Atrás da insurreição de Kiev, o presidente enxergou os fantasmas superpostos do antigo reino da Lituânia
Depois de conversar com Putin, Angela Merkel disse a Obama que o presidente russo "está em outro mundo". No mundo de Putin, história é igual a geopolítica. Desde a dissolução da URSS, "a maior catástrofe do século 20", o Ocidente entrega-se noite e dia a conspirar contra a Rússia, imagina o chefe do Kremlin. A Revolução Laranja, na Ucrânia, em 2004, o desafio da Geórgia a Moscou, em 2008, e a insurreição de Kiev seriam componentes de uma persistente estratégia antirrussa. Na sua visão, a operação militar na Crimeia representa um gesto defensivo, pois a ruptura da Ucrânia com Moscou equivaleria a uma nova catástrofe: a destruição da Grande Rússia. De certo modo, Putin tem razão --mas suas ações precipitam o desenlace que ele quer evitar.
No mundo de Putin, a mão dos governantes faz (e desfaz) a história. Atrás da insurreição de Kiev, o presidente russo enxergou os fantasmas superpostos do antigo reino da Lituânia e das forças invasoras da Alemanha nazista. No mundo real, a história não é uma conspiração. A revolução ucraniana não obedeceu, obviamente, a um comando ocidental. Hoje, diante do punho cerrado de Moscou, borram-se as fronteiras entre os ucranianos de língua ucraniana e os de língua russa. Mesmo no leste russófono da Ucrânia, as manifestações pró-Rússia expressam aspirações minoritárias. "Você descobre que o mundo enlouqueceu quando ouve a Alemanha dizer à Rússia para não invadir a Ucrânia", exclamou um jovem na Universidade de Kharkov, sob aplausos e gargalhadas. Inadvertidamente, Putin empurra a Ucrânia na direção do Ocidente.
No mundo real, Putin tinha a chance de conservar alguma influência sobre a Ucrânia se colaborasse com a União Europeia (UE) para estabilizar o país. A UE não almejava mais que um tratado frouxo com a Ucrânia e a Alemanha resiste à pressão americana por uma reação mais forte à agressão russa. Mas, ameaçando sufocar a economia ucraniana, Moscou dinamita as pontes. Bruxelas, Washington e o FMI articulam um pacote financeiro de resgate da Ucrânia, enquanto a Otan ensaia uma cooperação com Kiev. Putin está convencendo os ucranianos de que sua almejada soberania só pode ser sustentada pelo alicerce das instituições ocidentais.
O mundo real e o mundo de Putin coincidem apenas na Crimeia. A península, que sedia a frota russa do mar Negro e é habitada por uma maioria de russos étnicos, não faz parte da Ucrânia histórica. Nikita Kruschev presenteou a Ucrânia com a Crimeia, em 1954, para soldar definitivamente o destino ucraniano ao da Rússia. Pela força ou pela persuasão, Moscou pode separar a Crimeia da Ucrânia, como fez com as regiões georgianas da Ossétia do Sul e da Abkhazia. A ironia é que as ações de Putin aceleram a implosão do mundo de Putin: sem a âncora da Crimeia, a Ucrânia derivaria mais rapidamente rumo à Europa.
O mundo de Putin é um edifício que desmorona em câmera lenta. O nome do edifício é Grande Rússia: o império dos czares que, graças à Revolução de 1917, escapou da implosão, convertendo-se no império vermelho dos czares soviéticos. Putin tem razão no diagnóstico de que, sem a Ucrânia, a Grande Rússia se reduz a uma imagem espectral. Mas aquilo que aparece como uma catástrofe existencial para o último czar descortina oportunidades históricas para a Rússia.
O mundo real não cabe no mundo de Putin. O triunfo da revolução ucraniana salvaria a Rússia do fardo imperial. Sem esse peso esmagador, a Rússia se inclinaria na direção da Europa, seguindo a trilha da Ucrânia. Mais que isso, uma Rússia pós-imperial teria que redefinir sua própria identidade, tornando-se um Estado-Nação. Impérios não precisam confrontar o enigma da democracia, mas o Estado-Nação não tem como circundá-lo impunemente. Os czares diziam que a Rússia nasceu em Kiev. Hoje, Kiev oferece à Rússia a chance de um novo começo
Depois de conversar com Putin, Angela Merkel disse a Obama que o presidente russo "está em outro mundo". No mundo de Putin, história é igual a geopolítica. Desde a dissolução da URSS, "a maior catástrofe do século 20", o Ocidente entrega-se noite e dia a conspirar contra a Rússia, imagina o chefe do Kremlin. A Revolução Laranja, na Ucrânia, em 2004, o desafio da Geórgia a Moscou, em 2008, e a insurreição de Kiev seriam componentes de uma persistente estratégia antirrussa. Na sua visão, a operação militar na Crimeia representa um gesto defensivo, pois a ruptura da Ucrânia com Moscou equivaleria a uma nova catástrofe: a destruição da Grande Rússia. De certo modo, Putin tem razão --mas suas ações precipitam o desenlace que ele quer evitar.
No mundo de Putin, a mão dos governantes faz (e desfaz) a história. Atrás da insurreição de Kiev, o presidente russo enxergou os fantasmas superpostos do antigo reino da Lituânia e das forças invasoras da Alemanha nazista. No mundo real, a história não é uma conspiração. A revolução ucraniana não obedeceu, obviamente, a um comando ocidental. Hoje, diante do punho cerrado de Moscou, borram-se as fronteiras entre os ucranianos de língua ucraniana e os de língua russa. Mesmo no leste russófono da Ucrânia, as manifestações pró-Rússia expressam aspirações minoritárias. "Você descobre que o mundo enlouqueceu quando ouve a Alemanha dizer à Rússia para não invadir a Ucrânia", exclamou um jovem na Universidade de Kharkov, sob aplausos e gargalhadas. Inadvertidamente, Putin empurra a Ucrânia na direção do Ocidente.
No mundo real, Putin tinha a chance de conservar alguma influência sobre a Ucrânia se colaborasse com a União Europeia (UE) para estabilizar o país. A UE não almejava mais que um tratado frouxo com a Ucrânia e a Alemanha resiste à pressão americana por uma reação mais forte à agressão russa. Mas, ameaçando sufocar a economia ucraniana, Moscou dinamita as pontes. Bruxelas, Washington e o FMI articulam um pacote financeiro de resgate da Ucrânia, enquanto a Otan ensaia uma cooperação com Kiev. Putin está convencendo os ucranianos de que sua almejada soberania só pode ser sustentada pelo alicerce das instituições ocidentais.
O mundo real e o mundo de Putin coincidem apenas na Crimeia. A península, que sedia a frota russa do mar Negro e é habitada por uma maioria de russos étnicos, não faz parte da Ucrânia histórica. Nikita Kruschev presenteou a Ucrânia com a Crimeia, em 1954, para soldar definitivamente o destino ucraniano ao da Rússia. Pela força ou pela persuasão, Moscou pode separar a Crimeia da Ucrânia, como fez com as regiões georgianas da Ossétia do Sul e da Abkhazia. A ironia é que as ações de Putin aceleram a implosão do mundo de Putin: sem a âncora da Crimeia, a Ucrânia derivaria mais rapidamente rumo à Europa.
O mundo de Putin é um edifício que desmorona em câmera lenta. O nome do edifício é Grande Rússia: o império dos czares que, graças à Revolução de 1917, escapou da implosão, convertendo-se no império vermelho dos czares soviéticos. Putin tem razão no diagnóstico de que, sem a Ucrânia, a Grande Rússia se reduz a uma imagem espectral. Mas aquilo que aparece como uma catástrofe existencial para o último czar descortina oportunidades históricas para a Rússia.
O mundo real não cabe no mundo de Putin. O triunfo da revolução ucraniana salvaria a Rússia do fardo imperial. Sem esse peso esmagador, a Rússia se inclinaria na direção da Europa, seguindo a trilha da Ucrânia. Mais que isso, uma Rússia pós-imperial teria que redefinir sua própria identidade, tornando-se um Estado-Nação. Impérios não precisam confrontar o enigma da democracia, mas o Estado-Nação não tem como circundá-lo impunemente. Os czares diziam que a Rússia nasceu em Kiev. Hoje, Kiev oferece à Rússia a chance de um novo começo
15 de março de 2014
Demétrio Magnoli, Folha de SP
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