"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 23 de março de 2014

EMBUSTE ABSOLVE ASSASSINO

Leio no Estadão:

Acusado de matar bicheiro usa carta psicografada da vítima e é absolvido. Julgamento inocentou réu que está foragido desde que ocorreu o crime, há mais de 20 anos em Uberaba (MG)

A farsa se repete. Comentei-a há sete anos. Diz o jornal:
Uma carta psicografada foi usada durante o julgamento de um processo de homicídio, em Uberaba (MG), nesta quinta-feira, 20. Para provar sua inocência, a defesa do réu, Juarez Guide da Veiga, usou trechos do que teria dito a vítima, João Eurípedes Rosa, o "Joãozinho Bicheiro", como era conhecido, através de um médium. Na correspondência pós-morte, a vítima diz ter dado motivo para o crime ao agir com ódio e ignorância quando viu a ex-companheira junto de Juarez.

O crime ocorreu há quase 22 anos e a mulher envolvida no triângulo amoroso também foi beneficiada com o veredicto, pois inicialmente, segundo o Ministério Público, teria tramado a morte do marido em companhia do réu para ficar com a herança. Na mensagem psicografada, o morto a defende de qualquer participação e pede que cuide dos dois filhos do casal.

Em um dos trechos da carta ele diz: "Você tem uma vida inteira pela frente e muito o que fazer para criar e educar os nossos filhos". Em outro ponto, o bicheiro assume a culpa pela própria morte. "Eu estava dominado pelo ciúme e completamente à mercê do meu próprio despreparo espiritual."

É espantoso que a justiça brasileira aceite tais embustes para absolver um criminoso. É mais uma das jaboticabas nossas. Tivesse tal decisão validade, deveria ser capitulada como crime a descrença de uma existência no Além.


Ocorre que os fatos ocorreram em Uberaba, conhecida por ser a terra de Chico Xavier, médium mais famoso do País. Não aceitar o testemunho do finado seria uma afronta à memória do monumento nacional do município. As mensagens citadas no processo somam 17 páginas e foram psicografadas por Carlos Baccelli um ano após a morte do bicheiro. Baccelli é dentista por profissão, mas também é médium e autor de mais de 100 livros, alguns deles escritos em parceria com Chico Xavier.

Antes, para absolver um criminoso notório, bastava encontrar um juiz bom e barato. Hoje, serve um médium, que provavelmente nem cobrará nada para fornecer o testemunho emitido no Além. Juiz, advogado de defesa, e até mesmo o de acusação, se dobraram à crendice vigente na cidade. O promotor Raphael Soares Moreira Cesar Borba, representante da acusação, não comentou a sentença, mas assim que quatro dos sete jurados votaram a favor do réu, reconheceu a tese de legítima defesa e pediu a absolvição.

Nunca convivi com espíritas. Só fui ver um há dez anos. Quando morre alguém perto da gente, de onde mal se suspeita sempre salta um espírita vendendo suas muletas metafísicas. Minha mulher morrera há mais de mês e eu conversava com amigos comuns. Em dado momento, uma moça atalhou: “Eu conversei ontem com ela”. Nessas ocasiões, tomo uma atitude de crédulo. Se a moça afirmava com tanta convicção ter conversado com minha mulher, não seria eu quem iria contestá-la. Perguntei apenas o que ela havia dito. Ela deixou uma mensagem, disse a moça: “seja feliz”.

O que me lembrou a aparição de Maria aos três pastores em Fátima. Quando interrogada sobre quem era, teria dito a Virgem: “Eu sou a Nossa Senhora”. Ora, sendo Maria mais que santa, semideusa, não é de supor-se que tivesse domínio tão precário do português. Se se dirigia aos três pastores, o correto seria: “Eu sou a Vossa Senhora”. Por um descuido sintático do narrador, o milagre ficou prejudicado.

Da mesma forma, a mensagem de minha companheira. Éramos gaúchos. Depois de passarmos por Curitiba e São Paulo, ela passou a usar o você, mas apenas ao tratar com curitibanos e paulistanos. Jamais me trataria por você. Como a comunicação de Maria, a de minha mulher também ficou sob suspeita. Mas não neguei o testemunho da moça. Aproveitei o ensejo para pedir-lhe que, quando falasse de novo com ela, pedisse o código do celular, que eu havia ficado sem.

A moça entrou em pane, achava que não ia dar, códigos são coisas confidenciais, começou a perguntar que horas são e logo deu as de Vila Diogo. Contei a história mais tarde a professores universitários e um deles, também espírita, prometeu-me perguntar às instâncias do Além sobre o código do celular. Mas me alertou que o médium teria de ser muito poderoso para descobri-lo. Bem entendido, nunca mais me falou no assunto. Nem eu precisava do código, afinal sempre o tive e queria apenas divertir-me com a capacidade comunicativa dos tais de médiuns.

Talvez código de celular seja matéria de pouca monta. Assuntos de mais gravidade, como a absolvição de um crime, têm imediata atenção do Além. Em 2006, aconteceu não na terra do Chico Xavier, mas em Viamão, RS. Uma mulher de 63 anos, acusada de matar um tabelião, com dois tiros na cabeça, foi inocentada, por 5 votos a 2, da acusação de mandante de homicídio.

Inocentada por quê? Porque uma carta psicografada da vítima declarava: "O que mais me pesa no coração é ver a Iara acusada desse jeito, por mentes ardilosas como as dos meus algozes (...). Um abraço fraterno do Ercy", leu o advogado de defesa, ouvido atentamente pelos sete jurados.

Vamos ao que disse a Folha de São Paulo, na época, sobre o fato:

Não consta das cartas, psicografadas pelo médium Jorge José Santa Maria, da Sociedade Beneficente Espírita Amor e Luz, a suposta real autoria do assassinato. O marido da ré, Alcides Chaves Barcelos, era amigo da vítima. A ele foi endereçada uma das cartas. A outra foi para a própria ré. Foi o marido quem buscou ajuda na sessão espírita. O advogado, que disse ter estudado a teoria espírita para a defesa (ele não professa a religião), define as cartas como "ponto de desequilíbrio do julgamento", atribuindo a elas valor fundamental para a absolvição. (...) Os jurados não fundamentam seus votos, o que dificulta uma avaliação sobre a influência dos textos na absolvição. Os documentos foram aceitos porque foram apresentados em tempo legal e a acusação não pediu a impugnação deles.

Curvem-se as nações mais uma vez ante este colosso, o Brasil. Glória ao Rio Grande do Sul, este Estado pioneiro em matéria de ciência jurídica. Viamão über alles. Que sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra, como diz o hino rio-grandense. Esta extraordinária inovação do tribunal do júri, verdadeiro ovo de Colombo ainda não intuído pelos sistemas judiciários dos demais países, dirime definitivamente quaisquer dúvidas que possam pairar sobre os veredictos dos jurados. Quem com mais autoridade para inocentar um réu senão a vítima? Está morta, é verdade.

Mas se os espíritas consideram ser possível falar com os mortos, em nome do sagrado respeito a todas as profissões de fé, não seremos nós, ateus empedernidos, que contestaremos tal crença. Só nos resta esperar que este novo recurso jurídico se integre definitivamente ao Direito Processual e seja mais e mais utilizado pelos nossos tribunais. Como também que a profissão de médium seja logo regulamentada.


23 de março de 2014
janer cristaldo

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