O 'rejuvenescimento' de Kim Novak era mais ofensivo do que qualquer envelhecimento imaginável
Quando as pessoas escutam a palavra "Frankenstein", normalmente atribuem o nome ao monstro do romance de Mary Shelley.
Erro, claro: factualmente falando, "Frankenstein" é o nome do médico que cria o monstro. Mas existe alguma verdade na confusão onomástica. Porque o verdadeiro monstro da história não é a criatura; é o criador.
Na sua arrogância e insanidade, Victor Frankenstein é essa espécie de Prometeu moderno que recusa os limites da vida (e da morte) para transcender a nossa imperfeita condição terrena. Mary Shelley foi implacável na caracterização do médico e na sua ambição sacrílega e destrutiva. Para a infeliz criatura, as palavras da escritora são feitas de pura compaixão.
Lembrei de "Frankenstein" quando assistia à última cerimônia do Oscar. Sobretudo quando saltei do sofá ao ver Kim Novak na tela para entregar uma estatueta qualquer.
Momento nostálgico: Kim Novak é a atriz central de um dos meus filmes da vida -- "Vertigo", de Alfred Hitchcock-- para além de outras aparições igualmente epifânicas em obras de Otto Preminger ou do incomparável Billy Wilder.
Em termos estéticos, Novak só perdia para a colega de geração que emigrou para Mônaco --e mesmo aí, a doutrina divide-se: existe em Kim Novak uma sombra de perversidade que Grace Kelly, na sua beleza imaculada, nunca atingiu. Nem com Hitchcock. Mas divago.
Então regresso ao Oscar e a 2014. E Novak, hoje com 81 anos, desfigurada a golpes de bisturi: o rosto petrificado; as frases murmuradas pela óbvia impossibilidade de as pronunciar com aqueles lábios que Jimmy Stewart beijou várias vezes; em suma, o "rejuvenescimento" da diva era mais ofensivo aos meus olhos do que qualquer envelhecimento imaginável. Ninguém terá dito àquela mulher que o seu rosto era a prova material de um crime?
Olhando para a plateia de famosos, provavelmente não: perdi a conta do número de atrizes com rostos igualmente grotescos que aplaudiam Novak sem conseguirem esboçar um sorriso. De tal forma que o espectáculo me parecia irreal: um Carnaval macabro, com os foliões ostentando máscaras distorcidas dos seus próprios rostos originais. Fellini tomara conta da cerimônia e o resultado era um filme de Buñuel. Comentários?
Uma alma genuinamente libertária dirá que os indivíduos são livres para usarem e abusarem do seu corpo como entenderem: se Kim Novak, aos 81, deseja ter um rosto de 30, quem sou eu, quem somos nós, quem é o Estado para negar-lhe os prazeres da faca?
Entendo o argumento. Mas também entendo que existe um esquecimento deontológico no mesmo. Tom Blackwell, em artigo para o "National Post", resume o problema com uma única pergunta: de quem é a culpa quando as cirurgias plásticas correm barbaramente mal? Será apenas do paciente que deseja o impossível e recebe o inominável?
Ou existe também a responsabilidade do médico, que alimentou expectativas insanas, mesmo sabendo dos resultados a que elas conduziriam?
Dito de outra forma: será que o médico é apenas um profissional amorfo e sem consciência, que executa qualquer loucura que lhe é pedida desde que seja pago, e bem pago, para isso?
Ou o médico é mais que um marionete, mais que um mercenário, usando a razão e a responsabilidade para não subverter o propósito da sua arte?
Olhando para a esmagadora maioria das especialidades médicas, a pergunta responde-se a ela própria: não conheço cirurgiões que removam órgãos ou façam transplantes por mero capricho do paciente. Sim, eu até posso desejar a remoção de um braço (não desejo) ou receber um fígado novo por razões preventivas (bem, pensando nisso"¦). Mas terei sérias dificuldades legais em encontrar um cúmplice para os meus delírios.
Será que os cirurgiões plásticos estão acima dos restantes, lavando as mãos de qualquer "excesso" em nome da sagrada liberdade individual?
Regresso a Kim Novak. E regresso a Frankenstein. Olhando para a atriz, haveria a tentação de pensar que o monstro, ali, era ela.
Engano. Como escreve o mesmo Tom Blackwell no artigo do "Post", o mais provável é o verdadeiro monstro estar na sua clínica. E com a lista de espera completamente lotada.
Quando as pessoas escutam a palavra "Frankenstein", normalmente atribuem o nome ao monstro do romance de Mary Shelley.
Erro, claro: factualmente falando, "Frankenstein" é o nome do médico que cria o monstro. Mas existe alguma verdade na confusão onomástica. Porque o verdadeiro monstro da história não é a criatura; é o criador.
Na sua arrogância e insanidade, Victor Frankenstein é essa espécie de Prometeu moderno que recusa os limites da vida (e da morte) para transcender a nossa imperfeita condição terrena. Mary Shelley foi implacável na caracterização do médico e na sua ambição sacrílega e destrutiva. Para a infeliz criatura, as palavras da escritora são feitas de pura compaixão.
Lembrei de "Frankenstein" quando assistia à última cerimônia do Oscar. Sobretudo quando saltei do sofá ao ver Kim Novak na tela para entregar uma estatueta qualquer.
Momento nostálgico: Kim Novak é a atriz central de um dos meus filmes da vida -- "Vertigo", de Alfred Hitchcock-- para além de outras aparições igualmente epifânicas em obras de Otto Preminger ou do incomparável Billy Wilder.
Em termos estéticos, Novak só perdia para a colega de geração que emigrou para Mônaco --e mesmo aí, a doutrina divide-se: existe em Kim Novak uma sombra de perversidade que Grace Kelly, na sua beleza imaculada, nunca atingiu. Nem com Hitchcock. Mas divago.
Então regresso ao Oscar e a 2014. E Novak, hoje com 81 anos, desfigurada a golpes de bisturi: o rosto petrificado; as frases murmuradas pela óbvia impossibilidade de as pronunciar com aqueles lábios que Jimmy Stewart beijou várias vezes; em suma, o "rejuvenescimento" da diva era mais ofensivo aos meus olhos do que qualquer envelhecimento imaginável. Ninguém terá dito àquela mulher que o seu rosto era a prova material de um crime?
Olhando para a plateia de famosos, provavelmente não: perdi a conta do número de atrizes com rostos igualmente grotescos que aplaudiam Novak sem conseguirem esboçar um sorriso. De tal forma que o espectáculo me parecia irreal: um Carnaval macabro, com os foliões ostentando máscaras distorcidas dos seus próprios rostos originais. Fellini tomara conta da cerimônia e o resultado era um filme de Buñuel. Comentários?
Uma alma genuinamente libertária dirá que os indivíduos são livres para usarem e abusarem do seu corpo como entenderem: se Kim Novak, aos 81, deseja ter um rosto de 30, quem sou eu, quem somos nós, quem é o Estado para negar-lhe os prazeres da faca?
Entendo o argumento. Mas também entendo que existe um esquecimento deontológico no mesmo. Tom Blackwell, em artigo para o "National Post", resume o problema com uma única pergunta: de quem é a culpa quando as cirurgias plásticas correm barbaramente mal? Será apenas do paciente que deseja o impossível e recebe o inominável?
Ou existe também a responsabilidade do médico, que alimentou expectativas insanas, mesmo sabendo dos resultados a que elas conduziriam?
Dito de outra forma: será que o médico é apenas um profissional amorfo e sem consciência, que executa qualquer loucura que lhe é pedida desde que seja pago, e bem pago, para isso?
Ou o médico é mais que um marionete, mais que um mercenário, usando a razão e a responsabilidade para não subverter o propósito da sua arte?
Olhando para a esmagadora maioria das especialidades médicas, a pergunta responde-se a ela própria: não conheço cirurgiões que removam órgãos ou façam transplantes por mero capricho do paciente. Sim, eu até posso desejar a remoção de um braço (não desejo) ou receber um fígado novo por razões preventivas (bem, pensando nisso"¦). Mas terei sérias dificuldades legais em encontrar um cúmplice para os meus delírios.
Será que os cirurgiões plásticos estão acima dos restantes, lavando as mãos de qualquer "excesso" em nome da sagrada liberdade individual?
Regresso a Kim Novak. E regresso a Frankenstein. Olhando para a atriz, haveria a tentação de pensar que o monstro, ali, era ela.
Engano. Como escreve o mesmo Tom Blackwell no artigo do "Post", o mais provável é o verdadeiro monstro estar na sua clínica. E com a lista de espera completamente lotada.
11 de março de 2014
João Pereira Coutinho, Folha de SP
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