, técnicas, que pouco ou nada têm a ver com a opressão. Faz-se fila na cantina de uma escola. A cantina é uma instituição repressiva? É opressivo, que, na cantina, cada um se sirva obedecendo a uma fila? Claro que poderia ser de outro jeito, mas o arranjo seria mais livre? Pode haver fila até em piquenique de amigos, quando somos suficientemente numerosos, e alguém prepara uma sopa para todo o grupo.
Na realidade, apesar dos horrores das filas imensas à espera de alimentos escassos ou outros produtos de primeira necessidade, e das filas para fazer pedidos às autoridades, pedidos que não serão satisfeitos e nem sequer respondidos, a fila, em si mesma, não tem nada de opressivo ou irracional. Pelo contrário, eu diria que ela é um procedimento igualitário, que serve a uma sociedade democrática. Nunca me esqueço da minha primeira volta ao Brasil, quando em vez de esperar a minha vez, à maneira europeia, fazendo democrática e pacificamente uma (pequena) fila, fui obrigado a lutar contra um bando de gente agressiva, amontoada em torno de um balcão.
Tudo isso pode parecer insignificante, repito, mas importa mostrar o caráter hiperbólico e por isso inoperante do estilo crítico do livro que examinamos. Aliás, a propósito de filas, diria ainda que também quando se fala em público, em discussões, mesas-redondas ou colóquios, é preciso fazer fila, isto é, aguardar a vez e respeitar democraticamente o tempo de palavra. Quem quiser falar mais, que espere primeiro, na fila, os minutos de intervenção de cada um dos outros. É pelo menos o que fazem os que têm o mau hábito de respeitar a disciplina democrática.
DEPOIS DE JUNHO
É
hora de examinar o que representa propriamente a política em O Novo Tempo do Mundo. Como já observei, o que desde o início incomoda na política de Arantes, tal como aparece no presente livro, é que ela se constrói tendo como fundo uma entidade hipostasiada, a “Revolução” (com maiúscula). Uma tese importante nesse contexto é a de que hoje não se é fiel à Revolução. O lugar dessa entidade teria sido tomado por outras, em primeiro lugar a “Urgência” (também com maiúscula). Se antes se falava em Revolução, o grande evento que a esquerda desejava e a direita execrava, hoje não se fala mais dela, e seu lugar foi tomado por algo assim como a “grande catástrofe” – nuclear, climática, biológica –, que alguns temem e outros denunciam como mito.
Só que as coisas não se passaram exatamente desse modo. Essa descrição da mudança é acrítica. A mudança real (porque houve uma), do ponto de vista crítico pelo menos, que é o daqueles que privilegiam o destino das lutas emancipatórias, se escreveria mais ou menos deste jeito: as lutas contemporâneas pela emancipação passaram a ter múltiplos objetivos; elas deixaram de visar apenas à igualdade e à liberdade (aliás, esta última, à luz do que ocorreu no século XX, ganhou uma força inédita), e a elas se somou a luta pela “melhor sobrevivência” da espécie no planeta. Para não falar em outras lutas. Todo o problema da esquerda atual é saber como articular essas diferentes frentes.
Ora, Paulo Arantes não desce até aí. Em vez de tentar combinar elementos, ele prefere colocá-los em oposição. Em vez da “Revolução”, que visaria à igualdade, teria surgido uma nova entidade, a “Urgência”. E aí, ai da Revolução. E que não se diga que houve uma nova distribuição de forças, de um lado os que acreditam na Urgência e que temem catástrofes mais ou menos iminentes, de outro os que não acreditam nela. Em O Novo Tempo do Mundo, a diferença entre uns e outros, “catastrofistas” e “integrados” (é essa a sua terminologia), não é fundamental. Uns se somariam aos outros no mesmo gesto de repúdio à Revolução, ou ao seu equivalente à direita, o Progresso.
Por esse caminho é muito difícil entender os problemas contemporâneos, em particular os que tocam às lutas de emancipação. Em primeiro lugar, seria necessário precisar bem o que o autor considera real, e o que, para ele, é fictício em matéria de catástrofes eventuais. As fronteiras entre realidade e ficção seriam imprecisas? Não creio. Ou nem tanto assim. De qualquer modo, se não distinguirmos bem o que é real do que é aparente, é impossível lutar, senão sobreviver.
Ora, o livro de Arantes evolui numa zona cinzenta, às vezes não sabemos bem se o objeto (ou o evento possível) a que ele se refere seria real ou imaginário, se para ele o risco da catástrofe seria mesmo real (acho que sim, mas há passagens ambíguas). No que me concerne pelo menos – e muita gente pensa do mesmo modo –, o risco é real, muito real, quer se trate da acumulação de co2 na atmosfera, do “acidente” nuclear ou da proliferação de certos vírus. Mas, se tal é o caso, parece também, salvo melhor juízo, que devemos tomar posição diante dele, assumir nossas responsabilidades, como se costumava dizer, pelo menos no plano do discurso, e não se refugiar nas delícias e no brilho do nosso discurso.
Descrevi o lado dos que afirmam que o perigo é real. E eles não se limitam a afirmar. Muitos se dispõem a lutar (em organizações diversas, ONGs, partidos políticos) para que o pior não aconteça. Estão aí, em nível mundial, manifestações importantes contra a utilização da energia nuclear e contra todos os atentados graves ao meio ambiente. Essa gente, seja lembrado, invoca muitas vezes o chamado “princípio de precaução”.
Pois, coerente com o curso geral dos seus argumentos, Arantes joga fora o “princípio de precaução”, junto com o seu contrário, que se poderia chamar talvez de “princípio de audácia”, ou melhor, “de temeridade”, o que professam aqueles que não acreditam em perigo nuclear e quejandas ficções. Como vimos, tudo vai para a mesma lata. Um pouco como uma nova versão da famosa “lata de lixo da história”, de tão triste memória. Só que nessa nova versão entra todo mundo. Este me parece ser, infelizmente, o contexto geral da política arantiana.
Mas vamos ao particular. E aí há que falar principalmente das mobilizações de junho de 2013. Ah, as mobilizações de junho! Como já sugeri, Paulo Arantes professa em geral um pessimismo teórico-prático. Ele descreve o mundo capitalista como uma realidade mais ou menos fechada, uma “máquina do mundo” no interior da qual não há lugar nem para a reforma, nem a rigor para a “Revolução”, nem, ainda, para o “reformismo radical”. Até aí, alguma verdade. Mas respiremos. Se é meia-noite no século, é também meio-dia. Os jovens se mobilizaram. Não se trata do velho proletariado, nem do proletariado em geral, mas de uma camada nova, sui generis. Certo. Enfim, eles se mobilizaram, e com isso entramos num novo registro, o do “depois de Junho”.
Deixo claro que simpatizo com as manifestações de junho e que, além disso, estou convencido de sua importância. O problema é saber o que elas significaram, que perspectivas têm, e o que se poderia dizer da maneira pela qual foram conduzidas. Arantes as teoriza a partir de Agamben, o que significa em geral fazer uso de fórmulas pedantes e, tudo somado, superficiais.
Devo sublinhar que nem tudo o que ele escreve sobre essas mobilizações me parece falso. Por exemplo, é feliz ao insistir sobre a coexistência de reivindicações bem precisas e aparentemente minúsculas – abaixo o aumento de 20 centavos –, de um lado, e de outro uma perspectiva implícita ou explicitamente mais ampla, além de aberta para um leque virtual de exigências. Mas o tema central é o da “profanação”: profanar, segundo Agamben, significa “restituir ao livre uso o que antes estava indisponível, confiscado e preservado fora do alcance em sua aura”, nos diz Arantes.
A
tese geral que está por trás do mantra da profanação é a de que o capitalismo, hoje, não se afirma mais “unicamente através da repressão”. O autor começa por citar um texto do coletivo Passa Palavra, segundo o qual o capitalismo quer que “os de baixo” sejam “engajados e participativos”, mas desde que engajamento e participação aconteçam “dentro de espaços preestabelecidos”. Agora é Arantes quem fala: “Um dos choques insurgentes de junho consistiu justamente na profanação desse confinamento.” Vê-se mal o quanto se avança – ou não avança – com esse mote da “profanação”.
Mas o pior é que, entre as “profanações” atribuídas ao movimento, e que constituiriam a sua originalidade e grandeza, está a profanação... “da estratégia da não violência”. Sim, pois Arantes incorpora o movimento, por assim dizer, em bloco. Ele o saúda, não só sem fazer restrições aos atos de violência que, em alguns momentos, o acompanharam, mas considerando esses atos, ao que parece, como um dos pontos fortes e originais do movimento.
Em mais de um momento O Novo Tempo do Mundo abre alas para os black blocs: “Mais uma vez: jamais esquecer, como se esqueceu na hora em que a tática black bloc tornou-se a bola da vez, a dimensão inédita assumida pela tática da ação direta adotada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – ocupar, resistir, produzir –, o que lhe rendeu de volta a fúria assassina dos proprietários e seu braço estatal.”
Ou ainda: “O fenômeno black bloc nos acontecimentos de junho não era trivial.”
Tocamos aqui no problema da violência. As manifestações de junho foram violentas? E, se o foram, por iniciativa de quem? Qual a atitude primeira do Movimento Passe Livre diante da violência? Ora, se estudarmos as primeiras declarações de seus membros (já que, por definição, eles não têm chefes), veremos que havia uma tendência evidente, por parte deles, em direção à não violência. Havia até um exagero nesse direcionamento: os MPL se dispunham a dançar nas manifestações, e não queriam nem carro de som – para não “oprimir” os manifestantes –, nem, ao que parece, serviço de ordem. Não posso exibir documentos, mas creio que foi essa a atitude deles.
Depois as coisas mudaram um pouco. Claro, houve violência, e grande violência por parte da polícia militar. Alguns manifestantes reagiram. Mas, principalmente, apareceu um grupo, os famosos black blocs, ativistas encapuçados, que se propuseram a enfrentar a polícia e também a destruir peças do patrimônio público ou privado.
Com os resultados que conhecemos: alguns feridos, também do lado de lá, e mais prisões. Deixo de lado outros problemas, como o da presença de elementos que se podem considerar como “de direita” no interior das manifestações, o que, sem dúvida, complicou o quadro.
Mas o que me impressiona, em sentido negativo, é que os militantes dos grupos que estão na origem das mobilizações de junho (e, em parte, das manifestações anteriores) foram progressivamente definindo uma atitude de quase respeito, respeito político, ou talvez até mais do que isso, pelo grupo violento dos encapuçados. Insisti, em textos anteriores, sobre o quanto isso representou um engano lamentável, fruto sem dúvida do fetichismo da violência que domina parte da esquerda desde pelo menos um século.
Ora, Arantes não distingue as atitudes presentes nas práticas dos manifestantes, tampouco assume uma posição crítica diante do que é uma concessão, de gente que na origem tinha uma postura não violenta, às ações de um grupo notoriamente violento. O que me parece extremamente grave.
Eu distinguiria sim, na contramão do discurso arantiano (oh, ilusões reformistas e angelistas, dirão eles!), os manifestantes pacíficos dos quebradores de ônibus e incendiários de automóveis. Explico-me: não se trata de afirmar que, no frigir dos ovos, seja sempre possível impedir a um manifestante que ele reaja à violência com um gesto de defesa mais ou menos brusco. Isso pode ocorrer, e de fato ocorreu. Mas não se trata disso. A questão é que se constituiu um “bloco” de violentos e, através deles, um éthos de violência, cujas consequências, estou convencido, são funestas para o movimento.
Bem entendido, a violência maior vem do lado de lá. Mas não é esse o ponto. Haja ou não violência do outro lado da barreira, devemos coibi-la do lado de cá, e não adotá-la como bandeira. Isso, por duas ordens de razões. Na linguagem antiga, razões táticas e razões estratégicas.
Táticas, porque as reações violentas levam a violências ainda maiores do outro lado, e evidentemente não somos os mais fortes, não venceremos nessa luta hiperdesigual. E o preço que se paga por ela, em termos de prisões, ferimentos e mortes, é muito alto. No outro plano, há dois argumentos decisivos. É absurdo pensar que chegaremos ao poder ou a algum tipo de vitória maior, em médio ou longo prazo, apelando para aqueles gestos violentos. Sem dúvida houve, é claro, na história movimentos violentos que foram vitoriosos. Mas isso se deu em circunstâncias muito particulares e muito diferentes das nossas.
Para além disso, parece evidente que a formação de um grupo violento é a pior coisa que pode acontecer para manifestantes que pregam a autonomia, isto é, que têm uma agenda libertária. O grupo “armado”, como todos os grupos armados, vai se cristalizando em “grupo de vanguarda”, isto é, em grupo dirigente – e, com isso, a autonomia do movimento vai por água abaixo.
LÓGICA E POLÍTICA
N
ão faço concessão a uma fórmula convencional ao ressaltar tudo o que se pode encontrar em O Novo Tempo do Mundo. Já falei da prosa de ensaio, sob muitos aspectos invejável, da riqueza da bibliografia, das análises sobre o tempo e a tortura da espera sob o capitalismo contemporâneo – análises que culminam com o recurso às obras literárias de Kafka e de Beckett –, da presença de um livro tão importante como Souffrance en France, de Christophe Dejours. Não é pouca coisa. E entretanto...
O Novo Tempo do Mundo sofre de um déficit lógico e de um déficit político. Esses dois déficits se cruzam e se refletem. O livro tem alguma coisa de errado também num registro que se poderia chamar de retórico. Começo por esse último ponto. Apesar da beleza do estilo, ou talvez por causa dele, o tom de O Novo Tempo do Mundo não convence.
O brilho da prosa incomoda às vezes, e por várias razões. Um conteúdo que se revela deficiente, envolto numa prosa brilhante, é muitas vezes uma solução pior do que um conteúdo imperfeito, expresso em prosa sem brilho. A primeira situação, que é, em geral, a do livro, é muito mais mistificante. Depois, o virtuosismo da prosa às vezes passa do limite. E, em alguns casos – veja-se o capítulo com a entrevista “Tempo de exceção” –, o virtuosismo degenera em prosa de “piloto automático”, numa avalanche de palavras.
De forma geral, o tom de O Novo Tempo do Mundo é eminentemente elitista, senão aristocrático. O narrador encarna, de certo modo, o “espírito absoluto” hegeliano.
(O hegelianismo de Arantes, infelizmente e de forma surpreendente na pena de um tão bom conhecedor de Hegel, é menos o da dialética, como discurso crítico, do que o do idealismo dogmático.) Ele oficia demasiadamente “lá de dentro”, ou do alto demais, o que vem a ser a mesma coisa.
Às vezes nos perguntamos se esse tom é de alguém que está realmente preocupado com a sorte da humanidade. Lendo a prosa arantiana, tem-se a impressão não só de que ele prega para convertidos, mas de que ele fala tendo diante de si algo assim como uma mesa... posta.
Passemos aos problemas propriamente substantivos. O Novo Tempo do Mundo é na realidade uma formidável máquina identitária. Tudo corresponde a tudo, e tudo leva finalmente ao “novo regime de acumulação” do capital. O que não conduz a isso não é real. Dir-se-ia, parafraseando uma frase célebre – e frequentemente mal entendida –, que no livro “tudo o que é real é capital (remete ao capital), e tudo o que é capital (remete ao capital) é real”. Poder-se-ia dizer também: “Tudo o que é racional é capital”, porque não haveria racionalidade fora do âmbito de efetividade do capital.
A isso se soma o grande déficit político do livro: a história do comunismo está ausente como tema. Isto é, a análise dessa história está ausente. E como o comunismo, praticamente morto no final do século XX, é entretanto um fantasma arquipresente no XXI sob a forma dos populismos autocráticos e, em geral, pela presença maciça, embora muitas vezes insuspeitada, do leninismo, principalmente nas esquerdas do Terceiro Mundo, essa ausência condena in limine toda tentativa de esboçar uma teoria da história dos últimos 100 anos. E tanto mais porque a ausência do comunismo vai junto – em parte coincide – com o esquecimento da maior parte da história das lutas sociais nesse período.
O Novo Tempo do Mundo é um livro com pouca memória, um texto que, no que se refere aos movimentos sociais, joga a carta da ruptura, uma ruptura que é em grande parte ilusória.
Mas, precisamente, o que o livro não enxerga? Ele não enxerga em todo o seu alcance – volto ao ponto porque resume o argumento – a formidável inversão que se opera no século XX. Um grande movimento de emancipação que desemboca em ditadura totalitária. Porém o pior é que a incapacidade de pensar a grande inversão se manifesta não só na leitura do passado, mas também com relação ao futuro. Se Arantes não vê – ou vê pouco – a grande catástrofe que foi a história de um movimento de emancipação conduzindo a um neodespotismo genocida, ele também não enxerga (ou, antes, lhe é indiferente) a possibilidade de que esse fenômeno (ou um fenômeno aparentado com aquele, por exemplo um populismo autoritário) possa ocorrer também no futuro. Para Arantes, “populismo” é “entidade fantasmagórica” – assim, autoritarismo “de esquerda”, como cenário político presente ou futuro para a América Latina, também deve ser.
Em resumo, o que o autor de O Novo Tempo do Mundo não percebe com olho crítico é que os atuais movimentos que, em princípio, vão no sentido da emancipação podem, sob certas condições, se tornar o seu contrário, isto é, levar a regimes, se não totalitários, pelo menos populistas e autoritários.
As condições a que me refiro podem ser várias, mas uma delas pode ser identificada examinando os meios de que se valem esses movimentos. E aí somos reconduzidos ao problema da violência. A escolha e a prática de meios intencionalmente violentos são, pelas razões que indiquei, um índice do risco de que movimentos emancipatórios se transformem em projetos autocráticos.
Existe assim, para os dois casos – passado e futuro –, um déficit lógico-político, que é o de uma leitura pouco dialética da realidade histórica – observe-se que o termo “dialética”, não raro vulgarizado, tem aqui um uso rigoroso –, uma leitura insuficientemente aberta às inversões de sentido que podem se produzir na história.
Há, em O Novo Tempo do Mundo, um problema geral de fundamentação. Mais precisamente – mas as duas coisas vão na mesma direção – uma dificuldade no nível dos fins que ele propõe, na medida em que é um texto político. Pode-se perguntar: quais são os objetivos políticos do discurso? Porque, por um lado, o livro revela uma tendência a recusar os problemas que, em princípio, poderiam ser resolvidos dentro do capitalismo.
Um exemplo extremo da liquidação, fácil, de um problema desse tipo está no tratamento dado à questão dos automóveis na cidade, isto é, da necessidade de promover o transporte coletivo. Pensando, talvez, em fazer um trabalho de desmistificação, o autor remete à descrição de um projeto de cidade sem automóveis que estaria sendo feito em um emirado hiperautocrático. Não bastasse o caráter caricatural do argumento, acabamos sendo informados, depois de três páginas de leitura, que o tal projeto não se realizou, nem se realizará... E fica tudo por aí.
O objetivo seria então a revolução? Nada menos claro. Tem-se a impressão de que Arantes põe e tira a “Revolução” do bolso do colete. Ele utiliza o termo quando lhe convém (para opô-lo a “Urgência”, por exemplo), e o retira quando não lhe serve (quando fala das ilusões do passado, por exemplo). Alguém pode argumentar que a ambiguidade e a indefinição são objetivas. O autor só as refletiria. Não é assim. Ainda que difíceis, as respostas existem, e podemos chegar a elas; mas só se formos capazes de recusar as ambiguidades retóricas.
Como vimos, o livro de Dejours fornece alguns conceitos que poderiam representar verdadeiros fundamentos e fins, conceitos de resto muito pouco ortodoxos.
Em primeiro lugar, a ideia de “sofrimento social” (também a ideia de “injustiça”, que tem a originalidade de não ser nada original). Se tivesse realmente servido como fundamento do projeto teórico-prático que o livro encerra, esse tipo de conceituação permitiria construir uma crítica muito mais aberta ao real e muito menos dogmática. Afinal o “sofrimento social” não vem só do capitalismo; há, mesmo hoje – basta ver o Oriente Médio, e até, em parte, a China e a Rússia –, muito sofrimento social que não tem propriamente origem no capitalismo.
Mas, fora o capítulo mais diretamente afinado com o livro de Dejours, O Novo Tempo do Mundonão vai exatamente por aí. Ele antes mistura “sofrimento social” com “revolução”, e “revolução” com o seu contrário, “o fim das grandes expectativas”. O resultado é uma espécie de niilismo, mas niilismo apesar de tudo marxista, ou neomarxista.
Aliás, às vezes o livro descamba para o pior marxismo ou, antes, vai do marxismo para algo pior do que ele. Arantes não hesita em utilizar – sem advertir o leitor sobre a perspectiva geral dos autores que cita – teóricos notoriamente stalinistas, do tipo dos italianos Domenico Losurdo – que escreve livros contra “a lenda negra (sic) de Stálin” – ou Luciano Canfora – que toma a defesa da falecida República Democrática Alemã (para Canfora, esta era democrática mesmo). Também se dispõe a fazer um elogio discreto do populista Chávez, e a chamar o homem político de esquerda (anti-Chávez) venezuelano Teodoro Petkoff de “renegado”.
Se nos fixarmos sobre a ausência do topos crítico, fundamental, da inversão do movimento histórico a que me referi; se notarmos o dualismo simplista na leitura da política internacional, por exemplo; e ainda a ausência desse grande instrumento crítico que é a contra-história, uma vez que o autor raramente pensa na possibilidade de que outra coisa pudesse ter acontecido – então, para além da complexidade dos argumentos, da sofisticação do raciocínio e da multiplicidade e riqueza das referências, O Novo Tempo do Mundo se revelará, finalmente, como um livro cuja filosofia é, no fundo, um progressismo mais ou menos vulgar.
Eu não hesitaria em dizer que, no plano teórico-crítico, o livro naufraga. Fico tentado a afirmar que ele é teoricamente “torto”, no sentido de que abandona aquele que por razões subjetivas e objetivas poderia e deveria ser seu curso, o da crítica dialética, a rigor ausente.
Quanto a seus efeitos no plano prático-político, se pensarmos no entusiasmo pela violência que parte da juventude manifesta, na confiança ingênua que não raro deposita nela, parece evidente que O Novo Tempo do Mundo, obra de um grande intelectual que abraça sem crítica a chamada violência revolucionária – principalmente se o livro for adotado por certa juventude politizada, como parece que já vem acontecendo –, certamente fará, naquele registro, muito mais mal do que bem. Não direi mais.
18 de dezembro de 2014
Primeiro, o que então pareceu insólito, lançou um livro sobre o próprio Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), onde lecionava – um livro sem dúvida excessivo, pelo tratamento um pouco desmedido que ele deu ao objeto, mas muito bem escrito e que teve grande repercussão. Depois, embora professor de filosofia, ou justo por isso, ao mesmo tempo que publicava excelentes livros que fugiam do ramerrão universitário, foi manifestando uma postura explicitamente antifilosófica. Para dar só um exemplo: ele andou criticando Theodor Adorno, o grande pensador de Frankfurt, porque este ainda era filósofo. Ele, Arantes, caía fora da teia, indo parar aproximadamente lá onde estava o Marx da Ideologia Alemã (um Marx que opunha à filosofia uma certa ciência e a práxis).
Politicamente, também, ia mudando. Na juventude, Arantes era um homem de esquerda, radical como todo mundo nos meios universitários da época, mas era também, se posso dizer assim, moderado em seu radicalismo. O Arantes nouvelle manière, por outro lado, passa a professar um esquerdismo extremo, porém paradoxalmente mais ou menos desabusado, porque marcado – mais do que “temperado”– por um elemento quase niilista. Algo assim como a atitude de alguém que se alinha sob a bandeira revolucionária, mas, ao mesmo tempo, supõe que o capital ganhou e continuará ganhando.
Fui tomando distância em relação aos trabalhos de Arantes, meu velho amigo, a partir de seu livro O Fio da Meada: Uma Conversa e Quatro Entrevistas sobre Filosofia e Vida Nacional (1996), cujo tom me pareceu afetado, e o conteúdo, de um antifilosofismo um pouco sumário. Levei essas observações a público, o que, como se poderia esperar, foi muito mal recebido por sua torcida uniformizada, que nunca mais me perdoou.
O Novo Tempo do Mundo e Outros Estudos sobre a Era da Emergência, o livro mais recente de Arantes, publicado neste ano pela editora Boitempo, é uma coleção de ensaios (mais algumas entrevistas) que culmina com uma longa análise das mobilizações de rua em junho de 2013. Os textos ali reunidos tratam do fim das grandes esperanças revolucionárias, da revolta nos subúrbios parisienses, do neoliberalismo e do nazismo, do golpe de 64 e do pós-golpe, do tempo (um tempo de longas esperas) no cotidiano das sociedades contemporâneas, das “insurgências” e de sua repressão nas periferias, para não falar de outros aspectos da vida nas sociedades contemporâneas, com o Brasil e o mundo exterior aí reunidos. O que é novo em relação aos livros políticos anteriores de Arantes talvez seja a atitude, senão de otimismo, pelo menos de júbilo diante das mobilizações de 2013, visível no último ensaio. Uma atitude que se destaca do tom em geral cinzento das obras anteriores, e mesmo dos outros estudos nesse livro.
Do ponto de vista teórico, em particular, a novidade me parece estar na relação do autor com a filosofia. Se é complicado dizer precisamente onde ele se situa hoje, acho que em alguma medida sua atitude mudou. Se não chega a repor a carapuça, por ele execrada, do “filósofo”, agora seu discurso toma, muito mais do que antes – antifilósofo ou não, nunca foi fácil escapar de todo das garras da velha senhora –, a forma de uma espécie de filosofia da história.
Arantes parece ter-se livrado, além disso, de certas fórmulas fáceis (do tipo Auschwitz + Gulag + Hiroshima, “fórmula trinitária do Apocalipse da civilização capitalista”), cujo simplismo alguns críticos apontaram. Mas O Novo Tempo do Mundo, que certas rodas universitárias e meios políticos transformaram em algo como um texto de referência, é ainda, de algum modo, uma melodia de uma nota só: as críticas remetem sempre ao capital e ao capitalismo. O procedimento implica uma espécie de simplificação estratégica, que acaba ameaçando a força crítica da mensagem.
No plano político, uma das principais insuficiências do livro é a de que o comunismo está muito pouco presente na discussão, o que se justifica mal, dadas as pretensões da obra. Na realidade, O Novo Tempo do Mundo aponta para um deciframento da significação geral da história dos últimos 100 anos, o que torna aquela quase omissão um déficit sério. As dificuldades do texto, no plano político, não ficam por aí. Há nele uma espécie de carta branca para a violência, que, “revolucionária” ou não, é uma arma perigosa, cujo emprego tem de ser rediscutido. As qualidades formais do texto, indiscutíveis, não atenuam essas dificuldades. Em alguns casos, podem até agravá-las.
GRANDES ESPERANÇAS
A
ideia central do primeiro ensaio, que dá o nome ao livro, se constrói com as noções de “espaço de experiência” e de “horizonte de expectativa”. O espaço de experiência indica a percepção do passado (ou dos estratos do passado) que se tem no presente; o horizonte de expectativa, também dado no presente, trata do conjunto dos conteúdos (esperanças, temores, utopias) do que se espera para o futuro histórico. Com o advento da modernidade – escreve Arantes, na esteira de um clássico –, estabeleceu-se um grande distanciamento entre a experiência do presente (com seu passado), que passa a ser lido muito criticamente, e a expectativa do futuro, em verdadeira ruptura com o presente.
Essa distância, com suas “grandes esperanças”, se manteve até mais ou menos o início dos anos 70. A partir daí, ela encolheu, e passou-se a viver em uma era de “expectativas decrescentes”. O futuro já é presente, e o presente se prolonga em futuro. Como escreve o historiador e sociólogo Immanuel Wallerstein, a partir de ideias do teórico da história Reinhart Koselleck – os dois servem como referências fundamentais para o ensaio de Paulo Arantes –, “hoje a tensão entre a experiência presente, desvalorizadora do passado, e a espera de um futuro cada vez melhor foi largamente abolida”.
“A certa altura do curso contemporâneo do mundo”, diz Arantes, “a distância entre expectativa e experiência passou a encurtar cada vez mais numa direção surpreendente, como se a brecha do tempo novo fosse reabsorvida, e se fechasse em nova chave, inaugurando uma nova era, que se poderia denominar das expectativas decrescentes.” De fato, qualquer coisa de novo na relação com o futuro se estabeleceu no pós-68, e sobretudo depois de 1989. Mas, admitido o fato, seria preciso refletir se as noções de “espaço de experiência” e de “horizonte de expectativa”, bem como a ideia de “expectativas decrescentes”, descrevem, de forma suficientemente elucidativa, o que ocorreu. Não se trata de questionar a tese de que houve mudança, nem parte da descrição que dela se faz.
O problema é saber se podemos ficar por aí. Porque, por trás das alterações do regime do tempo, há evidentemente mutação no conteúdo das crenças (até aí dirão que é evidente, porém é preciso explorar bem esse conteúdo). Mais do que isso, é preciso indagar as causas da transformação, causas que têm muito a ver com aquele conteúdo.
Por outras palavras, “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” são categorias formais (formais transcendentais, se se quiser, do que, aliás, Koselleck está plenamente consciente), mas com as quais não deixa de surpreender que um teórico que se diz “materialista” se contente. Porque se ficarmos por aí, no registro das formas, e por brilhante que seja a teorização que as introduz, elas não nos dizem muito sobre o conteúdo que as preenche, suas bases efetivas e sua história. Caíram as “grandes esperanças”, é verdade. Mas qual era o teor dessas esperanças? Arantes o indica por meio de uma palavra hipostasiada: “Revolução”. (Pelo lado da direita, esperava-se antes o Progresso, mas, aqui, nos interessa mais a esquerda.) A hipóstase conotava uma grande transformação socioeconômica, mediada por um movimento violento, e que instauraria uma espécie de reino da igualdade.
Esse movimento não veio?
De certo modo, sim. Aconteceu alguma coisa que a teorização formal sabe, mas explora muito pouco: ocorreu um movimento violento. Pelo menos, supôs-se que o que se teve no mundo, na forma das chamadas revoluções russa, chinesa, cubana etc., era bem aquele movimento pelo qual se esperara. Assim, a partir do final de 1917, o futuro já existiria sur terre, isto é, no presente, mesmo se longe, e em processo de realização. O futuro estava “lá”, ainda que a alguns milhares de quilômetros de distância, e como futuro em devir.
Esse fato é em si mesmo importante, e não pode ser esquecido quando se descreve o que aconteceu. Porém, para além disso – eis aqui o ponto mais importante –, durante anos a realidade desses países mostrou objetivamente o contrário do que representava o conteúdo das grandes esperanças. A coletivização stalinista custou uns 6 ou 7 milhões de mortos; o Grande Salto para a Frente maoista, uns 30 milhões.
Ora, apesar dos horrores, durante anos a crença – por parte da maioria – persistiu. De fato, no momento em que, numa das duas grandes pátrias da Revolução, se perpetravam algumas das maiores matanças da história, continuava-se a ver o futuro em pleno processo de realização. A esperança não diminuíra, até aumentara. Só mais tarde, com a crise desses regimes, revelou-se o enorme engano. A terra prometida foi pulando de país para país, da URSS para a China, da China para Cuba e assim por diante, até sumir do mapa.
Por trás do “encurtamento das expectativas” e da instauração de um tempo de “expectativas decrescentes”, houve um grande fenômeno histórico, até certo ponto inédito, e que a teorização formal, abandonada a si mesma, oculta: um grande movimento de libertação e emancipação se tornou o seu contrário, a saber, desembocou em poderes autocráticos e “totalitários” – palavra de que Arantes não gosta, mas que vale, sim, usar. Poderes que superam de longe o que os séculos imediatamente anteriores haviam conhecido em matéria de violência e autoritarismo.
Essa grande inversão (nos seus três momentos: as revoluções, a própria inversão e a crença ilusória de que o futuro chegara) é um fato decisivo, senão o fato decisivo, para entender a história do século XX. Ora, o livro de Arantes – que, malgré lui ou não, oferece uma espécie de filosofia da história do século XX (mais o começo do XXI) – trata pouco disso. A história do comunismo está presente, mas apenas como um contraponto pálido, mesmo se recorrente.
Sem dúvida, a esse respeito o leitor dos livros anteriores de Arantes pode registrar um progresso. Lá onde ele se referia a “estados policiais” (felizmente, o autor nunca foi stalinista, mas esses “estados policiais” eram pouco mais do que deuses ex machina, sobre cuja origem não se dizia nada), agora fala (quando fala) em “ditadura burocrática” ou “burocracia stalinista”. Mas mesmo isso é insuficiente. Dizer, por exemplo, que houve “derrapagens fatais” do lado de lá da Cortina de Ferro pode ser bem simpático, mas fica muito aquém do que se exigiria de um livro que esboça uma teoria da história dos últimos séculos.
Dada a importância do tema, eu diria que um livro como esse, com mais de 460 páginas, deveria dedicar pelo menos umas 200 ao estudo daquele fenômeno. Fica evidente que o autor não vê com muita clareza o tamanho e o alcance do que ocorreu. Há uma passagem que é suficientemente expressiva a esse propósito, apesar de se situar numa nota, e de ser muito breve e alusiva. Falando sobre hierarquias e, em primeiro lugar, sobre as do capitalismo, Arantes se dispõe a introduzir uma referência ao “socialismo real”. “É que o capitalismo”, ele diz, “tem necessidade de uma hierarquia, ou melhor, assim como o capitalismo não inventou o mercado e o consumo, ele não inventa as hierarquias, pelo contrário, estas o precedem e o comandam de antemão.”
E continua: “Daí o fracasso do socialismo real: não basta suprimir a hierarquia econômica, supondo-se que isso tenha acontecido.”
No estilo do que se lê em suas obras anteriores, nas quais se explica o fiasco do “socialismo real” pelo fato de que se quis construir o socialismo em duas etapas (como se o problema fosse o das “etapas”), o presente texto nos diz que o “socialismo real” fracassa porque não suprimiu a hierarquia política preexistente (aquela que estava presente sob o capitalismo). Ora, não foi isso o que aconteceu, ou não foi precisamente isso.
O que ocorreu não foi que as sociedades burocrático-totalitárias emergentes deixaram de suprimir a hierarquia preexistente. Elas, na realidade, criaram uma nova hierarquia, e uma hierarquia que, sob muitos aspectos, era de base muito mais autoritária do que a anterior.
E mais: a nova hierarquia nasceu liquidando os elementos democráticos que despontavam no interior das formas antigas ou que haviam surgido no interior do processo revolucionário.
Esse movimento tem de ser pensado e estudado para entender o que significam exatamente o “encurtamento das expectativas” ou as “expectativas decrescentes”, sem o que não saímos de uma espécie de formalismo, mesmo se inteligente. Com a crise final cai certa mitologia. É verdade que com a queda dos mitos pseudorrevolucionários (a suposição de que a sociedade burocrático-totalitária era uma sociedade pré-socialista), surgem outros. Brota uma atitude mais conciliadora em relação à realidade presente no Ocidente, que é a do capitalismo. Mas essa realidade é também a da democracia. Há assim um movimento de perdas e ganhos que deve ser estudado de perto e criticamente, sem dissolvê-lo numa teoria abstrata do tempo.
DEMOCRACIA E CAPITALISMO
A
história do capitalismo, tal como ela é apresentada em O Novo Tempo do Mundo, não atribui nenhum lugar mais ou menos autônomo ao “político” (refiro-me ao Estado e ao governo). O político, no estilo da tradição marxista, aparece sempre como que “arrastado” pela história do capital. E a “política”, entendida como luta política, é sempre, ou quase sempre, a luta contra o capital. Mais particularmente, nem no plano do político nem no registro da política há alguma autonomia para a democracia. Há um lugar, mas só como um pendant político do capital.
Fica fora da perspectiva de Arantes que as lutas do século XIX tenham sido em considerável proporção lutas pela democracia (ver o exemplo dos cartistas ingleses) e, mais que isto, que tenha havido uma oposição fundamental entre capital e democracia, mesmo se o primeiro conseguiu inserir a última no seu “contexto” – mas essa inserção é sempre instável. Pode-se dizer, cum grano salis, que a “democracia” é para ele o que é para Bush, só que com sinais trocados. Um significante puramente ideológico, verniz político do capitalismo. Como acontece com o conceito de “totalitarismo”, Arantes parece supor que o uso ideológico de um termo exclui a possibilidade de que esse termo tenha paralelamente um significado crítico e rigoroso.
De novo aparece aqui, na obliteração do significante “democracia”, uma das expressões do procedimento geral operado por Paulo Arantes de hiperbolização do papel do capital e do capitalismo. Não se trata de negar o peso que teve e tem o movimento do capital e o capitalismo, enquanto força social, que ocupa grandes territórios da história moderna e contemporânea. Mas, no livro que examinamos, o capital e o capitalismo estão em toda parte, são uma espécie de “Sésamo” que abre todas as portas, que explica ou deve explicar tudo. E, se acontecer de o capital não explicar o objeto, é que este não deve existir.
É fantasma ideológico, percepção errada ou coisa semelhante. Apesar de tudo o que representam capital e capitalismo, insisto, há aí erro de fato e erro de lógica.
O capital e o capitalismo estão presentes quase por toda parte no mundo, no século XIX e mais ainda no XX. Resta saber como. Arantes trata o capital como se ele fosse a essência ou o fundamento de tudo. Ora, apesar da sua hegemonia, a rigor, o capital não é essência. Pelo menos não o é por toda parte. Eu diria – omitindo aqui referências mais extensas à Ciência da Lógica de Hegel, para não sobrecarregar o leitor – que ele é antes base do que essência. Ele está “por baixo” de quase tudo, como uma espécie de solo, mas esse solo não diz sempre o que circula por sobre ele.
Um exemplo interessante desse procedimento permanente de hiperbolização do capital aparece na discussão sobre a natureza do nazismo e dos campos de extermínio nazistas. Arantes opõe duas teses: a dos que aproximam o nazismo do capitalismo, e a dos que, como o historiador marxista Moishe Postone, professor da Universidade de Chicago, acentuam o lado anticapitalista, mesmo se simbólico, no nazismo. “O campo de extermínio nazista”, escreve Postone, “não representa uma versão terrível da fábrica capitalista [...], mas, muito pelo contrário, precisa ser visto como a sua grotesca negação‘anticapitalista’.” (A tese de Postone é a de que os nazistas procedem a uma espécie de morte ritual do capitalismo. Eles liquidam em massa os judeus, de quem eles haviam feito previamente a própria encarnação do dinheiro e do capital.)
Não vou discutir em detalhe essas teses. O que quero ressaltar é como, com esse deslocamento explicativo, finalmente nos deslocamos muito pouco. Ou os campos nazistas seriam homólogos das fábricas capitalistas, ou então eles seriam o seu oposto. Vê-se o que há de comum nas duas teses (que aliás poderiam coexistir, e que são, ambas, de extração marxista). A referência é sempre o capitalismo.
Mas, se nazismo e capitalismo se “tocam” de algum modo (tudo se toca de algum modo na história contemporânea e, no caso, o laço vai mesmo, sem dúvida, além dessa afinidade geral), isso não quer dizer, seja o sinal positivo, seja negativo, que o nazismo possa ser definido rigorosamente através do capitalismo.
O nazismo se define muito melhor pela democracia.
De fato, ele não é anticapitalista, mas ele também não é essencialmente (no sentido de que o capitalismo daria a sua definição) pró-capitalista. Ele é, sim, antidemocrático. Os chefes nazistas afirmaram e reafirmaram que sua tarefa era liquidar de vez a revolução igualitária dos liberais e dos socialistas, revolução que teve início no ano maldito de 1789. Ora, quem não é capaz de pensar a democracia senão como ideologia não pode entender nem definir o nazismo.
Partindo de um livro extraordinariamente interessante, Souffrance en France (1998), do psiquiatra Christophe Dejours, e de alguns outros textos, Arantes se dispõe a pensar o nacional-socialismo a partir da noção de “trabalho”. É possível. Mas o resultado é precisamente o de operar uma aproximação excessiva entre o nazismo e outras formas sociais (o capitalismo, em particular), o que convém a certa leitura marxista. Num dos raros textos em que o autor compara os campos nazistas aos campos stalinistas, ele contrapõe o “genocídio como trabalho” praticado pelos nazistas ao “extermínio pelo trabalho”, que caracterizaria a versão stalinista dos campos. Ora, o denominador comum a obter dessas fórmulas, apesar das aparências literais, não é o significante “trabalho”, mas os outros dois, quase sinônimos: “genocídio” e “extermínio”. Para chegar até aí, entretanto, seria preciso se libertar um pouco mais da “grade” (no duplo sentido do termo) marxista, que o aprisiona.
A GUERRA CIVIL MUNDIAL
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e a história moderna e contemporânea é, num registro estrutural, mais ou menos reduzida à história do capital e do capitalismo, no plano das lutas (mas, finalmente, há pouca “luta” no livro de Arantes) ela é, senão “luta de classes”, pelo menos “guerra civil” (sem que fique muito claro até onde vai uma, até onde vai outra, ou se o autor assimila esta àquela). Bem entendido, houve muita guerra civil e também luta de classes no século XX, mas o século teve muito mais do que isso.
O mínimo que se poderia dizer é o que escreve Orlando Figes no prefácio do seu muito importante A Tragédia de um Povo: a Revolução Russa 1891–1924: “A revolução [foi] todo um complexo de diferentes revoluções, desencadeadas em meio à Primeira Guerra Mundial, e que provocaram uma reação em cadeia de mais revoluções, guerras civis, [guerras] étnicas e guerras entre nações.”
Ora, no esquema arantiano (que, bem entendido, deve ao filósofo e jurista Carl Schmitt, mas com inflexão materialista) a realidade é mais simples. Ele diz: “[...] as ‘potências’ vitoriosas na Primeira Guerra Mundial formaram uma outra Santa Aliança sob liderança norte-americana para esmagar a revolução europeia iniciada em 1917 e que nos anos 20 já assumira as proporções de uma Guerra Civil Mundial em que se confrontavam revolução e contrarrevolução.” A ideia aparece novamente numa referência às “marchas e contramarchas da luta de classes ao longo da Guerra Civil Europeia da primeira metade do século XX”. Em outro exemplo, a “guerra social havia se convertido em uma Guerra Civil Europeia, como ficaria claro depois de 1917”.
Assim, a história da primeira metade do século XX seria a história da “guerra civil”, na qual se reconhece a presença da luta de classes. Vê-se o alcance negativo da redução. O choque entre poderes de Estado, que foi um dos elementos maiores da história do século XX, se transforma em epifenômeno, simples ilusão fenomenal, nada mais do que uma aparência. Ele é substituído por uma suposta essência: a Guerra Civil dos poderes contrarrevolucionários lutando contra a Revolução. Repito: claro que houve guerra civil ou mesmo luta de classes no século XX, mas nada justifica reduzir toda a história do século ao confronto entre uma frente de poderes contrarrevolucionários, o dos vencedores da guerra de 1914–18, e uma frente revolucionária popular.
Na Espanha, por exemplo, houve uma verdadeira guerra civil, mas os contrarrevolucionários não eram aliados dos grandes vitoriosos da Primeira Guerra, mas da Alemanha e da Itália. As lutas no Terceiro Mundo, no mesmo século, tiveram uma dimensão classista, mas muito mediada por outros elementos, entre os quais o peso da Terceira Internacional, pretenso comando mundial do proletariado. Quando os dados empíricos confirmam pouco uma tese, tanto pior para esses dados e para a boa empiria. Entre o esquema ditado pela visão “revolucionária” dos fatos e a realidade, quem tem sempre a última palavra é o esquema, e não a realidade.
O mesmo poderia ser dito da forma pela qual é tratado o jogo de forças mundial no nosso presente. O quadro é o de um domínio esmagador do capital, na forma transfigurada do capital financeiro e também da dominação política. E, apesar de umas poucas referências à China, a dominação aparece, tanto do ponto de vista financeiro quanto do ponto de vista político, como essencialmente americana e, apesar de tudo, numa figura que lembra muito a do antigo imperialismo.
Mas a verdade é que nem o domínio americano é assim tão incontestável, nem representa ele hoje, sem mais e sempre, o lado “pior” (mesmo se ele está longe de ser “bom”). Sim, porque há atualmente muitos focos de opressão e de exploração do lado dos “pequenos poderes”. O sinistro Califado Islâmico, onde vendem mulheres e degolam e crucificam prisioneiros, é o último e melhor exemplo. O esquema de leitura do autor é simplista no balanço das forças e no julgamento político. Lembra o discurso de esquerda da época em que se travavam guerras coloniais.
Claro que Arantes não elogia nenhum califado, mas a impressão que se tem, lendo as passagens do seu livro relativas a esses temas, é a de um cenário de assimetria radical. O que simplifica muito o processo, e o deforma. Na mesma linha de ideias, há uma curiosa tendência a reduzir diferentes agências e organizações internacionais humanitárias a simples instrumentos do capital. Isso às vezes é o caso, mas nem sempre.
A primeira coisa a observar aqui é que os erros e crimes dos ocidentais não estão sempre no fato de intervir – às vezes eles residem justamente na não intervenção, como no massacre de Srebrenica, na Bósnia, ou no genocídio em Ruanda, ambos nos anos 90. Pode parecer um detalhe, mas não é, porque mostra a complexidade da situação.
E, nesse contexto, seria importante lembrar que, no caso do massacre dos tútsis em Ruanda, o Médicos Sem Fronteiras fez apelos dramáticos em favor de uma intervenção, apelos, aliás, que foram finalmente ouvidos, mesmo se tardia e limitadamente. Um exemplo importante que mostra o quanto o mote “intervenção internacional e filantropia” é simplificador e, por isso mesmo, falso.
“ESTADO DE EXCEÇÃO”
S
e a narrativa oferecida por Arantes padece de uma compreensão melhor das relações entre democracia e capitalismo, insuficiência que vem do impacto, apesar de tudo poderoso, do modelo marxista, a análise da história dos séculos XX e XXI, sobre a qual já falei alguma coisa, vem dominada por uma tese cada vez mais em voga, tese que tem sua origem nas ideias de Carl Schmitt – replicada depois por Walter Benjamin e, mais recentemente, pelo filósofo italiano Giorgio Agamben.
Trata-se da ideia de que a política do século XX pode e deve ser decifrada a partir da noção de “estado de exceção”: “[Há um] argumento geral desenvolvido por Giorgio Agamben na forma de um diagnóstico de época formulado nos anos 1990”, escreve Arantes, “segundo o qual o ‘estado de exceção’ – [...] état de siège [...], emergency powersou martial law [...] – tende cada vez mais a se apresentar como paradigma de governo dominante na época contemporânea.”
Em O Novo Tempo do Mundo, o “estado de exceção” ou de “urgência” – figura jurídica que suspende direitos e garantias constitucionais dos cidadãos, a ser adotada em princípio provisoriamente em situações de emergência, como guerras ou calamidades públicas, para aumentar a eficácia do Estado – aparece como uma fórmula que encerra uma verdadeira teoria geral da história do século passado e do que já se viveu do século atual, fórmula que vale para o capitalismo liberal-democrático, para os regimes mais ou menos autoritários, mas também para o nazismo. Quaisquer que sejam as aparências de um desses regimes políticos, o “estado de emergência” é sempre o seu segredo.
Para mostrar a universalidade do seu papel e o caráter, senão derrisório, pelo menos adjetivo de certas distinções entre regimes tidos como mais democráticos e outros claramente autoritários, invoca-se frequentemente a passagem da República de Weimar ao nazismo. Hitler pôde proclamar a lei marcial em 1933, após o incêndio do Reichstag, porque a Constituição da República de Weimar reconhecia essa possibilidade no seu capítulo sobre o estado de exceção. Reconstituir-se-ia assim a linha de continuidade entre a República de Weimar e o regime nazista.
Mas de que vale a tão falada tese de que o “estado de exceção” define a soberania na época contemporânea? Mais importante do que isso, até onde vai o poder explicativo da tese? Em primeiro lugar, seria preciso definir melhor o que a “exceção” representa. A primeira questão é a de saber se devemos considerá-la enquanto efetiva ou como virtual. O livro cita um texto de Agamben, que comenta Schmitt: “O funcionamento da ordem jurídica baseia-se, em última instância, em um dispositivo – o estado de exceção – que visa tornar a norma aplicável suspendendo, provisoriamente, sua eficácia.”
E Arantes observa que seria falso afirmar, como escreve um comentador, que, segundo a tese schmittiana sobre o estado de exceção, “toda a ordem legal ‘seria como que uma latente e intermitente ditadura’”. Muito bem. O estado de exceção tem de permanecer latente para se efetuar. Com isso, diz-se de fato alguma coisa. Porém, se ele se efetuar, o que acontece? A máquina não funciona, escreve Agamben, ou, como sugere Arantes, passar-se-ia à ditadura.
De novo, eu diria, muito bem. Porém, entre essas duas situações, de que ordem é a diferença? Apesar de suas explicações, Arantes (a partir de Schmitt e de Agamben, pelo menos tal como ele os lê) não vê certamente aí uma grande ruptura. Na realidade, a despeito das advertências, quer se trate do Brasil, quer se trate da Europa, o livro não cessa de aproximar os períodos democráticos dos períodos de ditadura.
A ditadura militar no Brasil e os governos que a sucederam seriam diferentes, mas não essencialmente diferentes. Sugere-se uma “substituição’’ de violências, fala-se de um “primeiro” e de um “segundo regime de violência”, um pouco como se, no primeiro caso, tivesse havido “matança seletiva” na cidade, e, no segundo, assassinatos “indistintos” na periferia. Mas a verdade é que não houve substituição de massacres: sob a ditadura, os dois morticínios coexistiam e se acumulavam.
Se o tema das afinidades entre a ditadura e a pós-ditadura no Brasil é do autor, o da quase continuidade entre Weimar e o nazismo é introduzido a partir de Schmitt e de Agamben. Enfim, a famosa teoria sobre “estado de exceção”, para tomá-la na sua expressão geral – teoria que é pobre na forma e errada no conteúdo –, tem antes de tudo a função de obscurecer a distância entre as democracias e as ditaduras, o que evidentemente limpa a barra das últimas e suja a das primeiras. Tal é, no fundo, o segredo da tão falada tese.
O primeiro resultado, desastroso, de tal teoria é que ela não vê o que há de radicalmente novo no nazismo. Este não é um avatar, mesmo extremo, do estado geral de exceção.
O nazismo é uma forma social original, monstruosa, bem entendido, mas que se revela essencialmente diferente dos regimes de capitalismo liberal-democrático, e mesmo de capitalismo autocrático. A referência à lei marcial de Hitler, proclamada com base no artigo sobre o estado de exceção contido na Constituição de Weimar, ou, antes, as consequências que se pretende tirar disso são um engodo. Que Hitler se tenha valido daquele artigo para declarar a lei marcial não explica nem a gênese do nazismo nem a sua essência.
Quanto às limitações sucessivas da liberdade sob Weimar, se derivam em parte dos projetos antidemocráticos das forças conservadoras, elas se explicam também, e muito, na origem, precisamente pela ameaça que representavam os nazistas para a República. Mas não só os nazistas, também os comunistas. Comunistas e nazistas sabotaram a República de Weimar. O que se costuma dizer é que a democracia de Weimar, como a democracia em geral, é “fraca”. E do “fraco” desliza-se para o “culpado”. Se a democracia é fraca, há que fortalecê-la, e não liquidá-la, como se pretende nos meios neoschmittianos... de esquerda.
Voltando ao tema geral. Talvez o mais interessante na crítica daquela, a meu ver, muito miserável teoria sobre a história contemporânea, teoria que enquanto esquema jurídico e único acaba apagando as descontinuidades presentes nessa história, seja insistir no fato de que ela tem como base, e não muito oculta, a crítica da democracia. A saber, a ideia de que a democracia é apenas uma variante de um mesmo poder autocrático.
Mas aqui essa indicação ganha um interesse particular, levando-se em conta o que escrevi sobre o peso do marxismo na leitura da história do capitalismo que o livro oferece, em particular sobre o eclipse do lugar das lutas democráticas e da democracia em geral. É que a tese schmittiana-agambeniana vem reforçar o déficit marxista em matéria de análise da democracia. Se a democracia aparecera antes, na esteira teórica do marxismo, como pouco mais ou menos do que como um epifenômeno do capitalismo, agora ela desponta como um simples avatar da trajetória do “estado de exceção”.
Para não prolongar muito mais esse ponto, essencial entretanto, faço apenas mais duas observações. Uma, a de que o nazismo e a Shoah acabam passando literalmente para um segundo plano, reduzidos a uma espécie de episódios do “caminho alemão”. Paulo Arantes escreve: “Entendido o antissemitismo nazi como uma tentativa paranoica de ultrapassar violentamente a história percebida como uma perene ameaça de descontrole e degenerescência, e ultrapassá-la por meio do Terror, o Holocausto passa para um discreto segundo plano, e o Nazismo, por sua vez, entra na conta das aberrações regressivas da via prussiana [...].”
Em segundo lugar, voltando ao belo livro de Christophe Dejours, que se ocupa do sofrimento no trabalho, observemos que Arantes extrapola muito as teses do autor. Dejours analisa a banalização do “sofrimento social” sob o neoliberalismo, banalização que se tornou célebre em outro contexto, a saber, a propósito do “mal” que praticaram os atores do projeto nazista. Entretanto, a comparação (nos dois casos, trata-se de “banalização”, melhor do que “banalidade”), que é perfeitamente válida dentro dos limites do que escreve Dejours, não permite afirmar que só com o neoliberalismo “podemos enfim atinar com a mola secreta do poder nazi”. A mola do nazismo era outra.
É importante ressaltar ainda, a propósito do livro de Dejours, o fato de que ele introduz uma espécie de fundamento para a crítica de esquerda, a ideia de “sofrimento social”. Fundamento que, bem entendido, é heterodoxo em relação a Marx (ao Marx maduro de O Capital, em todo caso) e se relaciona, como assinala Arantes, com a ideia de “alienação”. O “sofrimento social” é tratado por Dejours como uma “injustiça”, o que também nos leva para longe de Marx, que, como se sabe, era muito avesso aos termos “moralizantes”.
Mas, se ter dado destaque ao que escreveu Dejours é certamente um mérito de O Novo Tempo do Mundo, pode-se perguntar em que medida Arantes incorporou esses elementos heterodoxos como fundamentos gerais para uma crítica do capitalismo, em particular, e da exploração e opressão, em geral. Claro que aquelas noções estão de alguma forma presentes, pelo próprio fato de que o autor se utiliza abundantemente do que escreveu Dejours. Mas elas não “informam” ou, em todo caso, certamente não informam de um modo suficientemente claro e não contraditório, o conjunto do texto.
“NÃO QUEREMOS MAIS SER GOVERNADOS”
O
Novo Tempo do Mundo confere um lugar importante a certa literatura sociológica e crítica que trata da miséria e da violência nas periferias, nas favelas e em outros espaços do mesmo tipo. A questão central é a da violência policial. A realidade desta é indiscutível, e é com razão que o autor dá um relevo especial ao tema. Entretanto, também aqui há hipérbole. E esta corre o risco de enfraquecer o argumento, quando não de liquidá-lo.
Para dar um exemplo, muito característico, não posso deixar de comentar o que Arantes escreve sobre as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), forças de intervenção policial que atuam nas favelas do Rio, combinando ocupação do território e trabalho social. Não estou em condições de fazer uma avaliação precisa do que significaram e significam as UPPs. Elas obtiveram certamente alguns resultados na luta contra o tráfico. Mas sua atividade ficou marcada ou manchada por violências contra a população, além do fato de que, frequentemente, os traficantes abandonavam a zona sob intervenção para se instalar em outros pontos do território. Porém, o que de qualquer modo parece chocante no texto de Arantes é que ele vê as UPPs como um simples elemento de repressão policial, “trabalho social armado” que visa pacificar as populações. E da dualidade repressão/trabalho social (ecoando o arcuseano welfare/warfare) passamos à Batalha de Argel, à Guerra da Indochina ou às ações imperialistas na América.
Ora, quaisquer que tenham sido as violências praticadas pela polícia em diferentes situações, e independentemente do que escreve tal ou qual ideólogo, do lado de cá ou do lado de lá, que Arantes gosta de citar, as intervenções do tipo UPP não são de forma alguma comparáveis, mesmo mutatis mutandis, a eventos como as intervenções norte-americanas ou europeias na América, África e Ásia. Por uma simples razão: é que, de uma forma ou de outra, mesmo se concluirmos por uma condenação geral das UPPs, existe um fator, aí presente, que estava ausente nos outros casos, do qual o autor esquece (ou quase esquece, porque há menções, mas tão poucas e tão escondidas nas notas que a gente perde de vista). Este elemento é a criminalidade.
Ele cita um texto em que se afirma que “a presença de grupos armados é [...] um pesadelo para o conjunto da população carioca”. Há outras breves referências. Mas nada disso o impede de incluir as intervenções do tipo UPP num esquema mundial de intervenções imperialistas. E, talvez ainda mais importante, a intervenção do Estado acaba sendo reduzida a pouco mais do que um tipo especial de banditismo. A partir de operações como a das UPPs, Arantes chega à “evidência de que o Estado está voltando a ser a relíquia que sempre foi, um bando armado que vende proteção”. Ora, se é verdade que ações brutais de uma polícia arquicorrupta tendem a fazer do Estado algo como um poder de gangue entre outros poderes de gangues, nem de direito nem mesmo de fato o Estado, e mesmo o Estado brasileiro, representa hoje rigorosamente tal coisa.
Exagero na crítica? Arantes não quis dizer exatamente isto? A verdade é que, afinal, a gente pergunta: o autor acredita ou não que, de uma forma ou de outra, só através do Estado será possível combater a grande criminalidade? Porque finalmente não se sabe bem se Arantes é a favor ou contra o Estado. Existe, aliás, uma antinomia na palavra de ordem (que ele aprecia): “Não queremos mais ser governados, ou não mais assim.” Não queremos mais ser governados? Ou não queremos mais ser governados assim? Vai aí uma diferença que não é pequena.
Há um modo mais universal de desconstruir a hipérbole da explicação pelo capital, pelo capitalista, ou pela “forma atual de acumulação do capital”. Eu o insiro aqui, no final dessa sucessão de topos críticos, como um argumento que, de certa maneira, os resume. Arantes não cessa de denunciar as aberrações e violências do capitalismo contemporâneo. No que ele, em geral, tem certamente razão. Tudo é objeto de crítica. Mas aqui seriam necessárias algumas observações.
Há na realidade social – a distinção é utilizada por Marx, que, no seu sentido geral, a tomou de empréstimo de seu mestre Aristóteles – uma forma e uma matéria. Há uma base tecnológica, ligada a certo nível de desenvolvimento da ciência, além de certos pressupostos demográficos etc., o que, tudo junto, representa a matéria do social. Mas há também uma forma social, que, no caso das nossas sociedades ocidentais (e hoje, bem mais do que isso), é a forma capitalista. Bem entendido, a forma impregna a matéria, modifica-a, dá-lhe um caráter particular. De qualquer modo, não desapareceu a distinção entre forma e matéria. Perdê-la de vista é operar um movimento simetricamente inverso, mas não menos redutor, ao da crítica reacionária que transforma a forma em matéria (transforma o capitalismo em “sociedade industrial”). Aqui, pelo contrário, é a matéria que vira forma (a forma capitalista faz perder de vista a matéria).
Escamoteia-se, assim, o desafio que representa tentar pensar uma sociedade altamente desenvolvida do ponto de vista tecnológico como uma sociedade – o que ela poderia ser – emancipada. Que não se diga que a crítica não está obrigada a tanto. Ela não estava, de certo modo, no tempo de Marx, ou para Marx. O comunismo havia de resolver (quase) todos os problemas, e era melhor não abarrotar as “panelas do futuro”. Argumento válido, dentro de um certo quadro de pensamento, mas que não serve mais. Se é que alguma vez serviu.
Para dar um exemplo, a partir de certos autores, e no contexto de uma análise dos territórios em que domina uma ordem disciplinar, o autor escreve: “As companhias aéreas [...] são antes de tudo instituições disciplinares.” Em geral, não duvido, embora haja exagero nisso. Mas não se trata apenas de exagero.
Há aí um problema maior. Arantes não discute o que poderia ser uma sociedade emancipada em que, por exemplo existiriam aviões. Sim, porque podemos – e até devemos – imaginar uma sociedade emancipada em que haveria aviões. De fato, um projeto de emancipação não deve propor a liquidação de grandes conquistas tecnológicas, pelo menos na sua forma geral. E se é assim – independentemente da disciplinarização que existe, certamente, no nosso tempo –, é evidente que a presença daquela tecnologia implicaria um certo número de exigências, do tipo hierarquia de comando, organização da espera, e mesmo, conforme a situação, inspeção do que se embarca a bordo dos aviões etc.
Alguém pode dizer que me ocupo de banalidades, mas é a partir das banalidades que se pode ver o que não funciona na obra que examinamos. Minha tese é a de que Arantes confunde crítica da forma e crítica da matéria. Ou, antes, atribui à forma todos os problemas, inclusive aqueles que se devem à matéria. Isso certamente facilita as coisas para ele, mas não serve à crítica. Um ponto curioso é a denúncia que ele faz da fila, em particular da “fila para comer”. Esta remeteria, em última instância, às prisões e aos campos, como afirmaram sociólogos críticos.
Ah, que horror fazer fila para comer! Horror banalizado, já que, no que se refere a essa forma de disciplina, ter-se-ia perdido ou recalcado a reação original, que era de repulsa. Ora, a fila (incluindo a fila para comer) decorre muitas vezes de condições e exigências, por assim dizer, técnicas, que pouco ou nada têm a ver com a opressão. Faz-se fila na cantina de uma escola. A cantina é uma instituição repressiva? É opressivo, que, na cantina, cada um se sirva obedecendo a uma fila? Claro que poderia ser de outro jeito, mas o arranjo seria mais livre? Pode haver fila até em piquenique de amigos, quando somos suficientemente numerosos, e alguém prepara uma sopa para todo o grupo.
Na realidade, apesar dos horrores das filas imensas à espera de alimentos escassos ou outros produtos de primeira necessidade, e das filas para fazer pedidos às autoridades, pedidos que não serão satisfeitos e nem sequer respondidos, a fila, em si mesma, não tem nada de opressivo ou irracional. Pelo contrário, eu diria que ela é um procedimento igualitário, que serve a uma sociedade democrática. Nunca me esqueço da minha primeira volta ao Brasil, quando em vez de esperar a minha vez, à maneira europeia, fazendo democrática e pacificamente uma (pequena) fila, fui obrigado a lutar contra um bando de gente agressiva, amontoada em torno de um balcão.
Tudo isso pode parecer insignificante, repito, mas importa mostrar o caráter hiperbólico e por isso inoperante do estilo crítico do livro que examinamos. Aliás, a propósito de filas, diria ainda que também quando se fala em público, em discussões, mesas-redondas ou colóquios, é preciso fazer fila, isto é, aguardar a vez e respeitar democraticamente o tempo de palavra. Quem quiser falar mais, que espere primeiro, na fila, os minutos de intervenção de cada um dos outros. É pelo menos o que fazem os que têm o mau hábito de respeitar a disciplina democrática.
DEPOIS DE JUNHO
É
hora de examinar o que representa propriamente a política em O Novo Tempo do Mundo. Como já observei, o que desde o início incomoda na política de Arantes, tal como aparece no presente livro, é que ela se constrói tendo como fundo uma entidade hipostasiada, a “Revolução” (com maiúscula). Uma tese importante nesse contexto é a de que hoje não se é fiel à Revolução. O lugar dessa entidade teria sido tomado por outras, em primeiro lugar a “Urgência” (também com maiúscula). Se antes se falava em Revolução, o grande evento que a esquerda desejava e a direita execrava, hoje não se fala mais dela, e seu lugar foi tomado por algo assim como a “grande catástrofe” – nuclear, climática, biológica –, que alguns temem e outros denunciam como mito.
Só que as coisas não se passaram exatamente desse modo. Essa descrição da mudança é acrítica. A mudança real (porque houve uma), do ponto de vista crítico pelo menos, que é o daqueles que privilegiam o destino das lutas emancipatórias, se escreveria mais ou menos deste jeito: as lutas contemporâneas pela emancipação passaram a ter múltiplos objetivos; elas deixaram de visar apenas à igualdade e à liberdade (aliás, esta última, à luz do que ocorreu no século XX, ganhou uma força inédita), e a elas se somou a luta pela “melhor sobrevivência” da espécie no planeta. Para não falar em outras lutas. Todo o problema da esquerda atual é saber como articular essas diferentes frentes.
Ora, Paulo Arantes não desce até aí. Em vez de tentar combinar elementos, ele prefere colocá-los em oposição. Em vez da “Revolução”, que visaria à igualdade, teria surgido uma nova entidade, a “Urgência”. E aí, ai da Revolução. E que não se diga que houve uma nova distribuição de forças, de um lado os que acreditam na Urgência e que temem catástrofes mais ou menos iminentes, de outro os que não acreditam nela. Em O Novo Tempo do Mundo, a diferença entre uns e outros, “catastrofistas” e “integrados” (é essa a sua terminologia), não é fundamental. Uns se somariam aos outros no mesmo gesto de repúdio à Revolução, ou ao seu equivalente à direita, o Progresso.
Por esse caminho é muito difícil entender os problemas contemporâneos, em particular os que tocam às lutas de emancipação. Em primeiro lugar, seria necessário precisar bem o que o autor considera real, e o que, para ele, é fictício em matéria de catástrofes eventuais. As fronteiras entre realidade e ficção seriam imprecisas? Não creio. Ou nem tanto assim. De qualquer modo, se não distinguirmos bem o que é real do que é aparente, é impossível lutar, senão sobreviver.
Ora, o livro de Arantes evolui numa zona cinzenta, às vezes não sabemos bem se o objeto (ou o evento possível) a que ele se refere seria real ou imaginário, se para ele o risco da catástrofe seria mesmo real (acho que sim, mas há passagens ambíguas). No que me concerne pelo menos – e muita gente pensa do mesmo modo –, o risco é real, muito real, quer se trate da acumulação de co2 na atmosfera, do “acidente” nuclear ou da proliferação de certos vírus. Mas, se tal é o caso, parece também, salvo melhor juízo, que devemos tomar posição diante dele, assumir nossas responsabilidades, como se costumava dizer, pelo menos no plano do discurso, e não se refugiar nas delícias e no brilho do nosso discurso.
Descrevi o lado dos que afirmam que o perigo é real. E eles não se limitam a afirmar. Muitos se dispõem a lutar (em organizações diversas, ONGs, partidos políticos) para que o pior não aconteça. Estão aí, em nível mundial, manifestações importantes contra a utilização da energia nuclear e contra todos os atentados graves ao meio ambiente. Essa gente, seja lembrado, invoca muitas vezes o chamado “princípio de precaução”.
Pois, coerente com o curso geral dos seus argumentos, Arantes joga fora o “princípio de precaução”, junto com o seu contrário, que se poderia chamar talvez de “princípio de audácia”, ou melhor, “de temeridade”, o que professam aqueles que não acreditam em perigo nuclear e quejandas ficções. Como vimos, tudo vai para a mesma lata. Um pouco como uma nova versão da famosa “lata de lixo da história”, de tão triste memória. Só que nessa nova versão entra todo mundo. Este me parece ser, infelizmente, o contexto geral da política arantiana.
Mas vamos ao particular. E aí há que falar principalmente das mobilizações de junho de 2013. Ah, as mobilizações de junho! Como já sugeri, Paulo Arantes professa em geral um pessimismo teórico-prático. Ele descreve o mundo capitalista como uma realidade mais ou menos fechada, uma “máquina do mundo” no interior da qual não há lugar nem para a reforma, nem a rigor para a “Revolução”, nem, ainda, para o “reformismo radical”. Até aí, alguma verdade. Mas respiremos. Se é meia-noite no século, é também meio-dia. Os jovens se mobilizaram. Não se trata do velho proletariado, nem do proletariado em geral, mas de uma camada nova, sui generis. Certo. Enfim, eles se mobilizaram, e com isso entramos num novo registro, o do “depois de Junho”.
Deixo claro que simpatizo com as manifestações de junho e que, além disso, estou convencido de sua importância. O problema é saber o que elas significaram, que perspectivas têm, e o que se poderia dizer da maneira pela qual foram conduzidas. Arantes as teoriza a partir de Agamben, o que significa em geral fazer uso de fórmulas pedantes e, tudo somado, superficiais.
Devo sublinhar que nem tudo o que ele escreve sobre essas mobilizações me parece falso. Por exemplo, é feliz ao insistir sobre a coexistência de reivindicações bem precisas e aparentemente minúsculas – abaixo o aumento de 20 centavos –, de um lado, e de outro uma perspectiva implícita ou explicitamente mais ampla, além de aberta para um leque virtual de exigências. Mas o tema central é o da “profanação”: profanar, segundo Agamben, significa “restituir ao livre uso o que antes estava indisponível, confiscado e preservado fora do alcance em sua aura”, nos diz Arantes.
A
tese geral que está por trás do mantra da profanação é a de que o capitalismo, hoje, não se afirma mais “unicamente através da repressão”. O autor começa por citar um texto do coletivo Passa Palavra, segundo o qual o capitalismo quer que “os de baixo” sejam “engajados e participativos”, mas desde que engajamento e participação aconteçam “dentro de espaços preestabelecidos”. Agora é Arantes quem fala: “Um dos choques insurgentes de junho consistiu justamente na profanação desse confinamento.” Vê-se mal o quanto se avança – ou não avança – com esse mote da “profanação”.
Mas o pior é que, entre as “profanações” atribuídas ao movimento, e que constituiriam a sua originalidade e grandeza, está a profanação... “da estratégia da não violência”. Sim, pois Arantes incorpora o movimento, por assim dizer, em bloco. Ele o saúda, não só sem fazer restrições aos atos de violência que, em alguns momentos, o acompanharam, mas considerando esses atos, ao que parece, como um dos pontos fortes e originais do movimento.
Em mais de um momento O Novo Tempo do Mundo abre alas para os black blocs: “Mais uma vez: jamais esquecer, como se esqueceu na hora em que a tática black bloc tornou-se a bola da vez, a dimensão inédita assumida pela tática da ação direta adotada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – ocupar, resistir, produzir –, o que lhe rendeu de volta a fúria assassina dos proprietários e seu braço estatal.”
Ou ainda: “O fenômeno black bloc nos acontecimentos de junho não era trivial.”
Tocamos aqui no problema da violência. As manifestações de junho foram violentas? E, se o foram, por iniciativa de quem? Qual a atitude primeira do Movimento Passe Livre diante da violência? Ora, se estudarmos as primeiras declarações de seus membros (já que, por definição, eles não têm chefes), veremos que havia uma tendência evidente, por parte deles, em direção à não violência. Havia até um exagero nesse direcionamento: os MPL se dispunham a dançar nas manifestações, e não queriam nem carro de som – para não “oprimir” os manifestantes –, nem, ao que parece, serviço de ordem. Não posso exibir documentos, mas creio que foi essa a atitude deles.
Depois as coisas mudaram um pouco. Claro, houve violência, e grande violência por parte da polícia militar. Alguns manifestantes reagiram. Mas, principalmente, apareceu um grupo, os famosos black blocs, ativistas encapuçados, que se propuseram a enfrentar a polícia e também a destruir peças do patrimônio público ou privado.
Com os resultados que conhecemos: alguns feridos, também do lado de lá, e mais prisões. Deixo de lado outros problemas, como o da presença de elementos que se podem considerar como “de direita” no interior das manifestações, o que, sem dúvida, complicou o quadro.
Mas o que me impressiona, em sentido negativo, é que os militantes dos grupos que estão na origem das mobilizações de junho (e, em parte, das manifestações anteriores) foram progressivamente definindo uma atitude de quase respeito, respeito político, ou talvez até mais do que isso, pelo grupo violento dos encapuçados. Insisti, em textos anteriores, sobre o quanto isso representou um engano lamentável, fruto sem dúvida do fetichismo da violência que domina parte da esquerda desde pelo menos um século.
Ora, Arantes não distingue as atitudes presentes nas práticas dos manifestantes, tampouco assume uma posição crítica diante do que é uma concessão, de gente que na origem tinha uma postura não violenta, às ações de um grupo notoriamente violento. O que me parece extremamente grave.
Eu distinguiria sim, na contramão do discurso arantiano (oh, ilusões reformistas e angelistas, dirão eles!), os manifestantes pacíficos dos quebradores de ônibus e incendiários de automóveis. Explico-me: não se trata de afirmar que, no frigir dos ovos, seja sempre possível impedir a um manifestante que ele reaja à violência com um gesto de defesa mais ou menos brusco. Isso pode ocorrer, e de fato ocorreu. Mas não se trata disso. A questão é que se constituiu um “bloco” de violentos e, através deles, um éthos de violência, cujas consequências, estou convencido, são funestas para o movimento.
Bem entendido, a violência maior vem do lado de lá. Mas não é esse o ponto. Haja ou não violência do outro lado da barreira, devemos coibi-la do lado de cá, e não adotá-la como bandeira. Isso, por duas ordens de razões. Na linguagem antiga, razões táticas e razões estratégicas.
Táticas, porque as reações violentas levam a violências ainda maiores do outro lado, e evidentemente não somos os mais fortes, não venceremos nessa luta hiperdesigual. E o preço que se paga por ela, em termos de prisões, ferimentos e mortes, é muito alto. No outro plano, há dois argumentos decisivos. É absurdo pensar que chegaremos ao poder ou a algum tipo de vitória maior, em médio ou longo prazo, apelando para aqueles gestos violentos. Sem dúvida houve, é claro, na história movimentos violentos que foram vitoriosos. Mas isso se deu em circunstâncias muito particulares e muito diferentes das nossas.
Para além disso, parece evidente que a formação de um grupo violento é a pior coisa que pode acontecer para manifestantes que pregam a autonomia, isto é, que têm uma agenda libertária. O grupo “armado”, como todos os grupos armados, vai se cristalizando em “grupo de vanguarda”, isto é, em grupo dirigente – e, com isso, a autonomia do movimento vai por água abaixo.
LÓGICA E POLÍTICA
N
ão faço concessão a uma fórmula convencional ao ressaltar tudo o que se pode encontrar em O Novo Tempo do Mundo. Já falei da prosa de ensaio, sob muitos aspectos invejável, da riqueza da bibliografia, das análises sobre o tempo e a tortura da espera sob o capitalismo contemporâneo – análises que culminam com o recurso às obras literárias de Kafka e de Beckett –, da presença de um livro tão importante como Souffrance en France, de Christophe Dejours. Não é pouca coisa. E entretanto...
O Novo Tempo do Mundo sofre de um déficit lógico e de um déficit político. Esses dois déficits se cruzam e se refletem. O livro tem alguma coisa de errado também num registro que se poderia chamar de retórico. Começo por esse último ponto. Apesar da beleza do estilo, ou talvez por causa dele, o tom de O Novo Tempo do Mundo não convence.
O brilho da prosa incomoda às vezes, e por várias razões. Um conteúdo que se revela deficiente, envolto numa prosa brilhante, é muitas vezes uma solução pior do que um conteúdo imperfeito, expresso em prosa sem brilho. A primeira situação, que é, em geral, a do livro, é muito mais mistificante. Depois, o virtuosismo da prosa às vezes passa do limite. E, em alguns casos – veja-se o capítulo com a entrevista “Tempo de exceção” –, o virtuosismo degenera em prosa de “piloto automático”, numa avalanche de palavras.
De forma geral, o tom de O Novo Tempo do Mundo é eminentemente elitista, senão aristocrático. O narrador encarna, de certo modo, o “espírito absoluto” hegeliano.
(O hegelianismo de Arantes, infelizmente e de forma surpreendente na pena de um tão bom conhecedor de Hegel, é menos o da dialética, como discurso crítico, do que o do idealismo dogmático.) Ele oficia demasiadamente “lá de dentro”, ou do alto demais, o que vem a ser a mesma coisa.
Às vezes nos perguntamos se esse tom é de alguém que está realmente preocupado com a sorte da humanidade. Lendo a prosa arantiana, tem-se a impressão não só de que ele prega para convertidos, mas de que ele fala tendo diante de si algo assim como uma mesa... posta.
Passemos aos problemas propriamente substantivos. O Novo Tempo do Mundo é na realidade uma formidável máquina identitária. Tudo corresponde a tudo, e tudo leva finalmente ao “novo regime de acumulação” do capital. O que não conduz a isso não é real. Dir-se-ia, parafraseando uma frase célebre – e frequentemente mal entendida –, que no livro “tudo o que é real é capital (remete ao capital), e tudo o que é capital (remete ao capital) é real”. Poder-se-ia dizer também: “Tudo o que é racional é capital”, porque não haveria racionalidade fora do âmbito de efetividade do capital.
A isso se soma o grande déficit político do livro: a história do comunismo está ausente como tema. Isto é, a análise dessa história está ausente. E como o comunismo, praticamente morto no final do século XX, é entretanto um fantasma arquipresente no XXI sob a forma dos populismos autocráticos e, em geral, pela presença maciça, embora muitas vezes insuspeitada, do leninismo, principalmente nas esquerdas do Terceiro Mundo, essa ausência condena in limine toda tentativa de esboçar uma teoria da história dos últimos 100 anos. E tanto mais porque a ausência do comunismo vai junto – em parte coincide – com o esquecimento da maior parte da história das lutas sociais nesse período.
O Novo Tempo do Mundo é um livro com pouca memória, um texto que, no que se refere aos movimentos sociais, joga a carta da ruptura, uma ruptura que é em grande parte ilusória.
Mas, precisamente, o que o livro não enxerga? Ele não enxerga em todo o seu alcance – volto ao ponto porque resume o argumento – a formidável inversão que se opera no século XX. Um grande movimento de emancipação que desemboca em ditadura totalitária. Porém o pior é que a incapacidade de pensar a grande inversão se manifesta não só na leitura do passado, mas também com relação ao futuro. Se Arantes não vê – ou vê pouco – a grande catástrofe que foi a história de um movimento de emancipação conduzindo a um neodespotismo genocida, ele também não enxerga (ou, antes, lhe é indiferente) a possibilidade de que esse fenômeno (ou um fenômeno aparentado com aquele, por exemplo um populismo autoritário) possa ocorrer também no futuro. Para Arantes, “populismo” é “entidade fantasmagórica” – assim, autoritarismo “de esquerda”, como cenário político presente ou futuro para a América Latina, também deve ser.
Em resumo, o que o autor de O Novo Tempo do Mundo não percebe com olho crítico é que os atuais movimentos que, em princípio, vão no sentido da emancipação podem, sob certas condições, se tornar o seu contrário, isto é, levar a regimes, se não totalitários, pelo menos populistas e autoritários.
As condições a que me refiro podem ser várias, mas uma delas pode ser identificada examinando os meios de que se valem esses movimentos. E aí somos reconduzidos ao problema da violência. A escolha e a prática de meios intencionalmente violentos são, pelas razões que indiquei, um índice do risco de que movimentos emancipatórios se transformem em projetos autocráticos.
Existe assim, para os dois casos – passado e futuro –, um déficit lógico-político, que é o de uma leitura pouco dialética da realidade histórica – observe-se que o termo “dialética”, não raro vulgarizado, tem aqui um uso rigoroso –, uma leitura insuficientemente aberta às inversões de sentido que podem se produzir na história.
Há, em O Novo Tempo do Mundo, um problema geral de fundamentação. Mais precisamente – mas as duas coisas vão na mesma direção – uma dificuldade no nível dos fins que ele propõe, na medida em que é um texto político. Pode-se perguntar: quais são os objetivos políticos do discurso? Porque, por um lado, o livro revela uma tendência a recusar os problemas que, em princípio, poderiam ser resolvidos dentro do capitalismo.
Um exemplo extremo da liquidação, fácil, de um problema desse tipo está no tratamento dado à questão dos automóveis na cidade, isto é, da necessidade de promover o transporte coletivo. Pensando, talvez, em fazer um trabalho de desmistificação, o autor remete à descrição de um projeto de cidade sem automóveis que estaria sendo feito em um emirado hiperautocrático. Não bastasse o caráter caricatural do argumento, acabamos sendo informados, depois de três páginas de leitura, que o tal projeto não se realizou, nem se realizará... E fica tudo por aí.
O objetivo seria então a revolução? Nada menos claro. Tem-se a impressão de que Arantes põe e tira a “Revolução” do bolso do colete. Ele utiliza o termo quando lhe convém (para opô-lo a “Urgência”, por exemplo), e o retira quando não lhe serve (quando fala das ilusões do passado, por exemplo). Alguém pode argumentar que a ambiguidade e a indefinição são objetivas. O autor só as refletiria. Não é assim. Ainda que difíceis, as respostas existem, e podemos chegar a elas; mas só se formos capazes de recusar as ambiguidades retóricas.
Como vimos, o livro de Dejours fornece alguns conceitos que poderiam representar verdadeiros fundamentos e fins, conceitos de resto muito pouco ortodoxos.
Em primeiro lugar, a ideia de “sofrimento social” (também a ideia de “injustiça”, que tem a originalidade de não ser nada original). Se tivesse realmente servido como fundamento do projeto teórico-prático que o livro encerra, esse tipo de conceituação permitiria construir uma crítica muito mais aberta ao real e muito menos dogmática. Afinal o “sofrimento social” não vem só do capitalismo; há, mesmo hoje – basta ver o Oriente Médio, e até, em parte, a China e a Rússia –, muito sofrimento social que não tem propriamente origem no capitalismo.
Mas, fora o capítulo mais diretamente afinado com o livro de Dejours, O Novo Tempo do Mundonão vai exatamente por aí. Ele antes mistura “sofrimento social” com “revolução”, e “revolução” com o seu contrário, “o fim das grandes expectativas”. O resultado é uma espécie de niilismo, mas niilismo apesar de tudo marxista, ou neomarxista.
Aliás, às vezes o livro descamba para o pior marxismo ou, antes, vai do marxismo para algo pior do que ele. Arantes não hesita em utilizar – sem advertir o leitor sobre a perspectiva geral dos autores que cita – teóricos notoriamente stalinistas, do tipo dos italianos Domenico Losurdo – que escreve livros contra “a lenda negra (sic) de Stálin” – ou Luciano Canfora – que toma a defesa da falecida República Democrática Alemã (para Canfora, esta era democrática mesmo). Também se dispõe a fazer um elogio discreto do populista Chávez, e a chamar o homem político de esquerda (anti-Chávez) venezuelano Teodoro Petkoff de “renegado”.
Se nos fixarmos sobre a ausência do topos crítico, fundamental, da inversão do movimento histórico a que me referi; se notarmos o dualismo simplista na leitura da política internacional, por exemplo; e ainda a ausência desse grande instrumento crítico que é a contra-história, uma vez que o autor raramente pensa na possibilidade de que outra coisa pudesse ter acontecido – então, para além da complexidade dos argumentos, da sofisticação do raciocínio e da multiplicidade e riqueza das referências, O Novo Tempo do Mundo se revelará, finalmente, como um livro cuja filosofia é, no fundo, um progressismo mais ou menos vulgar.
Eu não hesitaria em dizer que, no plano teórico-crítico, o livro naufraga. Fico tentado a afirmar que ele é teoricamente “torto”, no sentido de que abandona aquele que por razões subjetivas e objetivas poderia e deveria ser seu curso, o da crítica dialética, a rigor ausente.
Quanto a seus efeitos no plano prático-político, se pensarmos no entusiasmo pela violência que parte da juventude manifesta, na confiança ingênua que não raro deposita nela, parece evidente que O Novo Tempo do Mundo, obra de um grande intelectual que abraça sem crítica a chamada violência revolucionária – principalmente se o livro for adotado por certa juventude politizada, como parece que já vem acontecendo –, certamente fará, naquele registro, muito mais mal do que bem. Não direi mais.
18 de dezembro de 2014
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