As anexações do Uruguai, no começo do século 19, e a do Acre, 100 anos depois, inspiram reflexões talvez pertinentes à anacrônica incorporação da Crimeia pela Rússia. Os paralelos históricos mancam sempre de uma ou duas pernas, mas algo se pode extrair de analogias, ainda que imperfeitas.
A exploração oportunista de ocasião favorável é idêntica no caso uruguaio e da Crimeia. A diferença, essencial, residiu na pretensão luso-brasileira de absorver o povo da Cisplatina, de língua e cultura distintas. O resultado foi a desastrosa guerra contra a Argentina e a independência do Uruguai.
O Brasil abandonou de vez o objetivo português de expansão até o Rio da Prata. Contudo, o envolvimento nas querelas uruguaias acabaria por gerar as intervenções armadas que culminaram com a de 1864, causa imediata da Guerra do Paraguai, a mais mortífera da história sul-americana. O preço em sangue e dinheiro, ressentimento e atraso econômico se mostrou absolutamente desproporcional aos objetivos originais.
O Acre se presta melhor à comparação. Embora pertencente à Bolívia, sua população era quase exclusivamente brasileira, mais até que a russa, que partilha a Crimeia com minorias significativas de outras nacionalidades. Dizia-se no passado que ele havia sido o nosso Texas: rebelião vitoriosa contra o governo nominalmente soberano e, em seguida, anexação ao vizinho de onde provinha a população revoltada.
Nesse ponto termina o paralelo. No Texas, a anexação provocou a guerra mexicano-americana (1846-1848), com perda de mais de um terço do território do México para os EUA. No Acre, sem guerra, negociou-se até conseguir, pelo Tratado de Petrópolis (1903), a transferência do território ao Brasil mediante compensações financeiras (o equivalente hoje a cerca de US$ 250 milhões), concessões territoriais menores e compromisso de construção da Ferrovia Madeira-Mamoré e outras facilidades.
Ao rejeitar como “conquista disfarçada” a anexação pura e simples, o barão do Rio Branco considerou-a como “procedimento em contraste com a lealdade que o governo brasileiro nunca deixou de guardar (...) com as outras nações (...) aventura perigosa, sem precedentes na nossa história diplomática”.
Preferia “transigir que ir à guerra”, pois “o recurso à guerra é sempre desgraçado”. Acreditava que “as combinações em que nenhuma das partes perde e, mais ainda, aquelas em que todas ganham serão sempre as melhores”.
É óbvio que a Bolívia só cedeu devido à vitoriosa rebelião dos habitantes e ao uso pelo Brasil de meios legítimos de poder, isto é, sem imposição da guerra e mediante compensações relativas. Pode parecer pouco, mas em diplomacia essa diferença com a Crimeia é incomensurável.
Do Uruguai ao Acre, o Brasil aprendeu e evoluiu. A Rússia continua refém da tradição imperial que presidiu à conquista de seu território. Dentro dele há mais de cem povos diferentes, alguns em franca revolta, como os do Cáucaso, aos quais não pode oferecer a autodeterminação que exigiu para a Crimeia. Ocupamos nos Brics as duas primeiras letras; fora disso, nossas tradições diplomáticas são antípodas.
15 de abril de 2014
Rubens Ricupero, Gazeta do Povo
A exploração oportunista de ocasião favorável é idêntica no caso uruguaio e da Crimeia. A diferença, essencial, residiu na pretensão luso-brasileira de absorver o povo da Cisplatina, de língua e cultura distintas. O resultado foi a desastrosa guerra contra a Argentina e a independência do Uruguai.
O Brasil abandonou de vez o objetivo português de expansão até o Rio da Prata. Contudo, o envolvimento nas querelas uruguaias acabaria por gerar as intervenções armadas que culminaram com a de 1864, causa imediata da Guerra do Paraguai, a mais mortífera da história sul-americana. O preço em sangue e dinheiro, ressentimento e atraso econômico se mostrou absolutamente desproporcional aos objetivos originais.
O Acre se presta melhor à comparação. Embora pertencente à Bolívia, sua população era quase exclusivamente brasileira, mais até que a russa, que partilha a Crimeia com minorias significativas de outras nacionalidades. Dizia-se no passado que ele havia sido o nosso Texas: rebelião vitoriosa contra o governo nominalmente soberano e, em seguida, anexação ao vizinho de onde provinha a população revoltada.
Nesse ponto termina o paralelo. No Texas, a anexação provocou a guerra mexicano-americana (1846-1848), com perda de mais de um terço do território do México para os EUA. No Acre, sem guerra, negociou-se até conseguir, pelo Tratado de Petrópolis (1903), a transferência do território ao Brasil mediante compensações financeiras (o equivalente hoje a cerca de US$ 250 milhões), concessões territoriais menores e compromisso de construção da Ferrovia Madeira-Mamoré e outras facilidades.
Ao rejeitar como “conquista disfarçada” a anexação pura e simples, o barão do Rio Branco considerou-a como “procedimento em contraste com a lealdade que o governo brasileiro nunca deixou de guardar (...) com as outras nações (...) aventura perigosa, sem precedentes na nossa história diplomática”.
Preferia “transigir que ir à guerra”, pois “o recurso à guerra é sempre desgraçado”. Acreditava que “as combinações em que nenhuma das partes perde e, mais ainda, aquelas em que todas ganham serão sempre as melhores”.
É óbvio que a Bolívia só cedeu devido à vitoriosa rebelião dos habitantes e ao uso pelo Brasil de meios legítimos de poder, isto é, sem imposição da guerra e mediante compensações relativas. Pode parecer pouco, mas em diplomacia essa diferença com a Crimeia é incomensurável.
Do Uruguai ao Acre, o Brasil aprendeu e evoluiu. A Rússia continua refém da tradição imperial que presidiu à conquista de seu território. Dentro dele há mais de cem povos diferentes, alguns em franca revolta, como os do Cáucaso, aos quais não pode oferecer a autodeterminação que exigiu para a Crimeia. Ocupamos nos Brics as duas primeiras letras; fora disso, nossas tradições diplomáticas são antípodas.
15 de abril de 2014
Rubens Ricupero, Gazeta do Povo
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