Um leitor pergunta porque gosto de escrever sobre mim mesmo. Não é verdade. Prefiro escrever sobre uma escrivaninha, que é bem mais cômodo. Pergunta-me também como desenvolvo estas crônicas.
Honestamente, não sei. Me dou por feliz, quando, ao sentar na mesa, já tenho o tema escolhido. Isto é, metade da crônica está feita. Uma vez sentado, não tenho idéia muito precisa do ponto de chegada. Muitas vezes penso ir a Paris e acabo chegando a Ponche Verde. Às vezes me preocupa uma reflexão sobre a História e acabo entrando num bar. E ao sair do bar o rumo é sempre incerto, como o é o desfecho da crônica. Como a desenvolvo?
Prefiro falar de perdizes.
O leitor já ouviu falar de mundéus? Se não nasceu no campo, mais precisamente na Campanha, certamente desconhece o que seja mundéu. É uma armadilha para perdizes. Sobre uma trilha de ovelhas faz-se uma pequena muralha de pedras, esterco, mio-mio ou chirca, de um palmo de altura e uns dois braços de homem de comprimento. Nas pontas da cerca, dois braços laterais saem um para cada lado, formando assim uma espécie de T, cortado por cima e por baixo. No centro do mundéu, por onde passa a trilha, há uma porteirinha.
Da porteira pende uma trança de rabo de cavalo, trançada de três ou torcida, mas sempre em forma de forca. A torcida é melhor, se fecha mais fácil. O mesmo não diria a perdiz, mas quem ocupa este espaço é o cronista e não ela. Só posso falar de meus pontos de vista.
Primeiro é necessário levantar a perdiz. A melhor hora é o nascer do sol, quando seus raios tornam brilhantes as babas-de-boi que se estendem de cardo a cardo. Não pode ser dia de vento. Nesses dias, a perdiz se amoita no primeiro alho-bravo que encontra e não quer saber de passeios, já se levanta voando. Outra hora boa é depois de um temporal, quando um cheiro de terra se ergue da terra e fica para sempre nas narinas de quem na infância com esse cheiro se embriagou. Outro cheiro que também marca para sempre é o cheiro de sanga ao entardecer. Mas falava de perdizes.
Para levantar a perdiz, basta passear pelo campo, de preferência a pé, assobiando em seu ritmo assustadiço. Ela ouve. Se está aninhada, levanta. Espicha o pescoço e responde. Está perdida.
Cabe agora ao caçador mangueá-la para o mundéu, o que exige grande conhecimento da psicologia das perdizes. As perdizes são desconfiadas por natureza. Para ganhar-lhes a confiança, o assobiador tem de ser melífluo, insinuante. Quando a perdiz assobia, o assobiador cala. Quando ela cala, eu respondo. Se ela está à direita do mundéu, vou caminhando de longe, para a esquerda. Como quem não quer nada, sempre assobiando, como se o mundéu nem existisse.
Um bom expediente é dar as costas para a perdiz, de mãos no bolso. A perdiz vê o assobiador de costas para ela e fica até despeitada. Ele não quer nada comigo, me deu as costas, pensa a perdiz. São ingênuas, as perdizes.
Se ela vai para a esquerda, sigo assobiando pela direita. A perdiz se desespera. Ele nem me quer. Eu assobio para um lado, ele assobia para o outro. E aí se perde a perdiz, pois o assobiador a ama e o amor é guerra. A perdiz entra na trilha. Logo adiante, está o mundéu. E a trança. Torcida.
Uma vez na trilha, mais amorosamente assobia o assobiador. Com tanto amor que a perdiz chega a assustar-se. Assobia agora nervosa, qual virgem se abrindo ao amado. Mulheres e perdizes em muito se parecem.
Entrou nos braços do mundéu. Só há uma saída, a trança, branca e redonda. Próximo à forca, o assobiador sempre deixa alguns grãos de trigo ou milho, tanto que ama a perdiz. Gorda é a laçada da trança. Magro é o pescoço da perdiz.
O assobiador abre os braços e grita, a perdiz voa e se enforca. Salvo engano, escrevi uma crônica. Ou algo parecido.
15 de março de 2014
janer cristaldo
Honestamente, não sei. Me dou por feliz, quando, ao sentar na mesa, já tenho o tema escolhido. Isto é, metade da crônica está feita. Uma vez sentado, não tenho idéia muito precisa do ponto de chegada. Muitas vezes penso ir a Paris e acabo chegando a Ponche Verde. Às vezes me preocupa uma reflexão sobre a História e acabo entrando num bar. E ao sair do bar o rumo é sempre incerto, como o é o desfecho da crônica. Como a desenvolvo?
Prefiro falar de perdizes.
O leitor já ouviu falar de mundéus? Se não nasceu no campo, mais precisamente na Campanha, certamente desconhece o que seja mundéu. É uma armadilha para perdizes. Sobre uma trilha de ovelhas faz-se uma pequena muralha de pedras, esterco, mio-mio ou chirca, de um palmo de altura e uns dois braços de homem de comprimento. Nas pontas da cerca, dois braços laterais saem um para cada lado, formando assim uma espécie de T, cortado por cima e por baixo. No centro do mundéu, por onde passa a trilha, há uma porteirinha.
Da porteira pende uma trança de rabo de cavalo, trançada de três ou torcida, mas sempre em forma de forca. A torcida é melhor, se fecha mais fácil. O mesmo não diria a perdiz, mas quem ocupa este espaço é o cronista e não ela. Só posso falar de meus pontos de vista.
Primeiro é necessário levantar a perdiz. A melhor hora é o nascer do sol, quando seus raios tornam brilhantes as babas-de-boi que se estendem de cardo a cardo. Não pode ser dia de vento. Nesses dias, a perdiz se amoita no primeiro alho-bravo que encontra e não quer saber de passeios, já se levanta voando. Outra hora boa é depois de um temporal, quando um cheiro de terra se ergue da terra e fica para sempre nas narinas de quem na infância com esse cheiro se embriagou. Outro cheiro que também marca para sempre é o cheiro de sanga ao entardecer. Mas falava de perdizes.
Para levantar a perdiz, basta passear pelo campo, de preferência a pé, assobiando em seu ritmo assustadiço. Ela ouve. Se está aninhada, levanta. Espicha o pescoço e responde. Está perdida.
Cabe agora ao caçador mangueá-la para o mundéu, o que exige grande conhecimento da psicologia das perdizes. As perdizes são desconfiadas por natureza. Para ganhar-lhes a confiança, o assobiador tem de ser melífluo, insinuante. Quando a perdiz assobia, o assobiador cala. Quando ela cala, eu respondo. Se ela está à direita do mundéu, vou caminhando de longe, para a esquerda. Como quem não quer nada, sempre assobiando, como se o mundéu nem existisse.
Um bom expediente é dar as costas para a perdiz, de mãos no bolso. A perdiz vê o assobiador de costas para ela e fica até despeitada. Ele não quer nada comigo, me deu as costas, pensa a perdiz. São ingênuas, as perdizes.
Se ela vai para a esquerda, sigo assobiando pela direita. A perdiz se desespera. Ele nem me quer. Eu assobio para um lado, ele assobia para o outro. E aí se perde a perdiz, pois o assobiador a ama e o amor é guerra. A perdiz entra na trilha. Logo adiante, está o mundéu. E a trança. Torcida.
Uma vez na trilha, mais amorosamente assobia o assobiador. Com tanto amor que a perdiz chega a assustar-se. Assobia agora nervosa, qual virgem se abrindo ao amado. Mulheres e perdizes em muito se parecem.
Entrou nos braços do mundéu. Só há uma saída, a trança, branca e redonda. Próximo à forca, o assobiador sempre deixa alguns grãos de trigo ou milho, tanto que ama a perdiz. Gorda é a laçada da trança. Magro é o pescoço da perdiz.
O assobiador abre os braços e grita, a perdiz voa e se enforca. Salvo engano, escrevi uma crônica. Ou algo parecido.
15 de março de 2014
janer cristaldo
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