Se você nunca ouviu falar, certamente não era nascido na época. Um caso fantástico, muito doido, completamente improvável. Tem dezenas de versões e invenções, mas, acredite, aconteceu.
É tão implausível e fascinante que me atraiu para mergulhar fundo nele, com a intenção de, se tudo der certo, levá-lo às telas em breve, num documentário que pretendo dirigir (junto com meus parceiros Micael Langer e Calvito Leal), aproveitando o embalo da experiência bem-sucedida do nosso Simonal — Ninguém Sabe o Duro Que Dei.

O “Verão da Lata” começou num belo dia de setembro de 1987, portanto ainda na primavera, quando as primeiras delas começaram a aparecer. Logo quando foram achadas e abertas, a notícia se espalhou como fumaça. Latas e latas de maconha, centenas, milhares, surgiram do nada numa grande faixa de nosso litoral.
Dezenas de policiais e incontáveis “interessados” se mobilizaram. As latas foram capturadas por repressores e consumidores e todos os lados trataram de espalhar sua fama. A “marofa” que surgiu repentinamente em nossas praias era de um teor bastante alto de THC.
Ou seja, além de aparecer em grande quantidade, devidamente enlatada e do nada, a danada não era só da boa — era da ótima! Quando tudo passou, sobrou a lembrança daquilo que ficou conhecido como o Verão da Lata. Depois que tudo passou, nada tinha passado. As latas tinham virado gíria, música, moda. Tinham virado lenda.

Tudo tem início quando o navio Solana Star, vindo de Singapura ao Brasil com um carregamento de mais de 20 toneladas de maconha acondicionadas em milhares de latas, ao perceber que estava sendo perseguido pela polícia, descarrega sua preciosa carga no mar, abarrotando nosso litoral com a mercadoria (principalmente a costa do Rio de Janeiro, mas atingindo também Espírito Santo, São Paulo e, “dizem”, até Santa Catarina). As latas não paravam de surgir em vários lugares e de produzir manchetes.
No início, a ordem das autoridades era apreender a mercadoria e, depois, remetê-la para a Polícia Federal. Mas a quantidade era tanta que foi dada a ordem de incinerar as latas nos locais onde fossem apreendidas. A polícia apertava o cerco e acendia na hora.

A tripulação do navio conseguiu fugir, sobrando apenas para pagar o pato o cozinheiro do navio, o americano Stephen Skelton. Julgado e condenado a 20 anos por sua participação no “narcotráfico internacional”, o cozinheiro foi conhecer as delícias do Presídio Ary Franco, onde ficou preso por pouco mais de um ano, sendo libertado após um segundo julgamento, que anulou o primeiro.
O Solana Star acabou sendo leiloado e transformado no atuneiro Tunamar. Em sua primeira viagem com a nova identidade e função, naufragou perto de Arraial do Cabo, distrito de Cabo Frio, no litoral fluminense. Maldição de Jah?



Encontramos numa loja de armarinho no subúrbio do Rio de Janeiro o homem responsável pela investigação desse caso. O dono do estabelecimento é Carlos Landim, 63 anos, delegado aposentado da Polícia Federal. No final dos anos 80, ele trabalhava na Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), quando chefiou a operação Cisne Branco e também presidiu o inquérito do caso do Solana Star. Segundo Landim, o alerta às autoridades brasileiras sobre a carga do navio foi feito pelo Drug Enforcement Administration (DEA), agência de combate às drogas dos Estados Unidos. O DEA informou que a embarcação teria apresentado pane mecânica e estaria na altura de Ilha Grande, no Rio de Janeiro. “A Marinha cedeu a fragata Independência para auxiliar nas buscas da Polícia Federal na costa”, lembra Landim.

O delegado e “um grupo de15 a 20 homens” embarcaram na Ilha das Cobras, no interior da Baía de Guanabara, para partir na captura do navio. Depois de 15 ou 20 dias, contando com o apoio até de aeronaves da Marinha, a busca se mostrou infrutífera. “Era como procurar uma agulha no palheiro”, diz Landim. Ao fim desse período, a busca foi interrompida. Até então, não havia nem sombra do Solana Star. “Quando estávamos retornando, porém, fomos informados de que a própria Marinha tinha encontrado o navio atracado na Baía de Guanabara”, lembra o delegado. “Enviamos a nossa equipe para dar apoio e, no primeiro momento, já deu para perceber as marcas de latas no interior do navio.”
A superintendência fez perícias no local e encontrou marcas no chão que eram, exatamente, do mesmo tamanho das latas de maconha apreendidas no litoral. Além disso, medindo o espaço interno da embarcação, os especialistas da polícia também verificaram, por meio da cubagem (relação entre o peso e o espaço que a mercadoria ocupa), que ali caberia a carga despejada no litoral. Então, bateu tudo! “Depois que conseguimos as provas, pedimos a prisão preventiva da tripulação”, diz Landim. “Apenas o cozinheiro Stephen Skelton estava lá e, por isso, acabou sendo o único detido.”

Fiel aos versos da famosa música de Bezerra da Silva (“Não sou agricultor, desconheço a semente”), o cozinheiro sempre sustentou que nada sabia sobre a carga do navio. Para o delegado, a história era uma piada e não convenceu ninguém. “Skelton foi deixado para trás, tomando conta da embarcação, porque dentro da organização ele tinha o papel
menos importante, mas sabia que a mercadoria transportada era maconha”, diz.


Já Wanderley Rebello Filho, advogado de Skelton e autor do livro 1988 — O Verão das Latas de Maconha — O Processo, não achou graça nenhuma nas afirmações do inquérito policial. Falando hoje sobre o caso, sugere que o envolvimento do Solana Star no processo e a condenação de seu cliente foram frutos de um trabalho afobado das autoridades. “O Solana Star estava sendo reparado de suas avarias, já havia bastante tempo, num píer da Praça Mauá, quase em frente, portanto, do prédio da Polícia Federal”, afirma o advogado. “Essa história de tripulação fugitiva não passa de uma fantasia.”

Prova disso, segundo o advogado, é que o cozinheiro ficou um bom tempo hospedado num hotel em Copacabana esperando o conserto do navio. Além disso, no decorrer do processo, ele se apresentou espontaneamente duas vezes, na tentativa de explicar que não era nem fugitivo nem traficante. Por fim, segundo o advogado, não foi encontrada nenhuma prova ligando o Solana Star ao despejo de maconha no litoral. “Depois de inúmeras buscas no navio, a polícia encontrou apenas uma ínfima quantidade de maconha no porão”, diz.



Durante cerca de um ano, Skelton comeu o pão que o diabo desberlotou no nosso “sistema prisional”. Teve de ser isolado num subsolo infecto e semialagado para não ser mais brutalizado pelos outros presos, que achavam que ele era um gringo rico. “Numa das visitas, falou que iria se matar na prisão caso não fosse libertado, tamanho era seu desespero”, diz o advogado.
Ao que parece, sua alegação de inocência tem alguma procedência, já que nossa própria Justiça anulou o primeiro julgamento, devolvendo a liberdade ao cozinheiro que entrara numa fria.

Hoje, morando na Flórida, Skelton ainda se mostra arredio quando o assunto é sua participação no “caso das latas”. Tentamos entrar em contato, mas só conseguimos dele uma resposta por e-mail: “Sim, eu era o cozinheiro. Fui condenado a 20 anos. De tempos em tempos, alguém do Brasil me procura para contar a história das latas. Mas até hoje só se escreveu besteira.
Essa história é como uma cebola, que precisa ser descascada para chegar ao ponto certo. Ninguém que esteja vivo conhece a história real, exceto eu.
Se algum dia alguém fizer um filme, seria um sucesso de público, um blockbuster mundial. Sugiro Edward Norton para interpretar meu papel, ele seria perfeito para ser ‘O Cozinheiro’. Quando alguém estiver disposto a pagar pela verdade e pelo meu tempo gasto em seu belíssimo sistema prisional, contate-me”. Assinado: The Cook.

Não sei se Edward Norton toparia participar de meu documentário, portanto já começo a duvidar se essa história é realmente possível de ser filmada. Mas, peraí, ela ainda não acabou. E o Solana Star ? Como é que ele foi parar no fundo do mar? Quem sabe todos os detalhes é o carioca Paulo Dias, 47 anos, com mais de três décadas de experiência em mergulho e recordista em visitas ao naufrágio do navio. “Depois de ser comprada num leilão, a embarcação virou o Tunamar, um dos atuneiros mais modernos da América Latina”, diz ele.



Para inaugurar o navio, a tripulação e os familiares fizeram um churrasco na própria embarcação e saíram do cais pela primeira vez. Depois da comemoração, o navio foi abastecido com os suprimentos de pesca e, no dia 11 de outubro de 1994, fez a primeira viagem profissional, com destino a Santa Catarina.
Mas a jornada inaugural teve um fim trágico. Os tripulantes foram surpreendidos pelo mau tempo na região de Arraial do Cabo, no litoral fluminense. A chuva intensa e os fortes ventos pioraram as condições do mar e uma onda muito forte alagou a casa de máquinas, fazendo o navio parar. “Nesse momento, outra onda atingiu o navio de través e fez com que ele virasse de ponta-cabeça”, afirma o mergulhador.
Era madrugada e os pescadores estavam descansando. Alguns no dormitório que ficava na parte interna do barco, outros no cômodo onde se guardava o equipamento de pesca, porque era um local mais fresco. “Quem estava nessa sala conseguiu sair antes que o navio afundasse completamente. A turma do dormitório ficou presa, porque a porta foi bloqueada depois que o navio ficou de cabeça para baixo”, diz o mergulhador.

Eram 31 tripulantes. Nove ficaram presos, afundando junto com o navio. Outros dois morreram afogados. Contratado pelos proprietários para periciar o navio e tentar descobrir a causa do naufrágio, Paulo Dias foi o primeiro a chegar nele após ir a pique. “Constatei que houve imprudência por parte dos pescadores”, diz. “Para deixar a parte interna do navio mais fresca, eles mantiveram abertos alguns compartimentos que deveriam estar fechados. Quando as ondas atingiram o barco, ele inundou mais facilmente.” Paulo também já fez algumas tentativas de resgatar os restos mortais dos nove tripulantes que ainda estão no navio. “Infelizmente, muita coisa bloqueia a porta do dormitório. Virou uma tumba mortuária, porque os nove corpos continuam lá”, afirma o mergulhador.

O navio está hoje a uma profundidade de 65 metros, praticamente intacto. Consegue-se entrar na embarcação, mas não se tem acesso a todos os lugares, porque vários corredores estão bloqueados por cabos, redes de pesca e móveis. Por causa da curiosidade gerada pela história, o Solana Star transformou-se num point para mergulhadores experientes que pagam 400 reais para visitar o maior protagonista do verão mais doidão que já existiu. “Desde a época do naufrágio, eu levo alguns grupos de mergulhadores que querem ver de perto como o navio está no fundo do mar”, afirma Paulo. É uma sensação única, mas exige um conhecimento técnico muito grande devido à profundidade elevada. “Uma vez, um homem que encontrou uma lata na praia quis fazer o mergulho, mas ele não tinha habilidades técnicas suficientes. Se a intenção for essa, nem adianta, porque não há nenhuma lata no interior do navio, já que ele passou por várias transformações antes mesmo de naufragar”, diz Paulo.

O mergulhador também suspeita de outra “causa” para o destino do navio: uma antiga maldição dos mares. Muitos pescadores acreditam que não se deve mudar o nome de uma embarcação, porque ela estará fadada ao naufrágio. Nosso navio maldito nasceu em 1973 e foi batizado de Foo Lang III. Em 1980, passou a ser chamado de Geraldtown Endeavour. Em 1986, recebeu o nome de Solana Star, o mais famoso. Em 1990, virou Charles Henri e afundou, em 1994, sob a alcunha de Tunamar. Ou seja, o Solana abusou.

11 de março de 2014

Com reportagem de Klara Duccini