O texto abaixo é de autoria de um preso no campo de concentração de Buchenwald, o espanhol Jorge Semprun, que foi membro do Comitê Central do Partido Comunista Espanhol, partido que abandonou em 1964, quando se desencantou com a doutrina científica. Foi no campo de concentração que primeiro Semprun sentiu a opressão imposta pelo partido. Havia uma célula comunista em ação, em Buchenwald, organizada como um contra-poder e Semprun sentiu que havia um sistema repressivo dentro do outro. Jorge Semprun, nos anos 80, foi ministro da Cultura do governo social-democrata espanhol. É autor de vários livros, entre os quais “Um Belo Domingo”, editado no Brasil em 1980 pela Nova Fronteira.
“Um Belo Domingo” relata a história de um homem – o próprio Jorge Semprun – cujo destino foi se confrontar com dois sistemas de vida igualmente opressivos, e deles se libertar: os campos de concentração nazistas e o stalinismo. O livro, carregado de paixão pela liberdade, é um libelo radical em favor da autonomia do homem na busca de sua identificação individual e social.
O trecho escolhido relata a chegada de um grupo de judeus poloneses a Buchenwald. Vamos a ele:
“Várias centenas deles estavam na esplanada que se estende atrás da barraca do Arbeitsstatistik. Apertados uns contra os outros. Talvez por hábito, talvez para não cair. Há semanas estavam apertados uns contra os outros, nos vagões dos trens que os traziam dos campos da Polônia.
Apertavam-se uns contra os outros sob a chuva de neve, na bruma glacial daquele dia. Nenhum ruído se erguia daquela massa vacilante. Nenhum ruído humano, pelo menos. Nenhuma voz, murmúrio, nem mesmo um sussurro de angústia. Estavam congelados no silêncio, sob a chuva de neve, na umidade traiçoeira daquele dia. Só se ouvia, de vez em quando, o ruído de rebanho. O barulho dos seus tamancos de madeira batendo nos pedregulhos do solo molhado, lamacento. Um ruído de rebanho no redil, batendo com seus tamancos de madeira no solo de algum lugar do mercado, de uma feira de animais. Nada além desse ruído.
Vendo-os assim, amontoados sob a chuva fina, podia-se imaginar sua paciência infinita, a espera resignada das catástrofes que a vida lhes reservara ferozmente.
Não eram nada mais do que essa paciência infinita, essa resignação que nada mais podia ferir. Sua força vital não era mais do que essa fraqueza mortal de rebanho no redil. Não fizeram perguntas, não procuravam saber por que estavam agrupados lá, o que iam fazer com eles. Tinham sido reunidos há pouco na frente da barraca do campo de quarentena, todos os que ainda eram capazes de andar, de pôr um pé na frente do outro, tinham sido trazidos para cá.
Colocam um pé na frente do outro, penosamente, como se cada vez fosse a última. Estavam ali, não faziam perguntas, nem mesmo murmuravam entre si, esperavam. Tinham sido arrumados, manipulados, como se arranjam ou manipulam sacos de cimento, troncos de árvores, pedras. Uma centena por fileira, seis fileiras. Eram 600, apertados uns contra os outros, esperando.
Podiam ver a fachada posterior da barraca de Arbeit, que não sabiam ser a barraca de Arbeit. Viam uma barraca, simplesmente. Através dos vidros das janelas dessa barraca podiam ver mesas, um fichário, um fogão que devia estar aceso, pois distinguiam os homens em mangas de camisa que circulavam lá dentro, bem aquecidos, fora da chuva. Não se admiravam, certamente. Sempre houvera essas pessoas abrigadas da chuva, bem aquecidas, enquanto eles estavam lá fora mexendo na terra, ou na neve, ou na lama, ou nos cadáveres dos companheiros.
Se tivessem virado a cabeça, teriam visto o prédio do crematório, a chaminé compacta da qual o vento cortante e glacial afastava a fumaça por momentos. Mas não viraram a cabeça, estavam habituados. Esperavam, simplesmente, com o ruído intermitente de rebanho num redil, numa feira, ruído dos seus tamancos de madeira sobre o cascalho cortante da esplanada varrida pela neve e pelas chuvas de inverno.
Eles chegavam ocupando trens inteiros, vindos da Polônia, naquelas últimas semanas. A ofensiva de Rokossovsky detivera-se exatamente às portas de Varsóvia, em setembro, deixando que os alemães dominassem a insurreição de Bor-Komorowski.A frente de batalha da Polônia estava parada, no momento. Na Hungria, nos arredores de Budapeste é que se desenrola o ataque soviético.
Como a luz das estrelas mortas, trens inteiros de deportados dos campos da Polônia tinham errado pela Europa durante semanas. Às vezes, não tendo mais sobreviventes para transportar, os trens eram abandonados nos trilhos, nas estações ou em campo raso. Às vezes, os trens chegavam até a estação de Buchenwald, no meio da floresta de Ettersberg. A coluna dos sobreviventes caminhava aos tropeços na avenida das Águias Imperiais, em direção à entrada do campo.
Nós olhávamos os sobreviventes desses sobreviventes, sem dizer nada.
Eles deviam entrar por grupo de 15 no anexo que fora construído há alguns meses, atrás da barraca do Arbeit. Eles estavam viajando há meses com breves paradas em diversos lugares. Tinham saído da Polônia há muito tempo. Estavam em um pequeno campo perto de Czestochowa e certo dia ouviram os tiros de canhão, o estrondo da guerra que se aproximava. E depois, numa manhã, ao alvorecer, os alemães tinham partido. Estavam sozinhos, sem os alemães para os guardar.
Nenhuma sentinela nos mirantes. Era suspeito, uma armadilha, sem dúvida. Então, agruparam-se sob a direção dos anciãos, deixaram o campo abandonado pelos alemães, caminharam até a cidade mais próxima, em fileiras cerradas, em ordem, ninguém deixou a coluna. Na cidade havia uma estação de estrada de ferro, comboios alemães, que se dirigiam em fila para o Ocidente. Apresentaram-se aos alemães, dizendo: “ei-nos aqui, esqueceram de nós”. Foi preciso discutir, pois os alemães não queriam saber deles. Mas, finalmente, os alemães os fizeram embarcar em um trem. E partiram para o Ocidente, eles também.
- Mas, por que? Perguntei atônito a um deles.
Ele olhou-me como se eu fosse um idiota e explicou:
- Os alemães partiram, certo? – disse ele.
- E então?
Sacudiu a cabeça e me explicou calmamente:
- Se os alemães partiram, quer dizer que os russos estão chegando, certo?
- Sim – digo – e então?
Ele se inclina para mim, irritado, invadido por uma cólera súbita e quase gritando:
- Os russos! – exclama ele – não sabe que os russos detestam os judeus?
Olho para ele. Ele se afasta. Espera que eu tenha compreendido agora. Na verdade, pensei ter compreendido.
Você jamais se esquecerá dos judeus de Czestochowa.
Você envelhecerá, o véu negro da amnésia regressiva, da imbecilidade, talvez, se estenderá sobre uma parte da sua paisagem interior. Não terá mais conhecimento da suavidade violenta das mãos, das bocas, das pálpebras das mulheres. Perderá o fio de Ariadne do seu próprio labirinto, errará por ele ofuscado pela luz próxima da morte. Você verá a criança que amou acima de tudo no mundo, e não terá nada a dizer ao homem que ele será então, que o tratará com um misto de carinho piedoso e impaciência contida.
Você logo estará morto, meu velho.
Não terá partido na fumaça de Buchenwald, nuvem ligeira sobre a coluna deEttersberg, flutuando pelos arredores para um derradeiro adeus aos companheiros antes de se dispersar ao vento sobre a planície da Turíngia. Você logo apodrecerá sob a terra, em qualquer lugar, não importa onde, pois para isso todas as terras são iguais.
Mas você não esquecerá jamais. Vai recordar até o último minuto os judeus de Czestochowa, de pé, congelados, fazendo um esforço enorme para estender os braços na saudação hitlerista para os guardas do campo. Transformados em verdadeiros judeus, ou seja, ao contrário, transformados na verdadeira negação do judeu. Transformados na imagem que uma certa história deu aos judeus. Uma história claramente anti-semita que só suporta os judeus ao tê-los miseráveis e submissos, para poder desprezá-los enquanto os extermina.
Outra história, mais hipócrita, que não sabe às vezes que é anti-semita, que finge mesmo não ser, mas que só suporta os judeus como oprimidos, vítimas, para poder lamentá-los, enquanto os extermina.
Hoje, primeiro de maio de 1979, me recordei outra vez dos judeus de Czestochowa”.
13 de novembro de 2014
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
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