"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 5 de abril de 2014

APENAS UMA PRISIONEIRA

No dia 31 de março a presidente Dilma Rousseff falou, pela primeira vez em público, dos 50 anos do golpe de 1964, ao assinar o contrato pela construção da segunda ponte sobre o rio Guaíba, em Porto Alegre. Citou o presidente "ex-exilado" e o outro que foi "preso várias vezes". Por fim, incluiu-se - "uma mulher que também foi prisioneira".

Entre os três, foi de Dilma que o golpe cobrou o maior pedágio. É a única cujo combate à ditadura foi punido com tortura. E, no entanto, a presidente preferiu se diluir num discurso desprovido de emoção.

Guardou-a para dali a dois dias durante inauguração da reforma do Galeão. A pretexto de homenagear os exilados, citou o 'Samba do Avião', composto por Tom Jobim antes do golpe. Mais uma vez, a guerrilheira que, depois de presa e torturada, engajou-se, no Brasil, pela redemocratização, tirou o foco de si.

Por que Dilma ficou à sombra da efeméride

Uma razão possível é que o pressuposto para a comandante-em-chefe das Forças Armadas falar em tortura é que seus subordinados hierárquicos a reconheçam. Como esse reconhecimento não existe, a menção à tortura levantaria dúvidas sobre a efetividade de seu comando.

Dois anos atrás, na instalação da comissão da verdade, momento em que reuniu todos os seus antecessores e falou mais demoradamente sobre a ditadura, Dilma também evitou a tortura.

Nem sempre foi assim. Em 2001, quando era secretária de Energia no governo do Rio Grande do Sul, Dilma deu um depoimento ao Conselho Estadual de Direitos Humanos de Minas Gerais, criado para indenizar os políticos torturados no Estado. E assim resumiu a experiência: "As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim".

Desde a posse, uma das raras menções ao que passou no pau-de-arara veio no fim do ano passado quando, ao instituir o Sistema Nacional de Combate a Tortura, disse que, por tê-la experimentado, sabia o que representava em "desrespeito à mais elementar condição de humanidade de uma pessoa".

As razões para que uma candidata à reeleição tenha decidido permanecer à sombra no momento em que teria mais a falar do que qualquer de seus oponentes viriam à tona naquele dia da efeméride. As Forças Armadas aceitaram a investigação de suas instalações que serviram à tortura, no que Raymundo Costa, do Valor, apurou ser o primeiro passo para o perdão militar pelos crimes da ditadura.

Está claro que o aceite é uma tentativa de barrar as pressões pela revisão da Lei da Anistia, a começar por correligionários da presidente. Muitos deles manifestaram-se nas redes sociais contrariamente ao discurso em que Dilma diz reconhecer e valorizar os pactos que levaram à redemocratização.

Quando a pressão pela revogação da Lei da Anistia mover Congresso e Supremo Tribunal Federal é possível que Dilma não seja mais presidente e restem poucos a serem punidos.

Até lá, o título de comandante-em-chefe das Forças Armadas talvez possa ser honrado com a mudança do currículo das escolas militares que ainda exaltam o golpe.

O que parece ultrapassar o limite do mandato presidencial e de suas relações com as Forças Armadas é o avanço pactuado de que reclama uma fatia dos petistas.

Na maioria das vezes em que a presidente tentou avançar além do pactuado, foi obrigada a recuar. Vide a política econômica.

Os recuos e pactos a que se submete a ocupante do terceiro andar do Palácio do Planalto talvez expliquem por que desde que se tornou candidata, presidente e novamente candidata, a presidente nunca mais se sentiu tão à vontade com um microfone quanto naquela tarde de 2008 quando disse ao senador Agripino Maia (DEM-RN) que se orgulhava de ter mentido sob tortura.

Golpismo petista

O 'Volta, Lula' é fruto da trinca formada por candidatos petistas, financiadores e marquetagem. Representantes das três categorias confirmam que, a seis meses da eleição, o dinheiro que já deveria estar rolando é represado como forma de pressão para que o ex-presidente desaloje sua sucessora e assuma a candidatura.

Nos porões deste golpe plantam-se boatos sobre a saúde da presidente como saída para a incômoda pergunta que recairia sobre o ex-presidente. Por que votar em quem não soube apresentar um sucessor ao eleitor? A resposta é que Dilma desistiria porque não pode se recandidatar e não porque não queira.

Um ilustre representante dessa trinca foi apresentado aos leitores pela repórter Andréia Sadi, da "Folha de S.Paulo". É o deputado André Vargas (PT-PR), aquele que pediu um helicóptero emprestado do doleiro Alberto Youssef, a maior ponte já construída entre o tesouro da era tucana (Banestado) e aquele amealhado pelo petismo (Petrobras). O constrangedor discurso em que reconheceu o erro do empréstimo foi um golpe dentro do golpe.

Não foi o único. A pauta da Câmara destravada depois de mais de quatro meses foi uma demonstração de que a presidente começou a se acertar com o PMDB, principal entrave aos planos do PT de ampliar seus polos regionais de poder. Nem a ameaça de CPI tem sido um impedimento às votações.

Um sinal desse entendimento é a reaproximação entre Dilma e o agora ex-governador do Rio, Sérgio Cabral, eterno sócio do líder do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha.

Com a renúncia dos governantes que pretendem disputar cargos eletivos, começa a clarear o mapa das candidaturas estaduais. Nele se verão candidatos petistas muito mais dependentes da presidente do que o inverso. Por mais que sua popularidade ainda claudique, não há vantagem para Dilma em se amarrar a candidatos petistas desconhecidos em seus Estados como Alexandre Padilha, em São Paulo; Rui Costa, na Bahia; ou mesmo nomes já testados, como Lindbergh Farias. Nesses e em muitos outros Estados, os petistas prefeririam ser puxados pelo boeing lulista mas terminarão a reboque de uma presidente que multiplicará palanques estaduais em busca de votos. É uma rota de inevitável colisão com expoentes do golpismo petista.

 
05 de abril de 2014
Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

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