"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 15 de março de 2014

"CUIDADO COM OS IDOS DE MARÇO"

Não é sempre assim: mas neste momento, por casualidade ou causalidade, por força do destino, caprichos do calendário ou da história, o passado impõe-se ao presente, o presente aviva o passado e, cúmplices, nos remetem a um antigo futuro, um porvir agourento já passado. Mas não esquecido.

Em 15 de março, há 2.058 anos (44 a.C.), em Roma, o recém-consagrado Júlio César foi assassinado com 23 facadas desfechadas por alguns dos 60 conspiradores que desejavam livrar-se dele. Um deles, seu amigo Brutus, reconhecido pela vítima antes de morrer, mereceu um lamento que William Shakespeare imortalizou na sua tragédia: “Até tu, Brutus?”

A caminho do Senado, um adivinho o advertira para cuidar-se com os idos de março. Confiante na sua força, César não deu atenção. No calendário romano da época, os idos eram os dias 15 de março, maio, julho e outubro (nos demais meses caía no dia 13). Dias fatídicos abominados por bruxas, videntes ou simples mortais sensíveis às tenebrosas armações do fado.

Março de 1964 marca o início de uma escalada que culminou em 1.º de abril, com a quartelada que derrubou o presidente eleito, João Goulart, e instalou uma sangrenta ditadura militar. Marca também as primeiras batidas surdas de uma tragédia – a maior da nossa história – que se abateu sobre o país nos 21 anos seguintes.

Meio século depois, a força da efeméride nos remete a um tétrico tique-taque cronometrado a partir da sexta-feira, 13 de março, quando, diante da estação ferroviária da Central do Brasil, no Centro do Rio, realizou-se a primeira das gigantescas manifestações populares para forçar o Congresso a aprovar as Reformas de Base propostas por Jango. Não houve outros comícios.

Não cabe aqui a rememoração completa da insana escalada; ela ocorre nas estantes das livrarias e sebos, nos especiais da tevê, na tela dos cinemas, nas páginas de jornais e revistas, nas redes sociais, blogs e portais. Armazenada na memória e nas nuvens.

O imperioso reencontro com o tempo, porém, não deve condicionar-se ao calendário. O antes e o depois são convenções, na vida e na história não há interrupções – tudo se relaciona, se encaixa e se conjuga. Fixados apenas em datas e esquecidos dos intervalos e contextos, estaremos aceitando passivamente a fragmentação e a pulverização que hoje dominam a produção e a difusão do conhecimento.

A conjuntura nacional e internacional favorece a exacerbação, as fúrias, os ajustes de contas. Ignorância e a compulsão linchadora não ajudam a esclarecer. Só confundem, ludibriam. A sede por justiça impõe, antes de tudo, um empenho em buscar a exatidão e, no seu decorrer, a aplicação das penas e sanções previstas em lei. O reencontro com a verdade, sereno, inflexível, é, em si, castigo ou prêmio.

É preciso não esquecer que vivemos uma tragédia; a fase seguinte, a catarse, só se consumará quando fúrias e demônios forem expurgados. Os vaticínios dos idos de março de 1964 só conseguiram materializar-se por causa do ódio. Na ocasião, nossos radares espirituais estavam embaçados, incapazes de identificar a catástrofe.

Faltou à maioria aquele sentimento trágico da vida de que falava Unamuno – a percepção do abismo, a aproximação veloz do desenlace e da ruína. Faltou, talvez, ler Shakespeare.

 
15 de março de 2014
Alberto Dines, Gazeta do Povo, PR

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