A riqueza financeira privada continua avançando muito mais rápido do que a economia mundial, reforçando as teses do economista francês
Enquanto ainda pipocam — com menos ímpeto, é verdade — contestações às ideias expostas em “O capital no século XXI”, o fenômeno editorial global acerca da desigualdade social e econômica promovida pelo capitalismo contemporâneo, o mundo real vai dando razão a seu autor, o economista francês Thomas Piketty. Embora a crise de 2008 ainda não tenha sido superada, a riqueza financeira no mundo está crescendo como nunca, mas sua distribuição avança muito mais lentamente.
De acordo com a edição 2014 do tradicional levantamento anual do gigante global Boston Consulting Group (BCG) sobre a evolução da riqueza no mundo, o total de ativos financeiros em poder de famílias alcançou o volume recorde de US$ 152 bilhões, no ano passado (ver “Global Wealth 2014: Riding a Wave of Growth”, em http://migre.me/jLJRr). A soma representa uma expansão de 15%, em comparação com os números de 2012.
É um ritmo de crescimento muito mais rápido do que o observado na economia mundial. Desde a crise de 2008, a riqueza financeira privada acumulada saltou 60% — média anual superior a 8% —, ao passo que o PIB global, em igual período, evoluiu a um ritmo médio inferior a 3% anuais.
Fica assim reforçada a já famosa tese de Piketty, segundo a qual a desigualdade aumenta sempre que a taxa de retorno dos ativos (r) for maior do que a do crescimento econômico (g). No pós-Segunda Guerra, esse descolamento, de fato, está presente desde pelo menos o início dos anos 80. O estoque de riqueza privada em 1980 era praticamente igual ao da produção econômica mundial naquele ano. Daí em diante, o fosso em favor dos ativos foi alargando até chegar, nos dias de hoje, ao equivalente a cerca de dez vezes o PIB americano e quatro vezes o PIB anual global.
Não existe perspectiva de reversão da tendência, nos próximos anos. Projeções contidas no estudo do BCG apontam uma evolução da riqueza financeira privada para US$ 200 trilhões até 2018, com base numa taxa de retorno média anual de 5,4%. Dificilmente a economia global avançará neste ritmo e é quase certo que os países industrializados nem sonharão com expansão nessa velocidade.
Não é só nesse ponto que, na vida real, está dando Piketty. O aumento da riqueza privada em 2013, no robusto montante de US$ 20 trilhões, foi impulsionado, em grande medida, pela rentabilidade dos recursos já existentes. Três em cada quatro dólares adicionados ao estoque de riqueza, no ano passado, vieram da rentabilidade obtida com ativos anteriormente acumulados, com grande destaque para os ganhos nos mercados de ações — que experimentaram, de 2012 a 2013, taxas de crescimento superiores a 20%. Diante dessa constatação, também é legítimo imaginar, como Piketty, que as heranças têm exercido papel ponderável no atual processo de acumulação financeira.
Mesmo com a economia global ainda em processo de recuperação, registrou-se, em 2013, um forte aumento no número de famílias milionárias. Elas eram 13,7 milhões, em 2012, e chegaram a 16,3 milhões, no ano passado — aumento de quase 20%. Passaram então a representar 1,1% do número global de famílias, vindo de 0,7%, em 2007.
Impulsionado mais pela inundação de liquidez promovida pelos bancos centrais nos mercados financeiros do que por uma expansão consistente da atividade econômica, o aumento pós-crise do número de sócios no clube dos ricos é amplamente insuficiente para contrabalançar o exército de 40 milhões de desempregados produzidos no mesmo período. É mais uma eloquente indicação, reforçada e atualizada, das sombrias profecias de Piketty.
16 de junho de 2014
José Paulo Kupfer, O Globo
Enquanto ainda pipocam — com menos ímpeto, é verdade — contestações às ideias expostas em “O capital no século XXI”, o fenômeno editorial global acerca da desigualdade social e econômica promovida pelo capitalismo contemporâneo, o mundo real vai dando razão a seu autor, o economista francês Thomas Piketty. Embora a crise de 2008 ainda não tenha sido superada, a riqueza financeira no mundo está crescendo como nunca, mas sua distribuição avança muito mais lentamente.
De acordo com a edição 2014 do tradicional levantamento anual do gigante global Boston Consulting Group (BCG) sobre a evolução da riqueza no mundo, o total de ativos financeiros em poder de famílias alcançou o volume recorde de US$ 152 bilhões, no ano passado (ver “Global Wealth 2014: Riding a Wave of Growth”, em http://migre.me/jLJRr). A soma representa uma expansão de 15%, em comparação com os números de 2012.
É um ritmo de crescimento muito mais rápido do que o observado na economia mundial. Desde a crise de 2008, a riqueza financeira privada acumulada saltou 60% — média anual superior a 8% —, ao passo que o PIB global, em igual período, evoluiu a um ritmo médio inferior a 3% anuais.
Fica assim reforçada a já famosa tese de Piketty, segundo a qual a desigualdade aumenta sempre que a taxa de retorno dos ativos (r) for maior do que a do crescimento econômico (g). No pós-Segunda Guerra, esse descolamento, de fato, está presente desde pelo menos o início dos anos 80. O estoque de riqueza privada em 1980 era praticamente igual ao da produção econômica mundial naquele ano. Daí em diante, o fosso em favor dos ativos foi alargando até chegar, nos dias de hoje, ao equivalente a cerca de dez vezes o PIB americano e quatro vezes o PIB anual global.
Não existe perspectiva de reversão da tendência, nos próximos anos. Projeções contidas no estudo do BCG apontam uma evolução da riqueza financeira privada para US$ 200 trilhões até 2018, com base numa taxa de retorno média anual de 5,4%. Dificilmente a economia global avançará neste ritmo e é quase certo que os países industrializados nem sonharão com expansão nessa velocidade.
Não é só nesse ponto que, na vida real, está dando Piketty. O aumento da riqueza privada em 2013, no robusto montante de US$ 20 trilhões, foi impulsionado, em grande medida, pela rentabilidade dos recursos já existentes. Três em cada quatro dólares adicionados ao estoque de riqueza, no ano passado, vieram da rentabilidade obtida com ativos anteriormente acumulados, com grande destaque para os ganhos nos mercados de ações — que experimentaram, de 2012 a 2013, taxas de crescimento superiores a 20%. Diante dessa constatação, também é legítimo imaginar, como Piketty, que as heranças têm exercido papel ponderável no atual processo de acumulação financeira.
Mesmo com a economia global ainda em processo de recuperação, registrou-se, em 2013, um forte aumento no número de famílias milionárias. Elas eram 13,7 milhões, em 2012, e chegaram a 16,3 milhões, no ano passado — aumento de quase 20%. Passaram então a representar 1,1% do número global de famílias, vindo de 0,7%, em 2007.
Impulsionado mais pela inundação de liquidez promovida pelos bancos centrais nos mercados financeiros do que por uma expansão consistente da atividade econômica, o aumento pós-crise do número de sócios no clube dos ricos é amplamente insuficiente para contrabalançar o exército de 40 milhões de desempregados produzidos no mesmo período. É mais uma eloquente indicação, reforçada e atualizada, das sombrias profecias de Piketty.
16 de junho de 2014
José Paulo Kupfer, O Globo
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