Nos polos opostos do espectro político, sob as lentes do dualismo, emergem interpretações eleitorais rasteiras
‘Os dois Brasis” — o título é célebre; o autor, pouco conhecido. Publicada em 1957, nos anos áureos de JK, a obra do francês Jacques Lambert contrapunha o “novo” ao “arcaico”, esboçando os rumos de uma modernização pela qual o primeiro contaminaria o segundo até dissolvê-lo no caldo do progresso. A linguagem binária da sociologia do desenvolvimento, um eco de polaridades antigas (litoral versus sertão, cidade versus campo), projetava-se como geografia econômica: Sudeste versus Nordeste. Mais de meio século depois, a tese dualista parece se refletir como mapa eleitoral: Aécio triunfou no Centro-Sul; Dilma, no Norte-Nordeste.
A hegemonia lulopetista na “sua” região é avassaladora. Na Bahia, Dilma obteve 61% dos votos; no Ceará, 68%; no Maranhão e no Piauí, 70%. As derrotas coagulam singularidades: Pernambuco, terra de Eduardo Campos, escolheu Marina, assim como o Acre, terra de Marina; Roraima, estado de colonos traumatizados pela política indígena, sufragou Aécio. O Brasil que depende do poder central, das transferências públicas, dos programas de renda, teme a mudança. Lambert tinha razão? Não: a modernização reiterou o arcaísmo, atualizando-o.
A fronteira entre os “dois Brasis” atravessa o Centro-Sul. São Paulo deu a Aécio 29% de sua votação nacional. O tucano levou o Sul, mas não o Rio Grande do Sul, triunfou em todo o Centro-Oeste e venceu no Espírito Santo — mas perdeu no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. É que a “fronteira lambertiana” passa dentro dos estados. O Norte de Minas Gerais, cujos indicadores sociais assemelham-se aos do Nordeste, inclinou-se em massa para Dilma, tanto quanto a deprimida “Metade Sul” do Rio Grande do Sul. No Rio de Janeiro, Aécio levou a capital e a Região Serrana, enquanto Marina levou Niterói, mas Dilma ficou com a Baixada Fluminense e o interior do estado. Até em São Paulo a presidente-candidata obteve vitórias esparsas, quase restritas aos municípios pobres do Pontal do Paranapanema e do Vale do Ribeira.
O PT nasceu e cresceu nas grandes cidades do Centro-Sul, entre os jovens, a classe média e os trabalhadores qualificados, mas trocou de eleitorado depois de chegar ao poder. Hoje, esse universo é terra estrangeira para o lulopetismo: todas as capitais do Sudeste, do Sul e do Centro-Oeste alinharam-se com Aécio. Somados, Aécio e Marina tiveram algo entre 70% e 80% dos votos de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e Brasília. No Nordeste, pelo contrário, entre as cidades mais importantes, Dilma só perdeu em Recife, Caruaru e Maceió (para Marina) e em Campina Grande, polo tecnológico e acadêmico (para Aécio). Os principais centros industriais viraram as costas ao PT, que perdeu no ABC Paulista, seu berço original, em Volta Redonda, no cinturão siderúrgico mineiro e na maioria das cidades manufatureiras do Sul. A “classe trabalhadora” vota contra o “Partido dos Trabalhadores”.
Nos polos opostos do espectro político, sob as lentes do dualismo, emergem interpretações eleitorais rasteiras. “Luta de classes”, diz uma esquerda caricata, oportunamente esquecida de que a antiga Arena tinha suas fortalezas eleitorais nas regiões e camadas mais pobres. “Desinformação”, replica uma direita primitiva, incapaz de entender as assimetrias da razão: a lógica dos outros. A rígida divisão regional do mapa eleitoral não é uma boa notícia política, mas o problema real se expressa nesse tipo de leituras do cenário nacional.
Há um mês, em entrevista à “Folha de S.Paulo”, o presidente da Vale, Murilo Ferreira, um preposto do lulismo alçado pelo bloco acionário composto pelo BNDES e pelos fundos de pensão, ecoou a melodia da campanha de Dilma atribuindo as críticas ao governo a empresários rancorosos “da Faria Lima”. São Paulo esteve, ao lado de Porto Alegre, entre os primeiros grandes municípios administrados pelo PT, de 1989 a 1993 — e, depois de Luiza Erundina, voltou a eleger uma prefeita petista, Marta Suplicy, em 2001. O antipetismo registrado na onda de votos em Aécio não é um dado inerente aos paulistas, mas o fruto de uma longa experiência política. O núcleo central do empresariado, constituído por bancos, empreiteiras e companhias financiadas pesadamente pelo BNDES, dirigiu a maior parcela das doações legais de campanha para a presidente-candidata. A “elite branca paulista” é um álibi, tecido com a linguagem abominável da raça, para justificar o recuo do lulopetismo rumo ao Norte-Nordeste.
Na outra ponta, o mapa do voto é um convite à irrupção do preconceito antinordestino, que associa os sufrágios em Dilma à “ignorância” e ao “cabresto”. Não há nada de surpreendente na circunstância de que as escolhas eleitorais da população de escolaridade e renda inferiores são atraídas pela força gravitacional do poder de Estado. No passado, o tradicional voto de cabresto beneficiava os “coronéis”, chefes políticos locais que intercambiavam apoio eleitoral por favores pessoais, derramando dentaduras entre os habitantes de seus “currais”. O Bolsa Família não é uma “bolsa esmola”, como o qualificou Lula quando, nos idos do governo FH, ainda se chamava Bolsa Escola. O voto nas políticas de renda distingue-se positivamente do antigo voto de cabresto pois circunda os “coronéis”, inscrevendo-se de algum modo no campo do debate público sobre as políticas de combate à pobreza.
O conceito de “dois Brasis” é uma explicação sedutora, mas superficial, da cena eleitoral reiterada no domingo. Os “dois Brasis” estão em todas as regiões, como provam Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Além disso, crucialmente, a meta de superação da pobreza forma uma ponte política entre os “dois Brasis”, como prova o triunfo eleitoral de Lula em 2002, obtido com os votos majoritários do Centro-Sul, inclusive de São Paulo. Tanto um Brasil como o outro merecem mais que a exumação oportunista de uma ossada sociológica.
‘Os dois Brasis” — o título é célebre; o autor, pouco conhecido. Publicada em 1957, nos anos áureos de JK, a obra do francês Jacques Lambert contrapunha o “novo” ao “arcaico”, esboçando os rumos de uma modernização pela qual o primeiro contaminaria o segundo até dissolvê-lo no caldo do progresso. A linguagem binária da sociologia do desenvolvimento, um eco de polaridades antigas (litoral versus sertão, cidade versus campo), projetava-se como geografia econômica: Sudeste versus Nordeste. Mais de meio século depois, a tese dualista parece se refletir como mapa eleitoral: Aécio triunfou no Centro-Sul; Dilma, no Norte-Nordeste.
A hegemonia lulopetista na “sua” região é avassaladora. Na Bahia, Dilma obteve 61% dos votos; no Ceará, 68%; no Maranhão e no Piauí, 70%. As derrotas coagulam singularidades: Pernambuco, terra de Eduardo Campos, escolheu Marina, assim como o Acre, terra de Marina; Roraima, estado de colonos traumatizados pela política indígena, sufragou Aécio. O Brasil que depende do poder central, das transferências públicas, dos programas de renda, teme a mudança. Lambert tinha razão? Não: a modernização reiterou o arcaísmo, atualizando-o.
A fronteira entre os “dois Brasis” atravessa o Centro-Sul. São Paulo deu a Aécio 29% de sua votação nacional. O tucano levou o Sul, mas não o Rio Grande do Sul, triunfou em todo o Centro-Oeste e venceu no Espírito Santo — mas perdeu no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. É que a “fronteira lambertiana” passa dentro dos estados. O Norte de Minas Gerais, cujos indicadores sociais assemelham-se aos do Nordeste, inclinou-se em massa para Dilma, tanto quanto a deprimida “Metade Sul” do Rio Grande do Sul. No Rio de Janeiro, Aécio levou a capital e a Região Serrana, enquanto Marina levou Niterói, mas Dilma ficou com a Baixada Fluminense e o interior do estado. Até em São Paulo a presidente-candidata obteve vitórias esparsas, quase restritas aos municípios pobres do Pontal do Paranapanema e do Vale do Ribeira.
O PT nasceu e cresceu nas grandes cidades do Centro-Sul, entre os jovens, a classe média e os trabalhadores qualificados, mas trocou de eleitorado depois de chegar ao poder. Hoje, esse universo é terra estrangeira para o lulopetismo: todas as capitais do Sudeste, do Sul e do Centro-Oeste alinharam-se com Aécio. Somados, Aécio e Marina tiveram algo entre 70% e 80% dos votos de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e Brasília. No Nordeste, pelo contrário, entre as cidades mais importantes, Dilma só perdeu em Recife, Caruaru e Maceió (para Marina) e em Campina Grande, polo tecnológico e acadêmico (para Aécio). Os principais centros industriais viraram as costas ao PT, que perdeu no ABC Paulista, seu berço original, em Volta Redonda, no cinturão siderúrgico mineiro e na maioria das cidades manufatureiras do Sul. A “classe trabalhadora” vota contra o “Partido dos Trabalhadores”.
Nos polos opostos do espectro político, sob as lentes do dualismo, emergem interpretações eleitorais rasteiras. “Luta de classes”, diz uma esquerda caricata, oportunamente esquecida de que a antiga Arena tinha suas fortalezas eleitorais nas regiões e camadas mais pobres. “Desinformação”, replica uma direita primitiva, incapaz de entender as assimetrias da razão: a lógica dos outros. A rígida divisão regional do mapa eleitoral não é uma boa notícia política, mas o problema real se expressa nesse tipo de leituras do cenário nacional.
Há um mês, em entrevista à “Folha de S.Paulo”, o presidente da Vale, Murilo Ferreira, um preposto do lulismo alçado pelo bloco acionário composto pelo BNDES e pelos fundos de pensão, ecoou a melodia da campanha de Dilma atribuindo as críticas ao governo a empresários rancorosos “da Faria Lima”. São Paulo esteve, ao lado de Porto Alegre, entre os primeiros grandes municípios administrados pelo PT, de 1989 a 1993 — e, depois de Luiza Erundina, voltou a eleger uma prefeita petista, Marta Suplicy, em 2001. O antipetismo registrado na onda de votos em Aécio não é um dado inerente aos paulistas, mas o fruto de uma longa experiência política. O núcleo central do empresariado, constituído por bancos, empreiteiras e companhias financiadas pesadamente pelo BNDES, dirigiu a maior parcela das doações legais de campanha para a presidente-candidata. A “elite branca paulista” é um álibi, tecido com a linguagem abominável da raça, para justificar o recuo do lulopetismo rumo ao Norte-Nordeste.
Na outra ponta, o mapa do voto é um convite à irrupção do preconceito antinordestino, que associa os sufrágios em Dilma à “ignorância” e ao “cabresto”. Não há nada de surpreendente na circunstância de que as escolhas eleitorais da população de escolaridade e renda inferiores são atraídas pela força gravitacional do poder de Estado. No passado, o tradicional voto de cabresto beneficiava os “coronéis”, chefes políticos locais que intercambiavam apoio eleitoral por favores pessoais, derramando dentaduras entre os habitantes de seus “currais”. O Bolsa Família não é uma “bolsa esmola”, como o qualificou Lula quando, nos idos do governo FH, ainda se chamava Bolsa Escola. O voto nas políticas de renda distingue-se positivamente do antigo voto de cabresto pois circunda os “coronéis”, inscrevendo-se de algum modo no campo do debate público sobre as políticas de combate à pobreza.
O conceito de “dois Brasis” é uma explicação sedutora, mas superficial, da cena eleitoral reiterada no domingo. Os “dois Brasis” estão em todas as regiões, como provam Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Além disso, crucialmente, a meta de superação da pobreza forma uma ponte política entre os “dois Brasis”, como prova o triunfo eleitoral de Lula em 2002, obtido com os votos majoritários do Centro-Sul, inclusive de São Paulo. Tanto um Brasil como o outro merecem mais que a exumação oportunista de uma ossada sociológica.
11 de outubro de 2014
Demétrio Magnoli, O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário