"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 15 de abril de 2014

DESSERVIÇO AO PAÍS

Os 50 anos do movimento de 31 de março de 1964, marco de um período de anomalias institucionais impostas ao país pela ditadura militar então instaurada, têm dado margem a uma profusão de iniciativas para lembrar a data e episódios decorridos ao longo daquele momento político de exceção. Do ponto de vista da História, rememorar fatos pode ser salutar para evitar a repetição de atos que desserviram ao país. Mas é preciso distinguir, nesse olhar para trás, entre o que acrescenta positivamente à memória de uma nação (trazendo para o presente e projetando para o futuro os ensinamentos do passado) e aquilo que, como expressão de um revisionismo em si, está destituído de representatividade. Neste caso, as portas da discussão se abrem para sentimentos menos nobres, como interesses políticos, vendetas etc.

É nesse terreno que vicejam as tentativas de rever, e até mesmo anular, a Lei de Anistia. Instrumento jurídico que resultou de delicada costura política entre os generais e uma oposição fortalecida nas ruas e nas urnas, já nos estertores de um regime que, não obstante, ainda dispunha de considerável poder dissuasório, a anistia de 1979 tem um pressuposto inegociável — o perdão recíproco, tanto a agentes públicos envolvidos em atos reprováveis quanto a militantes de organizações da esquerda armada, num leque que também incluía opositores de todos os matizes ao regime militar. E válido somente para crimes cometidos até à data de promulgação da Lei.

O mais recente ensaio de revisão dos efeitos da lei deu-se semana passada, com a aprovação, na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, de um projeto que propõe tornar nulo o perdão a militares, policiais e civis envolvidos em atos como tortura, morte e desaparecimento de guerrilheiros/terroristas. A julgar pelo fracasso anterior de proposições semelhantes, e pelos lastros políticos e jurídicos que amparam o grande pacto de remissão de 79, é pouco provável que esse seja bem sucedido.

Mas, mesmo como gesto simbólico, com poucas chances de produzir efeitos, iniciativas como essa vão contra um dos mais importantes legados da lei — a pacificação de um país que então procurava caminhos para a normalização democrática sem traumas, objetivo que se completou com a promulgação da Constituição, em 1988.

O Brasil que saiu de um longo período de anormalidade merece hoje que suas forças políticas mirem à frente, no caminho da consolidação do estado democrático.

Ademais, é preciso que seja respeitado tudo aquilo que baliza a Lei de Anistia. Ela resultou de um acordo do qual participou amplamente a oposição. Com todos os seus artigos, está lastreada por decisão soberana do Congresso e por pareceres do Supremo Tribunal Federal. São, todas essas, instâncias que lhe conferem legitimidade política e histórica.
15 de abril de 2014
Editorial O Globo

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