"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 23 de março de 2014

O MODELO DA CEPAL: ESCASSEZ, OS "INIMIGOS DO POVO" E A "MALDIÇÃO" DO CONSUMO


 Artigos - Economia
Há algumas semanas atrás um ministro de Nicolás Maduro expressou preocupação com os programas de distribuição de renda venezuelanos, que correm, segundo afirmou, o risco de gerar uma “nova classe média”, com todos os seus malditos hábitos de prodigalidade e “consumo conspícuo”. A preocupação do burocrata é compartilhada pelo tirano que o emprega - pressionado pelo descontentamento popular, em virtude da escassez de mercadorias -, o que o levou a recorrer ao corriqueiro expediente socialista do racionamento.
 
Por motivos bem diferentes, razões que vão além do discurso demagógico bolivariano e se estendem ao continente e ao Brasil, levam-nos a crer que políticas dessa natureza jamais serão descontinuadas e representam grave ameaça à estabilidade fiscal e à contenção da pressão inflacionária, sobretudo quando alimentadas pela irresponsável ampliação do crédito e gasto públicos. Mas há outra questão, de cunho estrutural, que deve ser foco de nossas atenções: as limitações impostas pelo consumo ao funcionamento dos regimes de orientação socialista e seu papel nas teorias de “desenvolvimento” terceiro-mundistas, notadamente da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL).
 
Na profunda crise da economia venezuelana assoma, tenebroso, o flagelo socialista da penúria. Completamente dependente do petróleo bruto - que responde por 95% de suas exportações - e mesmo se encontrando no topo dos maiores detentores mundiais de reservas - o país tem visto sua produção declinar aceleradamente, afetada tanto pela queda dos preços do óleo quanto pela nova tecnologia do fraturamento hidráulico nos EUA, ao lado das limitações impostas ao seu crescimento pela performance da Europa e da China. Como resultado, explodiram as taxas de inflação (cerca de 56% ao ano), o bolívar entrou em uma trajetória de desvalorização e a escassez se generalizou. Impossibilitada de adotar outras alternativas, a ditadura reforçou os controles cambiais mantidos por onze anos no país e aumentou os gastos em subsídios, investimentos e programas de ajuda que, segundo a The Economist alcançam o montante de U$ 100 bilhões desde 1999.
 
Esses fatos não devem nos causar surpresa, pois inflação e escassez são irmãs siamesas no Socialismo. Em estágios mais avançados, este regime não exibe inflação “aberta”, pois os preços são totalmente administrados, para ser mais exato, tratam-se de “preços contábeis,” uma vez que a moeda não possui suas propriedades clássicas e o dinheiro (como o rublo, por exemplo) é uma mera unidade de conta. Não há, portanto, um “sistema” de preços, o que faz com que desequilíbrios “físicos” na aloção dos recursos se traduzam em efetivo descompasso entre uma oferta inadequada (pois não há mercado) e uma demanda não atendida. Consequentemente, as pessoas sofrem com a ausência de produtos nas prateleiras e se embolam em filas gigantescas.
 
A variável consumo sempre foi problemática nas teorias de crescimento do socialismo real; alinhando-se a considerações sobre o papel do mercado e à prevalência de incentivos ao desenvolvimento da indústria de bens de capital sobre a de bens de consumo ou, em outras palavras, à determinação da magnitude das taxas de crescimento de cada um dos dois “ramos fundamentais” da economia socialista, que deveriam ser “corretamente harmonizados”. Como burocratas são inaptos para estabelecer esses percentuais através de thumb rules, a economia soviética resultou no descalabro representado na maioria dos livros de Introdução à Economia por uma uma função de produção capenga, que ilustra as vicissitudes de um país que destina a maior parte dos seus recursos para o fabrico de armas, em prejuízo do consumo.
 
Não por mero acaso, essa delicada questão teórica foi o pano de fundo dos embates nos anos 20 entre a “direita” do Partido Comunista da União Soviética, encabeçada por Nicolai Bukharin; a “esquerda”, liderada por Leon Bronstein Trotsky e um “centro”, formado por aparelhistas aglutinados em torno da enigmática e sinistra figura de Joseph Stalin.Com a vitória do “centro” sobre o campo adversário - e a subsequente eliminação de Bukhárin e da dupla Kamenev-Zinoviev - Stalin tomou em definitivo as rédeas do governo soviético, substituindo a Nova Política Econômica (NEP) pelos Planos Quinquenais, acelerando a estatização da economia e promovendo a coletivização compulsória dos camponeses. Tal política só foi exitosa porque o PCUS apontou como inimigos do povo os kulaks (“punho fechado” em ucraniano, ou aqueles que eram considerados “ricos” por terem, por exemplo três bois), perseguindo-os sem piedade.
 
Graças aos excedentes sequestrados do campo, o regime do velho Koba (primeiro apelido do ladrão de bancos Stálin) se tornou capaz de adquirir bens de capital no exterior e realizar obras de infraestrutura faraônicas, mas seu estilo de “modernização”, antes mesmo da passagem do Líder, debatia-se em estertores já ao final do período de implementação do Primeiro Plano Quinquenal (1928-1932). De fato, os métodos de planejamento central na URSS fracassaram – como é sobejamente admitido – mesmo com o amparo de técnicas de insumo-produto, emprego de super-trabalhadores stakhanovistas e posteriormente, da programação computacional. Mas, sua filosofia persiste, impávida. Tanto é que inúmeros países ainda se inspiram em “planos de longo prazo” irrealistas e mirabolantes, tais como o Plano Plurianual” (PPA) no Brasil, as tolices chamadas “Planos Diretores Urbanos”, “Estatuto da Cidade”, “Estatutos das Metrópoles” e tantas outras.
 
No Brasil, também tivemos nossos simulacros de um Maduro e de um Brejnev, dado o caráter arraigado do dirigismo em um pensamento econômico tipicamente terceiro-mundista, palco onde se exibem estrelas como Maria da Conceição Tavares, o campineiro Luíz Gonzaga Belluzo e o cambiante Luz Carlos Bresser Pereira.
 
Empolgado com as teses dessa gente, durante o Plano Cruzado, o presidente José Sarney “congelou preços e tarifas, o que causou um enorme desequíbrio dos preços relativos e o racionamento de produtos e, como resultado, a formação de filas para adquiri-los. Como reação tática à incompetência do governo, Sarney apontou os “verdadeiros culpados” pela situação, (os “sabotadores”, a serem denunciados pelos “fiscais do Sarney”), repetindo assim a eficaz manobra soviética de responsabilizar os kulaks pelos resultados medíocres intrínsecos ao socialismo.
 
Entretanto, há quem insista em ignorar o quanto o mesmo discurso encantou inúmeros intelectuais na América Latina e no Brasil ao longo da segunda metade do século XX e até hoje maravilha os estudantes universitários. Nosso país, strictu sensu, não é capitalista, nem socialista ou comunista (ao menos por enquanto); mas um projeto inacabado e monstruoso da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), comissão regional das Nações Unidas na AL. Por décadas, ideias cepalinas como “dependência econômica”, “substituição de importações”, “centro-periferia”, “deterioração das relações de troca”, “subdesenvolvimento” dominaram as faculdades de Economia, ora camufladas por subterfúgios de natureza terminológica; ora publicamente; a depender do lado para que pendia o peculiar “movimento pendular” da sociedade brasileira entre Liberalismo e Intervencionismo, enunciado, devo admitir que corretamente, por Otávio Ianni.
 
Em face do fracasso inequívoco do modelo de “substituição de importações” da CEPAL em meados dos anos 80 – seguido da estagnação e hiperinflação em várias economias da América Latina – passou a predominar, especialmente, o agregado representado pelo consumo como variável explicativa do insucesso cabal das prédicas do órgão das Nações Unidas. Como não era possível, por razões políticas, abandonar um caminho inviável para o desenvolvimento, era fundamental detectar novos “inimigos do povo”. É importante perceber que, para os autores esquerdistas,   o defeito nunca é de um sistema flagrantemente antinatural, o Socialismo, mas dos grupos sociais contrários à "maioria da nação”.
 
Em trecho revelador de seu livro Desenvolvimento e subdesenvolvimento de 1974, o economista heterodoxo (palavra bonita para comunista no Brasil) Celso Furtado devotava grande interesse pelas aquisições do que ele denomina “minoria modernizada” ou “novas classes dirigentes”. Furtado, diga-se de passagem, foi o principal responsável pela formulação do fracassado “Plano Trienal” de João Goulart.
 
“O fenômeno da dependência do aparelho produtivo se manifesta inicialmente sob a forma de imposição de externa de padrões de consumo que somente podem ser mantidos mediante a geração de um excedente criado no comércio exterior. É a rápida diversificação desse setor de consumo que transforma a dependência em algo dificilmente reversível. Quando a industrialização pretende substituir esses bens importados, o aparelho produtivo tende a dividir-se em dois: um segmento ligado a atividades tradicionais, destinadas às exportações ou ao mercado interno (rurais e urbanos), e outro constituído por indústrias de elevada densidade de capital, produzindo para a minoria modernizada. Os economistas que observaram as economias subdesenvolvidas sob a forma de sistemas fechados viram nessa descontinuidade do aparelho produtivo a manifestação de um “desequilíbrio ao nível de fatores”, provocados pela existência de coeficientes fixos nas funções de produção, ou seja, pelo fato de que a tecnologia que estava sendo absorvida era “inadequada”. Pretende-se, assim, ignorar o fato de que os bens que estão sendo consumidos não podem ser produzidos senão com essa tecnologia, e que às classes dirigentes que assimilaram as formas de consumo dos países concêntricos não se apresenta o problema de optar entre essa constelação de bens e uma outra qualquer. Na medida em que os padrões de consumo das classes que se apropriam do excedente devam acompanhar a rápida evolução nas formas de vida, que está ocorendo no centro do sistema, qualquer tentativa visando a “adaptar” a tecnologia terá escassa significação”.
 
O que exatamente Furtado quis dizer? Em primeiro lugar, que é indispensável ao modelo cepalino a contenção do consumo privado, imposto por “padrões de consumo alienígenas”. Isto se deve à natureza do regime de inspiração socialista preconizado pela CEPAL, fundamentado exatamente nos mesmos termos da famosa utopia soviética do “equilíbrio” entre os diferentes setores produtores de bens de capital e aqueles que ofertam bens de consumo, compreendida, na AL, como a “substituição de importações” ou a construção a toque de caixa de uma “matriz industrial completa”, uma aventura que legou ao país seus impressionantes e crônicos gargalos econômicos e tecnológicos.
 
A sua referência a indústrias de “elevada densidade de capital” é ainda mais interessante, pois ela atenderia a uma “minoria organizada” e partia de opções tecnológicas “inadequadas”. Logo, deve ser rejeitada uma opção tecnológica ditada pelo mercado e aceito o intervencionismo antinatural. Um “minoria organizada” seria aquela constituída no interior do país e que, de certa forma forma, beneficiaria-se das relações “assimétricas” no comércio internacional. Recorde-se que, para a CEPAL, este intercâmbio se exprimia em perdas para as nações “subdesenvolvidas”, com uma relação entre os preços dos bens primários produzidos e os dos bens de capital importados desfavorável para os primeiros. Segundo os ensinamentos de Furtado e da CEPAL, o comportamento dessa classe “egoística” provocaria desníveis na distribuição de renda, garantindo-lhe níveis de consumo mais elevados que aqueles do consumidor médio, ou seja: formava-se, historicamente, uma “elite”, ou uma “classe média “reacionária” como prega a esquerda brasileira atualmente.
 
As lições da História são claras: vitimados pela incompetência, a fórmula encontrada por governos socialistas para manter-se no poder é invariável: denunciar culpados, prender sabotadores e confiscar as propriedades ou o produto do trabalho dos agrupamentos sociais responsáveis pela criação de riqueza naqueles países que parasita. O desafio que fica para as pobres vítimas desse modelo é gigantesco, diga-se de passagem. Em geral, a herança socialista é nefasta: além de corroer as estruturas econômicas, o Socialismo expulsa os indivíduos mais empreendedores da sociedade, reduzindo o estoque de um “fator de produção” fundamental, representado pela capacidade empresarial. Os tristes casos de Cuba e Venezuela ilustram bem o que desejo dizer e, ao que parece, seguimos rumo análogo no Brasil.


Nota:
FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento econômico. São Paulo: Círculo do Livro, 1974. p.88.
 
23 de março de 2014
Creomar Baptista

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