A crise da dívida da Argentina ganhou um novo e emocionante capítulo na semana passada, mas está longe do epílogo. Norte-americanos que detêm títulos da nação do Cone Sul foram favorecidos por decisão da Justiça que lhes proporcionará US$ 1,33 bilhão. Estima-se que o montante devido a esses fundos seja de US$ 15 bilhões.
Os investidores sabem, porém, que não conseguirão obter tudo a que têm direito legalmente. Isso significaria receber dos argentinos o valor de face dos papéis, sobre o qual foram aplicados descontos que chegaram a 70% na reestruturação dos débitos do país após o calote de 2001.
O problema não está tanto no desembolso em questão, mas no que ele representa para o restante dos credores. Voltar atrás no que foi pactuado envolve algo superior a US$ 200 bilhões, em um país que tem hoje reservas de US$ 28 bilhões.
Representantes dos fundos têm dito que se dispõem a discutir. Afinal, eles não pagaram o valor integral dos títulos, comprados com o desconto posterior à reestruturação. Querem receber mais do que desembolsaram, e quanto mais conseguirem, melhor. Mas não se pode esquecer de que no mundo das finanças impera o pragmatismo. Os fundos, chamados abutres por mirarem a escória dos papéis do mercado, querem é lucrar, se possível rapidamente.
Por outro lado, o governo argentino sabe que não pode ignorar a decisão da Justiça norte-americana. Terá de dar alguma demonstração de boa vontade, na forma de pagamentos maiores do que os previstos no acordo que já havia sido pactuado.
O sucesso dessa nova etapa é, porém, altamente incerto, tanto no que se refere ao tempo quanto ao resultado. O governo argentino tem dado poucos sinais de que pretende usar transparência e objetividade no processo, algo que poderia melhorar suas chances. Na semana passada, o Ministério da Economia negou que estava enviando aos Estados Unidos uma missão para tratar do assunto. Depois voltou atrás e confirmou a viagem.
No fim de semana, a presidente Cristina Kirchner publicou na imprensa norte-americana um anúncio em que diz que os fundos "investiram milhões em lobby e propaganda, tentando fazer o mundo todo acreditar que a Argentina não paga suas dívidas e se recusa a negociar".
É ingênuo acreditar que será possível convencer a opinião pública dos Estados Unidos e, desse modo, fazer com que juízes e investidores mudem de ideia. Mesmo que gastasse toda a reserva cambial do país, a Casa Rosada talvez não conseguisse tal objetivo.
Pautar-se pela razão é algo necessário não só aos líderes do país vizinho, mas também ao governo brasileiro. Pode custar caro, do ponto de vista político, ajudar o aliado do Mercosul com recursos ou com apoio formal neste momento.
Ao prejudicar um de nossos principais parceiros econômicos, a crise terá impactos aqui, ainda que limitados. Mas proporciona também efeito benéfico do lado de cá da fronteira. Cala, ao menos por ora, as vozes que viam no calote e no desconto com a restruturação da década passada algo invejável, uma referência a ser replicada. Como na natureza, nas finanças os abutres podem ser desagradáveis, mas têm sua função.
24 de junho de 2014
Editorial Correio Braziliense
Os investidores sabem, porém, que não conseguirão obter tudo a que têm direito legalmente. Isso significaria receber dos argentinos o valor de face dos papéis, sobre o qual foram aplicados descontos que chegaram a 70% na reestruturação dos débitos do país após o calote de 2001.
O problema não está tanto no desembolso em questão, mas no que ele representa para o restante dos credores. Voltar atrás no que foi pactuado envolve algo superior a US$ 200 bilhões, em um país que tem hoje reservas de US$ 28 bilhões.
Representantes dos fundos têm dito que se dispõem a discutir. Afinal, eles não pagaram o valor integral dos títulos, comprados com o desconto posterior à reestruturação. Querem receber mais do que desembolsaram, e quanto mais conseguirem, melhor. Mas não se pode esquecer de que no mundo das finanças impera o pragmatismo. Os fundos, chamados abutres por mirarem a escória dos papéis do mercado, querem é lucrar, se possível rapidamente.
Por outro lado, o governo argentino sabe que não pode ignorar a decisão da Justiça norte-americana. Terá de dar alguma demonstração de boa vontade, na forma de pagamentos maiores do que os previstos no acordo que já havia sido pactuado.
O sucesso dessa nova etapa é, porém, altamente incerto, tanto no que se refere ao tempo quanto ao resultado. O governo argentino tem dado poucos sinais de que pretende usar transparência e objetividade no processo, algo que poderia melhorar suas chances. Na semana passada, o Ministério da Economia negou que estava enviando aos Estados Unidos uma missão para tratar do assunto. Depois voltou atrás e confirmou a viagem.
No fim de semana, a presidente Cristina Kirchner publicou na imprensa norte-americana um anúncio em que diz que os fundos "investiram milhões em lobby e propaganda, tentando fazer o mundo todo acreditar que a Argentina não paga suas dívidas e se recusa a negociar".
É ingênuo acreditar que será possível convencer a opinião pública dos Estados Unidos e, desse modo, fazer com que juízes e investidores mudem de ideia. Mesmo que gastasse toda a reserva cambial do país, a Casa Rosada talvez não conseguisse tal objetivo.
Pautar-se pela razão é algo necessário não só aos líderes do país vizinho, mas também ao governo brasileiro. Pode custar caro, do ponto de vista político, ajudar o aliado do Mercosul com recursos ou com apoio formal neste momento.
Ao prejudicar um de nossos principais parceiros econômicos, a crise terá impactos aqui, ainda que limitados. Mas proporciona também efeito benéfico do lado de cá da fronteira. Cala, ao menos por ora, as vozes que viam no calote e no desconto com a restruturação da década passada algo invejável, uma referência a ser replicada. Como na natureza, nas finanças os abutres podem ser desagradáveis, mas têm sua função.
24 de junho de 2014
Editorial Correio Braziliense
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