Criador do fuzil AK-47 diz que preferia ter inventado um cortador de grama, mas 'dormia tranquilo'
Mikhail Kalashnikov, que morreu na segunda-feira, disse que tinha orgulho de sua invenção, o AK-47. Na mesma declaração, acrescentou que preferia ter criado um cortador de grama. Ele concebeu o engenho de oito partes móveis, leve, barato, resistente, capaz de ser usado por civis e até adolescentes. E a sua invenção foi a máquina de matar mais prolífica da História. Quase 100 milhões de Kalashnikovs foram fabricados nos últimos 60 anos. Só na década de 90, mais de 300 mil pessoas morreram todos os anos com rajadas do rifle.
“Durmo tranquilo”, ele dizia. “O fato de as pessoas morrerem por causa do AK-47 não se deve ao seu inventor, mas à política.” E a política o fez um herói do passado e do presente. Desde 1947, quando criou a sua maravilha, ganhou o Prêmio Stalin, a Ordem da Estrela Vermelha e o título de Herói do Trabalho Socialista. Com o fim da União Soviética, Vladimir Putin o promoveu a general, concedeu-lhe a prestigiadíssima Ordem de Santo André e mandou instalar um elevador no prédio humilde onde morou até morrer.
Poderia ser também um herói da economia. Kalashnikov dizia que, se tivesse feito o fuzil no Ocidente, seria um bilionário. O seu rifle foi a mercadoria mais exportada pela União Soviética e pela Rússia. Isso apesar de a URSS ter franqueado a sua fabricação à China e à Coreia do Norte, a todo o Leste Europeu e ao Egito. Da Chechênia à Faixa de Gaza, do Afeganistão ao Iraque, da Colômbia ao México, nas mãos de crianças africanas ou de traficantes cariocas, eis o Kalashnikov, levando dor e morte a milhões. Não tem nem a desculpa da pólvora, da dinamite ou da energia nuclear, que podem servir a fins pacíficos. Só presta para destruir, fazer sofrer, dominar.
O AK-47 provou a sua superioridade na Guerra do Vietnam. Seu equivalente americano, o fuzil M16, engripava devido ao calor e à umidade. Já o Kalashnikov, nas mãos de soldados do Vietnam do Norte e de guerrilheiros vietcongues, estraçalhava. Mesmo com todos os aperfeiçoamentos do fuzil americano há hoje dez vezes mais AK-47 no mundo do que M16. Nem por isso os vietnamitas venceram os americanos devido à arma inventada pelo russo. Eles triunfaram primeiro na política, como diria Kalashnikov.
Os Estados Unidos tinham armas nucleares capazes de dizimar várias vezes o paisinho asiático atrasado. Não as usaram porque não tiveram condições políticas — apoio popular interno e aliados em escala mundial, que confeririam legitimidade moral à agressão. Já os seus adversários contavam com os corações e mentes do povo, simpatia internacional, e se dotaram de uma liderança capaz de conduzir a nação, a ferro e fogo, até a vitória. Uns defendiam o capitalismo e outros o comunismo. E hoje o Partido Comunista do Vietnam promove o capitalismo.
A mesma ironia da História marcou a vida de Mikhail Kalashnikov. Ele nasceu numa família rural pobre, em 1919, pouco depois da revolução bolchevique. Cresceu doente, na escassez provocada pela guerra civil. Quando Stalin elegeu os camponeses como grandes inimigos da revolução, em 1929, a família de Kalashnikov foi banida para a Sibéria. Lá, seu pai morreu de tuberculose. Seus irmãos foram submetidos a trabalhos forçados. Distraía-se montando e desmontando pequenas máquinas.
Com a invasão alemã, foi recrutado pelo Exército Vermelho. Chegou a sargento, comandou blindados, foi ferido seriamente e passou meses num hospital. Na convalescença, dessa vez montava e desmontava armas, tentando compreender por que as germânicas eram tão boas. Queria criar um rifle automático que ajudasse a defender a pátria. Só o conseguiu quando a Segunda Guerra Mundial havia terminado, e a AK-47 virou a arma por excelência da guerra fria. Nunca se queixou do que a família sofreu, e lamentou não ter conhecido Stalin pessoalmente. Criticou Gorbachev e Yeltsin e entristeceu-se com o fim da União Soviética. Virou então caixeiro-viajante de armas russas, mercadejando a morte em feiras bélicas internacionais.
As armas dependem da política, mas têm também vida própria. Num texto dos anos 20, Walter Benjamin disse que a luta de classes não era um cabo de guerra entre dominados e dominadores. Era um pavio aceso que levaria à dinamite. Escreveu que era possível prever quanto tempo de evolução tecnológica seria necessário até que tudo estourasse. Deu como exemplos de “evolução técnica e científica” as armas químicas e a hiperinflação. Se os dominados não apagassem o pavio, a destruição de milhares de anos de História era inevitável. Porque essa é a dinâmica do sistema econômico.
Benjamin talvez devesse ser visto como um otimista. Não conheceu as armas nucleares, superpopulação, hipotéticas catástrofes ambientais.
Sequer soube de Kalashnikov.
26 de dezembro de 2013
MARIO SERGIO CONTI, O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário