Quase todos são contra a ‘gastança’, mas muita gente acha natural se aposentar perto dos 50, ter amigo que ‘arrumou um cargo no governo’ ou ter um primo ‘encostado no INSS’
Há algo de errado com o Brasil. Eduardo Giannetti, que há alguns anos me honrou escrevendo a “orelha” de um dos meus livros, utilizou nela a expressão “Leviatã anêmico” para se referir ao Estado brasileiro. Trata-se de uma síntese feliz da situação do Governo em nosso país. Não o Governo FH, Lula ou Dilma Rousseff, e sim o Governo como instituição. De fato, ainda no ensino médio, o aluno e futuro cidadão aprende as funções de cada um dos Três Poderes, seguindo as boas normas do que recomenda a teoria, mas quando já adulto observa e avalia o mundo em que ele se encontra imerso, descobre que na vida real, no Brasil, o Executivo não executa, o Legislativo não legisla e a Justiça não julga. A falta de funcionalidade do Estado brasileiro pode ser sintetizada nessa única frase. E, não obstante, o contribuinte tem gastado cada vez mais recursos para sustentar esse Estado.
Vamos aos números: em 1991 — primeiro ano para o qual se dispõe de estatísticas fiscais arrumadas com os conceitos e a desagregação atuais — o governo federal gastava 13,7 % do PIB com as chamadas “despesas primárias”, ou seja, o gasto público exceto os juros da dívida. Em 2013, isso chegou a 22,8 % do PIB. Em 22 anos, tivemos uma expansão da despesa, como proporção do PIB, de nada menos que 9,1 % do PIB — ou 0,41 % do PIB a mais a cada ano. O Brasil está na pole position do expansionismo fiscal mundial. Ao mesmo tempo, permitimos aberrações como as seguintes, apenas para citar três das mais flagrantes dentre elas:
- Em 2003, a taxa de desemprego foi de 12,3 % e, em 2013, de 5,4 %. Não obstante isso, a despesa real com seguro-desemprego no Brasil teve um aumento real no período de inacreditáveis 158%. Que o governo se vanglorie de, supostamente, melhorar a gestão pública, quando esse disparate continua acontecendo, seria motivo de riso — se não fosse razão, como diria Nelson Rodrigues, para “chorar lágrimas de esguicho” pelo desperdício de recursos públicos. E não se faz nada;
- A despesa com benefícios previdenciários e assistenciais de um salário-mínimo, entre 1997 e 2013, passou de 1,4 % para 3,7 % do PIB, supostamente para combater a miséria, quando pelos dados da PNAD, de cada cem aposentados e pensionistas que recebem exatamente um salário-mínimo, apenas 1 (leu corretamente, leitor, eu não disse 10: disse 1) encontra-se entre os 10% mais pobres da população, onde se concentra a extrema pobreza. O aumento dos benefícios de um salário-mínimo é, de longe, o programa de combate à pobreza mais ineficiente do mundo. E ninguém fala nada;
- No Brasil, as mulheres se aposentam pelo INSS por tempo de contribuição, em média, com 52 anos, algo que deixa atônito qualquer observador externo que se debruce sobre nossa Previdência Social, benefício esse que em 1994 — ano do Plano Real — afetava 300 mil pessoas e que hoje é usufruído por mais de 1,5 milhão de pessoas. E la nave va, no país do carnaval.
O governo se mete em tudo e, como raras vezes atua bem, justifica a frase do sempre sarcástico Delfim Netto, que ferinamente costuma lembrar que, “se o governo compra um circo, o anão começa a crescer”. O fato é que o governo só faz aumentar e, entretanto, qualquer que seja a função pública ligada a algum serviço que cabe ao Estado prestar, as razões para insatisfação do cidadão comum são óbvias: a nossa educação é precária; a saúde é sempre “top” em todas as avaliações da opinião pública acerca das queixas da população; o cidadão se sente inseguro ao sair na rua etc.
É preciso repensar o Estado brasileiro. Um dos problemas é que a demanda por mais gasto público é parte da cultura nacional. Quase todos os brasileiros são contra a “gastança”, mas muita gente acha natural se aposentar perto dos 50 anos, ter um amigo que “arrumou um cargo no Governo” ou ter um primo “encostado no INSS”. É necessário que esse tema entre na agenda nacional. O ponto de partida é criticar esse processo. Para isso, nossa oposição faria bem em lembrar a velha frase do ex-ministro Gustavo Capanema, de que “pouco importa que a oposição não tenha fundamento ou seja injusta; importante mesmo é que ela ponha o Governo em apuros”. Está na hora de alguém questionar seriamente esse processo contínuo de aumento do gasto público.
15 de abril de 2014
Fábio Giambiagi, O Globo
Há algo de errado com o Brasil. Eduardo Giannetti, que há alguns anos me honrou escrevendo a “orelha” de um dos meus livros, utilizou nela a expressão “Leviatã anêmico” para se referir ao Estado brasileiro. Trata-se de uma síntese feliz da situação do Governo em nosso país. Não o Governo FH, Lula ou Dilma Rousseff, e sim o Governo como instituição. De fato, ainda no ensino médio, o aluno e futuro cidadão aprende as funções de cada um dos Três Poderes, seguindo as boas normas do que recomenda a teoria, mas quando já adulto observa e avalia o mundo em que ele se encontra imerso, descobre que na vida real, no Brasil, o Executivo não executa, o Legislativo não legisla e a Justiça não julga. A falta de funcionalidade do Estado brasileiro pode ser sintetizada nessa única frase. E, não obstante, o contribuinte tem gastado cada vez mais recursos para sustentar esse Estado.
Vamos aos números: em 1991 — primeiro ano para o qual se dispõe de estatísticas fiscais arrumadas com os conceitos e a desagregação atuais — o governo federal gastava 13,7 % do PIB com as chamadas “despesas primárias”, ou seja, o gasto público exceto os juros da dívida. Em 2013, isso chegou a 22,8 % do PIB. Em 22 anos, tivemos uma expansão da despesa, como proporção do PIB, de nada menos que 9,1 % do PIB — ou 0,41 % do PIB a mais a cada ano. O Brasil está na pole position do expansionismo fiscal mundial. Ao mesmo tempo, permitimos aberrações como as seguintes, apenas para citar três das mais flagrantes dentre elas:
- Em 2003, a taxa de desemprego foi de 12,3 % e, em 2013, de 5,4 %. Não obstante isso, a despesa real com seguro-desemprego no Brasil teve um aumento real no período de inacreditáveis 158%. Que o governo se vanglorie de, supostamente, melhorar a gestão pública, quando esse disparate continua acontecendo, seria motivo de riso — se não fosse razão, como diria Nelson Rodrigues, para “chorar lágrimas de esguicho” pelo desperdício de recursos públicos. E não se faz nada;
- A despesa com benefícios previdenciários e assistenciais de um salário-mínimo, entre 1997 e 2013, passou de 1,4 % para 3,7 % do PIB, supostamente para combater a miséria, quando pelos dados da PNAD, de cada cem aposentados e pensionistas que recebem exatamente um salário-mínimo, apenas 1 (leu corretamente, leitor, eu não disse 10: disse 1) encontra-se entre os 10% mais pobres da população, onde se concentra a extrema pobreza. O aumento dos benefícios de um salário-mínimo é, de longe, o programa de combate à pobreza mais ineficiente do mundo. E ninguém fala nada;
- No Brasil, as mulheres se aposentam pelo INSS por tempo de contribuição, em média, com 52 anos, algo que deixa atônito qualquer observador externo que se debruce sobre nossa Previdência Social, benefício esse que em 1994 — ano do Plano Real — afetava 300 mil pessoas e que hoje é usufruído por mais de 1,5 milhão de pessoas. E la nave va, no país do carnaval.
O governo se mete em tudo e, como raras vezes atua bem, justifica a frase do sempre sarcástico Delfim Netto, que ferinamente costuma lembrar que, “se o governo compra um circo, o anão começa a crescer”. O fato é que o governo só faz aumentar e, entretanto, qualquer que seja a função pública ligada a algum serviço que cabe ao Estado prestar, as razões para insatisfação do cidadão comum são óbvias: a nossa educação é precária; a saúde é sempre “top” em todas as avaliações da opinião pública acerca das queixas da população; o cidadão se sente inseguro ao sair na rua etc.
É preciso repensar o Estado brasileiro. Um dos problemas é que a demanda por mais gasto público é parte da cultura nacional. Quase todos os brasileiros são contra a “gastança”, mas muita gente acha natural se aposentar perto dos 50 anos, ter um amigo que “arrumou um cargo no Governo” ou ter um primo “encostado no INSS”. É necessário que esse tema entre na agenda nacional. O ponto de partida é criticar esse processo. Para isso, nossa oposição faria bem em lembrar a velha frase do ex-ministro Gustavo Capanema, de que “pouco importa que a oposição não tenha fundamento ou seja injusta; importante mesmo é que ela ponha o Governo em apuros”. Está na hora de alguém questionar seriamente esse processo contínuo de aumento do gasto público.
15 de abril de 2014
Fábio Giambiagi, O Globo
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