Pressões para a revisão da Lei de Anistia, a fim de que agentes públicos responsáveis por crimes cometidos na “guerra suja” travada, na ditadura, com grupos armados da esquerda sejam punidos na Justiça crescem à medida que, no trabalho da Comissão da Verdade, surgem revelações sobre aqueles tempos, feitas por militares e policiais que atuaram no aparelho de repressão política do Estado. Mudar esta lei, porém, não é apenas uma aberração jurídica, como também um erro político.
A chegada ao poder de partido mais à esquerda, o PT, no qual há vítimas da ditadura militar, colocou na pauta de discussões em Brasília mudanças na anistia de 1979. Antes, na Era FH, do PSDB, outro partido de esquerda, porém mais ao centro no mapa das ideologias, também perseguidos pelos militares assumiram cargos no Executivo e se elegeram para o Congresso, sem, no entanto, que os termos da anistia fossem contestados. Na gestão FH instituiu-se uma Comissão da Verdade e se aprovou legislação para se indenizarem vítimas da ditadura.
Em 2010, ação movida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para alterar a lei e permitir o indiciamento de agentes públicos foi rejeitada pelo Supremo, por sete votos a dois. Confirmou-se, portanto, a amplitude do perdão concedido pelo Congresso, por proposta do último dos governos militares, do presidente-general João Baptista Figueiredo.
Vários argumentos embasaram o veredicto. Eles continuam válidos. Um deles: não bastasse a anistia ter sido aprovada livremente pelo Congresso, ela emergiu de uma negociação da oposição com os generais. Mais do que isso, uma negociação incluída como parte de um processo mais amplo de transição da ditadura para o retorno à democracia, sem violência e maiores transtornos institucionais.
A Lei de Anistia, portanto, não pode ser vista de forma isolada, fora do contexto de uma redemocratização sem turbulências, sem vencidos e vencedores. Embora ficasse evidente a derrota do projeto militar de poder, nutrido a partir de uma geração de tenentes na década de 20, quando patrocinaram rebeliões contra a República Velha.
Outro aspecto é que a Anistia, ao contrário do que aconteceu em alguns países da América Latina, não beneficiou apenas um lado. Ela foi recíproca. Revê-la é ir contra a ideia de que a concessão da anistia ampla pressupunha a impossibilidade de revanchismo. Este mesmo princípio é que permitiu que um dos políticos aliados aos militares, José Sarney, viesse a ser peça-chave na transição. Ele tem sido, não por acaso, fiel parceiro do PT.
A Lei, portanto, se assenta sobre uma construção política tal que revê-la para punir agentes públicos por crimes cometidos até 79 é como se fosse reaberto o processo de transição pacífica para a democratização. Como isto é impossível, a revisão se choca com a própria evolução da História. Não bastasse o movimento ir contra uma decisão do Supremo, acabar com a lei é convocar fantasmas de um passado já longínquo.
21 de junho de 2014
Editorial O Globo
A chegada ao poder de partido mais à esquerda, o PT, no qual há vítimas da ditadura militar, colocou na pauta de discussões em Brasília mudanças na anistia de 1979. Antes, na Era FH, do PSDB, outro partido de esquerda, porém mais ao centro no mapa das ideologias, também perseguidos pelos militares assumiram cargos no Executivo e se elegeram para o Congresso, sem, no entanto, que os termos da anistia fossem contestados. Na gestão FH instituiu-se uma Comissão da Verdade e se aprovou legislação para se indenizarem vítimas da ditadura.
Em 2010, ação movida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para alterar a lei e permitir o indiciamento de agentes públicos foi rejeitada pelo Supremo, por sete votos a dois. Confirmou-se, portanto, a amplitude do perdão concedido pelo Congresso, por proposta do último dos governos militares, do presidente-general João Baptista Figueiredo.
Vários argumentos embasaram o veredicto. Eles continuam válidos. Um deles: não bastasse a anistia ter sido aprovada livremente pelo Congresso, ela emergiu de uma negociação da oposição com os generais. Mais do que isso, uma negociação incluída como parte de um processo mais amplo de transição da ditadura para o retorno à democracia, sem violência e maiores transtornos institucionais.
A Lei de Anistia, portanto, não pode ser vista de forma isolada, fora do contexto de uma redemocratização sem turbulências, sem vencidos e vencedores. Embora ficasse evidente a derrota do projeto militar de poder, nutrido a partir de uma geração de tenentes na década de 20, quando patrocinaram rebeliões contra a República Velha.
Outro aspecto é que a Anistia, ao contrário do que aconteceu em alguns países da América Latina, não beneficiou apenas um lado. Ela foi recíproca. Revê-la é ir contra a ideia de que a concessão da anistia ampla pressupunha a impossibilidade de revanchismo. Este mesmo princípio é que permitiu que um dos políticos aliados aos militares, José Sarney, viesse a ser peça-chave na transição. Ele tem sido, não por acaso, fiel parceiro do PT.
A Lei, portanto, se assenta sobre uma construção política tal que revê-la para punir agentes públicos por crimes cometidos até 79 é como se fosse reaberto o processo de transição pacífica para a democratização. Como isto é impossível, a revisão se choca com a própria evolução da História. Não bastasse o movimento ir contra uma decisão do Supremo, acabar com a lei é convocar fantasmas de um passado já longínquo.
21 de junho de 2014
Editorial O Globo
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