"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

DOIS LIBERTARIANISMOS

Roth


 
Coloquemos desta forma: quando tipos como F.A. Hayek e Milton Friedman morreram, o estandarte conservador National Review pôde elogiar e de fato elogiou os economistas, ganhadores do Prêmio Nobel, sem reservas. Mas quando Rothbard faleceu em 1995, seu antigo parceiro William Buckley pisoteou sua cova. Rothbard, Buckley escreveu, gastou sua vida" bufando e batendo o pé no pequeno claustro cujas paredes ele se esforçou tão exaustivamente para contrair, deixando-o, a final, não como o pai de um movimento de respeito (...) mas com mais ou menos tantos discípulos quanto David Koresh teve em seu pequeno reduto em Waco. Sim, Murray Rothbard acreditou em liberdade, e, sim, David Koresh acreditou em Deus."
 
As coisas são um pouco diferentes agora no tema da influência de Rothbard, embora seja pouco provável que qualquer um venha a notar isso no National Review — exceto talvez no contexto de ainda outro ataque a Ron Paul (deputado pelo Partido Republicano no Texas). O auge de Paul e sua jovem e entusiástica base de fãs, a qual Buckley não poderia ter previsto, contradiz a contenção de que a intransigência radical e divisora de Rothbard fadou-o à irrelevância.
 
O fenômeno Paul, o mais popular movimento do período pós-guerra a ser motivado por distintas idéias libertárias sobre a guerra, dinheiro e a função governamental, tem sido bem mais ativamente influenciado por Rothbard que pelas crenças ou estilo de qualquer outro intelectual libertário proeminente. O movimento de Paul é do caso de massas anti-guerra, anti-estado e anti-federativo que Rothbard sonhou durante toda sua vida adulta.
 
Rothbard foi uma influência sobre seu amigo Ron Paul, e os mui rothbardianos sites LewRockwell.com e Mises.org são centrais para a comunidade de Paul na internet. Este último é administrado pelo instituto Ludwig von Mises, o qual acaba de lançar uma interessante coletânea de escritos não publicados de Rothbard, editados pela cientista política italiana Roberta Modugno e intitulado Rothbard vs. the Philosophers [Rothbard versus os filósofos].
 
Os textos coletados são ensaios, cartas, e memorandos escritos entre os anos 1940 e 1950 para advertir vários grupos libertários de finanças (sobretudo o Volker Fund) sobre se determinados trabalhos e autores eram meios dignos para a promoção de mensagens libertárias. Devido a esse propósito prático, os escritos de Rothbard aqui elucidam uma importante fratura no extenso projeto libertário, tanto como operação intelectual quanto como um esforço para vender ideias.
 
Rothbard foi um intelectual com uma missão populista. Ele aprendeu muito com Marx e o movimento marxista em termos de estratégias para mudanças politico-econômicas radicais, e ele concordou com Marx que embora "os filosófos venham, até aqui, apenas interpretado o mundo de diversas maneiras, a ideia é mudá-lo." O ensaio introdutório de Modugno exprime as especificidades desse projeto: "O axioma da não-agressão" é "a verdadeira pedra angular do sistema rothbardiano", e portanto Rothbard "condena moralmente todas as formas de estatismo". Estados, no fim das contas, não podem funcionar sem uma primeira agressão à alguém, mesmo que seja apenas ao recolher impostos para financiar suas atividades.
 
Rothbard estava muito apreensivo, ao julgar o valor de outros intelectuais, com avaliar a eficácia daqueles pensadores em virar o mundo na direção da causa da total liberdade. Suas críticas, nesse ponto, muitas vezes incluem uma linguagem ao longo das linhas deste comentário sobre seu querido mentor Mises: "A abordagem relativista e utilitarista da ética de Mises não está nem ao menos perto de estabelecer uma defesa completa da liberdade."
 
Esse espírito de maximizar a vantagem libertária, algumas vezes ao custo de companheiros libertários, domina este livro. Rothbard é o mais interessante da maioria dos pensadores libertários: aguçado, espirituoso, maldoso, engraçado, por vezes abrasivo, quase sempre coloquial. Qualidades que brilham através dessas deliberações sobre se uma fundação quereria apoiar ou distribuir os trabalhos em discussão.
 
Suas condenações de Leo Strauss e Karl Polanyi, aqui, consequentemente, não devem ser lidas como uma interação nuançada e benevolente de filósofo para filósofo. Rothbard está escrevendo como um polemicista ideológico sobre quais pensadores são bons para o time. Esse aspecto do filósofo, evidente não só nessas notas até agora privadas mas em muito de seu jornalismo crítico a respeito de outros pensadores e ativistas, estando habituado a atacá-los como um pensador despreocupado, contudo, o criticismo não faz jus ao propósito deste tipo de polêmica.
Se Rothbard não captura todas as nuances da história ou da análise de Karl Polanyi em A grande transformação, ele está ainda assim fazendo o que lhe foi solicitado fazer: farejando uma série de crenças detectáveis sobre a civilização moderna, câmbio e mercados, que fazem de Polanyi um aliado ineficiente para os libertários radicais.
 
Partes desse livro mostram Rothbard prescientemente tomando partido em argumentos intra-libertários cujo significado somente tornar-se-ia óbvio muito tempo depois. As teorias de Ayn Rand sobre a "virtude do egoísmo" e sua elevação tonal dos direitos dos grandes sobre o auxílio aos oprimidos tornou-se altamente influente dentro do libertarianismo a partir de 1960, deitando a fundação para a noção agora comum de que esse aspecto pouco caridoso de Rand é "ruim para a marca" do libertarianismo.
Em um texto de 1948 atacando um ensaio em nome do "individualismo rude" do reitor da Universidade Colgate, George B. Cutten, Rothbard já defendia que a ênfase na "aspereza" do individualismo (sobretudo conectada a um darwinismo "pop" que vê moral e valor absoluto nos resultados de sobrevivência ante a cega evolução) seria um caminho ruim para os libertários." Eu considero um tributo às qualidades morais de uma sociedade individualista", escreveu ele, "o fato de que a caridade e a filantropia privadas ajudam os desafortunados entre nós."
 
E embora elogiando Leo Strauss, depois reconhecido como padrinho filosófico dos neoconservadores, por concordar que há absolutos éticos discerníveis pela razão, Rothbard aponta algumas curiosidades do pensamento straussiano, sobretudo enfocando suas famosas leituras "esotéricas" dos pares a Machiavelli e suas obsessões numerológicas, que Rothbard acha "realmente tão absurdas que são quase inacreditáveis" e "excruciantemente lunáticas".
 
A parte mais interessante de Rothbard vs. the Philosophers, e a mais importante para a história intelectual libertária, é um memorando que Rothbard escreveu em 1958 sobre A Constituição da liberdade de F.A. Hayek. Aquele livro, que acabou por sair em 1960, é a explicação prolongada e a defesa de Hayek do que chamou de "o ideal de liberdade que inspirou a civilização ocidental moderna." Em nota de Rothbard, inédita até agora, mas discutida durante anos em sussurros chocados entre libertários que tinham visto ou ouvido falar da mesma, ele aconselhou o Volker Fund que o livro não deveria ser apoiado — de fato, que deveria ser veementemente atacado após sua publicação.
 
Acidentes da história intelectual e institucional conectaram como "libertários" um conjunto de pensadores com divergências profundas sobre questões importantes tanto sobre o papel favorecido para o governo e a justificativa intelectual para suas convicções políticas e éticas.Todos eles estavam ligados pela oposição ao consenso keynesiano pós-New Deal de gastos do governo e de planejamento, todos estavam ligados em uma comunidade de afinidade e engajamento intelectual, através de organizações como o Volker Fund, a Mont Pelerin Society, e a Foundation for Economic Education. Mas, como Rothbard deixa abundantemente claro
aqui, existem diferenças cruciais entre o pensamento de governo limitado falibilista e utilitarista de Hayek (e Friedman, e em grande grau Mises) e do anarquismo baseado em direitos naturais de Rothbard. (Rothbard, junto com Hayek e Mises, acreditava, sim, que uma sociedade livre seria o sistema mais rico em opções, portanto, defensável por razões pragmáticas. Mas ele também acreditava, como Rand, que havia uma ordem moral objetiva detectável pela razão que tornava certa a liberdade humana, independemente de se em um caso particular ela tenderia ao melhor em algum sentido prático.)
 
Em palavras que nunca teve a intenção de tornar públicas durante sua vida, Rothbard chama a mais monumental declaração de crenças e recomendações sobre a liberdade e a ordem política de Hayek de "surpreendente e preocupante, extremamente ruim, e eu ainda acrescentaria, um mau livro". A parte "má" vem do golpe que Rothbard acha que o texto vai provocar no movimento libertário. Hayek, assim como hoje visto como um dos expoentes mais respeitáveis e brilhantes do libertarianismo, elegeu seus escritos para endossar a liberdade apenas por razões instrumentais ("se quisermos convencer aqueles que já não partilham os nossos pressupostos morais", ele explicou, "não devemos simplesmente tomá-los como convencidos"). E ele não tomou sua oposição ao estado tão distante quanto o fez Rothbard. E, assim, sentiu que o livro iria criar uma retórica "Mesmo que Hayek admita ..." problema para os libertários mais radicais. (Em certa medida, esse temor se revelou verdadeiro.)
 
Os argumentos de Rothbard contra Hayek não são estritamente pragmáticos neles mesmos, ele sustenta que Hayek não entende os argumentos racionais para a liberdade e ignora a importância dos argumentos na história dos liberalismo clássico. Num memorando posterior, mais conciliatório, mas ainda negativo, enumera em muitas páginas as concessões que Hayek faz ao poder do Estado e Rothbard considera ilegítimas, de subsídios para bens públicos ao seguro-desemprego compulsório e à garantia obrigatória de rendimento mínimo.
 
O difícil relacionamento entre Rothbard e Hayek ecoa até hoje, com modernos hayekianos como Will Wilkinson e a ex-diretora da Reason, Virginia Postrel, publicamente lamentando a fusão de sua visão de mundo com crenças ao estilo de Rothbard. Escrevendo em seu blog, Wilkinson queixou-se que quando ele defende "algo como os argumentos para uma rede de segurança econômica que [Hayek e outros] gigantes do pensamento libertário efetivamente estabeleceram, muitos libertários me acusam de não ser realmente libertário. E muitos se mostram surpresos, como se eu estivesse sendo atrevidamente iconoclasta por vagar tão longe da reserva. "
 
Postrel uma vez escreveu no Cato Unbound que "para alguém de fora, o libertarianismo oficial ... realmente parece uma seita doutrinária com um catecismo bem ensaiado. ... Tudo decorre de um princípio simples: propriedade privada ou não-agressão. É filosofia política como álgebra simples". Ela, então observa que tal definição do libertarismo não deixa espaço para o estilo de Hayek que ela abraça, uma vez que seus defensores não "aderem ao raciocínio dedutivo promovido por Ayn Rand ou Rothbard Murray. Eles não têm 'princípios fundamentais' e não são 'radicais'." Todos os tipos de disputas intralibertários, seguem mais ou menos as mesmas linhas da divisão entre o radical e inflexível antiestatista rothbardiano e o mais liberal clássico, utilitarista, falibilista, e prudente hayekiano.
 
Esses são tipos ideais, e um leque de argumentos e sentimentos distintos sombreia o campo de batalha entre as tribos -— especialmente quando Rothbard, pessoa controversa e contenciosa, ao contrário da filosofia do rothbardianismo, está na mistura. Por exemplo, Rothbard, voltou-se tardiamente no fim da vida ao conservadorismo cultural, incluindo suporte para Pat Buchanan na campanha presidencial de 1992 (por ser ele foi o candidato mais populista, antiinstitucional e antiguerra na disputa), torna difícil para muitos libertários aceitar a idéia de que Rothbard resolutamente se recusa a fazer concessões ao estatismo. Rothbard nunca tomou o rumo que muitos jovens libertários influenciados por ele tomaram, de rejeitar por completo a política eleitoral. Ele sempre pensou, e falou, sobre as melhores e piores escolhas que tínhamos no ambiente político. Da Nova Esquerda nos anos 1960 à direita buchananita na década de 1990, ele tendeu a jogar seu peso atrás da mais proeminente força política contra a guerra.
 
As diferenças nos fins políticos últimos são muitas vezes refletidas em diferenças de tom e vontade de participar dos bastiões de sempre do poder e influência, em oposição a se queixar deles. O tipo de raiva externa que pode ser associada à argumentação estilo Rothbard, aparente em parte do movimento de Ron Paul hoje, atinge outros na órbita libertária como conducente a um circulo cultista dos vagões intelectuais que tornam mais difícil para as ideias radicais perfurar a arena de poder político e social real. Para Rothbard e seus sucessores, entretanto, "os espaços de poder político e social real" são um inimigo a ser combatido, e não uma fonte potencial de aliados.
 
"A intenção de Rothbard é fazer sua própria argumentação a favor da liberdade mais convincente", nota Modugno. Acontece que, apesar dos lúgubres avisos de Rothbard para o Volker Fund, o trabalho de Hayek era claramente persuasivo, e foi persuasivo principalmente sobre as áreas onde Rothbard e Hayek estavam de acordo. Hayek é tão bem lembrado por sua crítica ao planejamento central, sua defesa de um sistema de preços do mercado livre e sua demolição do conceito de "justiça social" que muitas pessoas familiarizadas com ele mais como um ícone e não como um pensador ficam surpresos ao saber que ele acreditava nas coisas pelas quais Rothbard o critica no volume.
 
Ambos Hayek e Rothbard foram mais do que intelectuais, foram defensores. E embora o que eles defendiam em última análise diferisse, no âmbito do governo crescente de hoje, o resto do mundo não é tão errado em embolá-los para fins práticos. De muitas maneiras, embora Rothbard certamente não pensasse assim quando contemplando a inédita Constituição da Liberdade, suas abordagens são complementares e não competitivas. Em um mundo de mentes diferentes, diferentes tipos de argumentos vão apelar a diferentes pessoas, por diferentes motivos. É o tipo de divisão intelectual do trabalho que os economistas como Rothbard e Hayek deveriam ambos ser capazes de apreciar.
 
Se Hayek e Rothbard foram (sem o conhecimento de Hayek) à guerra, é uma guerra que nenhum dos dois perdeu ou ganhou. Que as duas tendências sobrevivam é tudo de melhor tanto para as idéias libertárias quanto à forma geral da história política e intelectual humana.
 
05 de agosto de 2014
Publicado originalmente em 04/05/2010. Tradução de Alfredo Augusto F. Fonseca

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