Nos idos de 2009 e 2010, quando a crise financeira estava no auge e o Estado “saiu do armário” e se atirou sem mais cerimônias nos braços do Capital em plena pátria do capitalismo democrático, a perspectiva do suicídio da democracia era um tema obsessivo do Vespeiro.
Esse suicídio seria função da completa inapetência dos políticos profissionais movidos a voto de enfrentar o pânico geral causado pela destruição maciça de empregos e direitos do trabalho provocadas pela avassaladora entrada em cena, pelas portas da internet, do capitalismo de Estado chinês e das hordas de miseráveis fabricados pelo socialismo real dispostos a trabalhar por nada e em condições desumanas, tomando o lugar dos trabalhadores dos poucos territórios do planeta onde as relações de trabalho e entre empresas e consumidores tinham atingido o grau de civilização. (Confira neste artigo.)
Desde então a involução do Brasil para o presente padrão de getulismo mitigado louco para vestir uma farda de coronel sul-americano a que fomos arrastados pelo PT tem merecido o melhor das minhas reservas de exasperação intelectual.
O esquerdismo americano com aquele seu tom peculiar que mistura uma sinceridade infantil meio idiota de “descoberta da pólvora” própria de quem nunca tinha tido de enfrentar os leões em cujo covil o resto do mundo tem vivido, á la Opinion Page do New York Times, com a estridência mercenária dos que se apressam por atender e monetizar a demanda por um discurso “líbr’ol” (leia-se com pronúncia ianque), à la Huffington Post, entretanto, nunca deixou de merecer um lugar de honra no receptáculo das minhas descargas de bílis.
E isto porque, se a do resto do mundo teoriza sobre o que nunca viveu, a esquerda americana faz pior: nega ou finge dolosamente que esqueceu a sua própria história e mesmo a excepcionalidade da condição em que vivem ainda hoje sem ter a desculpa da desinformação e do analfabetismo centralmente planejados que nós outros temos.
Hoje foi dia.
Levou-me a voltar a eles o artigo Capitalism vs. Democracy, de Thomas B. Edsall, comemorando no NYT (aqui), assim num tom de “Eu não disse!”, o livro de Thomas Piketty – Capital in the Twenty-First Century – que vem sendo festejado pela esquerda ianque como “um marco da ciência econômica”.
Ali afirma-se sem mencionar uma única vez as palavras “China”, “internet”, “exportação do trabalho” e “monopólio” (= a sociedade entre Estado e Capital), que o feroz efeito de concentração de renda que eu apontava nos artigos de 2010 como o veneno que inevitavelmente faria isso, matará o capitalismo democrático.
E fará isso pela extinção de todo o entusiasmado apoio que ele tinha entre a pequena parcela da humanidade que jamais desfrutou dele e que, recordo eu, em função disso avançou tanto nas ciências e no progresso material que conseguiu derrotar sozinho todos os totalitarismos selvagens que tentaram destruí-lo ao longo do século 20.
E porque me irritaria tanto ver confirmado o meu próprio vaticínio?
Porque o ultra titulado senhor que, apesar do nome soando inglês, escreve originalmente em francês e leciona na Escola de Economia de Paris – e talvez venha daí a desonestidade essencial dessa sua “análise” que os aposentadocratas gauleses repetem sem nenhuma alteração desde antes dos tempos da fundação da USP na sua mauvaise conscience de quem sempre viveu às custas do Estado – afirma que esse processo de concentração de renda não é o resultado da derrota do capitalismo democrático pelo capitalismo de Estado – o nome do socialismo do Terceiro Milênio que trocou os kalashnikovs pelos bilhões de dólares – mas sim o fruto necessário das “contradições internas” do próprio capitalismo e blá, e blá, e blá…
Um discurso de Zé Dirceu em tempos de centro acadêmico, em outras palavras. O da Papuda já não o repetiria sem piscar marotamente um olho e pôr um sorriso cínico nos lábios…
Mas vai mais longe o homenzinho que o NYT leva tão à sério. Ele tem o requinte de afirmar que o “hiato” de justiça social e justa distribuição da renda vividos pelos Estados Unidos entre 1914 e 1973 – 60 longos anos! – deveu-se às guerras mundiais, à crise de 29 e a outros terremotos que fizeram os ricos perder dinheiro, veja você!
Não foi a condição dos pobres de ganhá-lo que melhorou. Não foi a extinção das mumunhas entre os donos do poder e os donos do dinheiro, essas duas invenções do diabo para catar gente para os seus porões, que as proporcionou. Não foi o triunfo do merecimento sobre a corrupção que fez a mágica.Tudo aquilo que compos o “sonho americano” não aconteceu de fato; foi só uma ilusão que afetou misteriosamente milhões de trouxas dispostos a morrer por ela em territórios alheios pelo mundo afora.
A coincidência exata de datas entre a única ocasião em que o Estado e o Capital foram forçados pela conquista de instrumentos de democracia direta pelo povo dos Estados Unidos da América como o voto distrital com recall entre outros, mediante as reformas da Progressive Era encerradas precisamente em 1914, a permanecer afastados um do outro respeitando estritamente a fronteira entre as funções de cada um, especialmente na ordem econômica, e o maior surto de progresso vivido pela humanidade em todos os tempos não sugere sequer uma hesitação a este honesto “pensador”.
Não, monsieur Pikkety não faz concessões aos conceitos de causa e efeito. Sugere um “imposto global” para tirar dinheiro dos ricos e entregá-lo aos pobres, como estes que o PT nos impõe, de quase 40% do PIB na entrada que viram 1 ou 2% do PIB na saída da esmola do Bolsa Família, e deixam esta Brasília morbidamente obesa e os vendedores de “assesso” aos cofres e obras “públicos” ainda fora da Papuda podres de ricos pelo meio do caminho. Ele quer insistir nesse remédio que todo o mundo que permaneceu onde estava em 1914 seguiu usando.
Admite, entretanto, que é impossível coordenar o mundo de hoje em torno desse “imposto global” e que portanto, pela falta dele, a democracia não resistirá.
De modo que para apaziguar-me a urticária intelectual só resta mesmo correr de volta para o unguento do bom senso honesto do professor Fabio Barbieri, também recentemente citado aqui.
É ele que nos lembra que “não existe a dicotomia capitalismo-socialismo mas sim economias em pontos variados da distância que separa as quimeras teóricas da economia pura de mercado x a economia totalmente planificada”; que o poder de legislar sobre assuntos econômicos “abre a caixa de Pandora da dedicação à busca de privilégios legalizados”; que essa “pilhagem legalizada” elevada à condição de profissão dos poderosos gera um impulso permanente ao crescimento do Estado e da sua interferência nos mercados para aumentar os ganhos desses mercenários e que, quando essa pilhagem sistemática finalmente leva uma economia nacional à breca, logo surgem os intelectuais que vivem à sombra do Estado para dizer que o fracasso foi do capitalismo e do mercado e não da intervenção do Estado que mandou os dois a escanteio e que, portanto, é preciso mais intervenção…
Sobre aquele “hiato” de 60 anos, os únicos da história da humanidade durante os quais vigorou o capitalismo democrático num canto do mundo que por isso se tornou mais rico e mais sábio que todo o resto do planeta somado, diz o dr. Barbieri, agora com mais sobradas razões, que foi mesmo um hiato, nada mais que um hiato: “o intervencionismo, em outros tempos chamado de mercantilismo, não é transitório mas sim a forma de organização social mais estável da História”, c.q.d.
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