Cuidado, viver uma vida fútil poderia ser uma decisão moral: o único jeito de não mascarar a futilidade da vida
Em geral, nesta época do ano, somos invadidos pelos filmes aos quais é possível assistir em família, com as crianças. De fato, para muitos, no dia 25, uma sessão coletiva de cinema é um alívio --uma trégua silenciosa depois do interminável (e, às vezes, penoso) almoço de Natal.
No entanto, aleluia: nestas últimas semanas chegaram ao menos três filmes que são para gente grande: "Jovem e Bela", de François Ozon, "Azul É a Cor Mais Quente", de Abdellatif Kechiche, e "A Grande Beleza", de Paolo Sorrentino.
Nenhum deles é para famílias na tarde de Natal; suponho que seja por isso que muitos sentiram a necessidade de se defender contra os três, com unhas e dentes.
Sobre "Jovem e Bela", já escrevi (http://migre.me/h8kKP). É um filme tocante e verdadeiro sobre uma adolescente que, na fantasia e na prática da prostituição, encontra um caminho para crescer.
Houve quem conseguisse declarar, sem muita coerência, que 1) ninguém tem fantasia de prostituição (oh, dó!), 2) quem tem essa fantasia não a pratica (oh, dó!), e 3) se alguém a tem e a pratica, certamente não é adolescente de classe média (oh, mais dó!).
O filme é imperdível --especialmente para quem tiver interesse em entender a grandeza e a coragem da experiência adolescente, com ou sem prostituição.
Com "Azul É a Cor Mais Quente", que é a história da paixão entre duas jovens mulheres, aconteceu que muitos, comovidos (a contragosto?) pelo filme, afirmaram que ele merece ser visto por ser uma grande história de amor, perda, dor e separação. O fato de que o amor em questão seja entre duas mulheres seria, em suma, sem relevância.
Ou seja, assista ao filme, mas, para apreciá-lo, esqueça-se de que se trata de duas mulheres. Acreditarei na boa fé desses comentários quando as mesmas pessoas, escrevendo sobre "Romeu e Julieta", acharem oportuno observar: pouco importa que se trate de um jovem moço e de uma menina, poderiam ser dois homens ou duas mulheres, o que importa são os sentimentos.
Mas quero falar de "A Grande Beleza", que acaba de estrear. A reação de defesa, nesse caso, consistiu em ler o filme como uma crítica moral ao mundo que ele apresenta.
No passado, Jep Gambardella (o extraordinário Toni Servillo) escreveu um romance que teve um certo sucesso, mas que ele mesmo considera pouco relevante. Ele vive numa Roma rica e mundana, decidida a se convencer de que ela está se divertindo muito.
Alguns dizem que o filme retrata a decadência da Itália. O que sobrou da grandeza passada são as artes da vaidade --a moda, o design, o estilo: somos os reis do supérfluo. Outros saem do cinema convencidos de que Sorrentino, como eles, tem ojeriza pela vida "vã" do protagonista. Jep trabalha pouco, vira as noites, bebe além do devido: ele é fútil.
Mas não é bem assim. Marcello, o protagonista de "A Doce Vida", de Fellini, ele, sim, era um desadaptado na futilidade de Roma (e do mundo): esperava reencontrar uma inocência perdida e escrever enfim algo que valesse a pena.
O espírito de Jep (e de Sorrentino) é outro. Tem mais a ver com a elegância e a coragem da bandinha que continuou tocando enquanto o Titanic afundava. Em Roma isso tem um sentido especial: a festa continuou com os bárbaros às portas; e ela continua agora que os bárbaros já chegaram há tempos. É uma prova de decadência? Ou de sabedoria?
Aos olhos dos engajados (como Stefania, no filme), Jep talvez pareça desprezivelmente cínico. Mas ele é o último dos românticos, que vive como se a única resposta honesta ao vazio do mundo fosse a fragilidade da beleza: a beleza de Roma ou a de um terno perfeitamente cortado, tanto faz.
São desculpas pela futilidade? Talvez. Mas, cuidado, uma vida fútil poderia ser a única maneira de não mascarar a futilidade da vida. Qual é o efeito moral certo do "lembre-se da morte"? Ou melhor, qual é o melhor jeito de se lembrar da morte? Uma austeridade sisuda ou, ao contrário, o difícil exercício de não levar a vida a sério?
Criança, nos anos 1950, assisti a "O Salário do Medo", de Clouzot. Ainda hoje me lembro que o piloto (Mario?) de um dos caminhões de dinamite, fadados a explodir, enquanto se barbeava, dizia que, se ele tiver que morrer, queria ao menos ter uma aparência decente.
"A Grande Beleza" é um dos nove filmes pré-selecionados para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Torço por ele.
Para os amigos filósofos, uma sugestão (já antiga): "Aesthetics and Ethics: Essays at the Intersection", de J. Levinson (Cambridge).
Em geral, nesta época do ano, somos invadidos pelos filmes aos quais é possível assistir em família, com as crianças. De fato, para muitos, no dia 25, uma sessão coletiva de cinema é um alívio --uma trégua silenciosa depois do interminável (e, às vezes, penoso) almoço de Natal.
No entanto, aleluia: nestas últimas semanas chegaram ao menos três filmes que são para gente grande: "Jovem e Bela", de François Ozon, "Azul É a Cor Mais Quente", de Abdellatif Kechiche, e "A Grande Beleza", de Paolo Sorrentino.
Nenhum deles é para famílias na tarde de Natal; suponho que seja por isso que muitos sentiram a necessidade de se defender contra os três, com unhas e dentes.
Sobre "Jovem e Bela", já escrevi (http://migre.me/h8kKP). É um filme tocante e verdadeiro sobre uma adolescente que, na fantasia e na prática da prostituição, encontra um caminho para crescer.
Houve quem conseguisse declarar, sem muita coerência, que 1) ninguém tem fantasia de prostituição (oh, dó!), 2) quem tem essa fantasia não a pratica (oh, dó!), e 3) se alguém a tem e a pratica, certamente não é adolescente de classe média (oh, mais dó!).
O filme é imperdível --especialmente para quem tiver interesse em entender a grandeza e a coragem da experiência adolescente, com ou sem prostituição.
Com "Azul É a Cor Mais Quente", que é a história da paixão entre duas jovens mulheres, aconteceu que muitos, comovidos (a contragosto?) pelo filme, afirmaram que ele merece ser visto por ser uma grande história de amor, perda, dor e separação. O fato de que o amor em questão seja entre duas mulheres seria, em suma, sem relevância.
Ou seja, assista ao filme, mas, para apreciá-lo, esqueça-se de que se trata de duas mulheres. Acreditarei na boa fé desses comentários quando as mesmas pessoas, escrevendo sobre "Romeu e Julieta", acharem oportuno observar: pouco importa que se trate de um jovem moço e de uma menina, poderiam ser dois homens ou duas mulheres, o que importa são os sentimentos.
Mas quero falar de "A Grande Beleza", que acaba de estrear. A reação de defesa, nesse caso, consistiu em ler o filme como uma crítica moral ao mundo que ele apresenta.
No passado, Jep Gambardella (o extraordinário Toni Servillo) escreveu um romance que teve um certo sucesso, mas que ele mesmo considera pouco relevante. Ele vive numa Roma rica e mundana, decidida a se convencer de que ela está se divertindo muito.
Alguns dizem que o filme retrata a decadência da Itália. O que sobrou da grandeza passada são as artes da vaidade --a moda, o design, o estilo: somos os reis do supérfluo. Outros saem do cinema convencidos de que Sorrentino, como eles, tem ojeriza pela vida "vã" do protagonista. Jep trabalha pouco, vira as noites, bebe além do devido: ele é fútil.
Mas não é bem assim. Marcello, o protagonista de "A Doce Vida", de Fellini, ele, sim, era um desadaptado na futilidade de Roma (e do mundo): esperava reencontrar uma inocência perdida e escrever enfim algo que valesse a pena.
O espírito de Jep (e de Sorrentino) é outro. Tem mais a ver com a elegância e a coragem da bandinha que continuou tocando enquanto o Titanic afundava. Em Roma isso tem um sentido especial: a festa continuou com os bárbaros às portas; e ela continua agora que os bárbaros já chegaram há tempos. É uma prova de decadência? Ou de sabedoria?
Aos olhos dos engajados (como Stefania, no filme), Jep talvez pareça desprezivelmente cínico. Mas ele é o último dos românticos, que vive como se a única resposta honesta ao vazio do mundo fosse a fragilidade da beleza: a beleza de Roma ou a de um terno perfeitamente cortado, tanto faz.
São desculpas pela futilidade? Talvez. Mas, cuidado, uma vida fútil poderia ser a única maneira de não mascarar a futilidade da vida. Qual é o efeito moral certo do "lembre-se da morte"? Ou melhor, qual é o melhor jeito de se lembrar da morte? Uma austeridade sisuda ou, ao contrário, o difícil exercício de não levar a vida a sério?
Criança, nos anos 1950, assisti a "O Salário do Medo", de Clouzot. Ainda hoje me lembro que o piloto (Mario?) de um dos caminhões de dinamite, fadados a explodir, enquanto se barbeava, dizia que, se ele tiver que morrer, queria ao menos ter uma aparência decente.
"A Grande Beleza" é um dos nove filmes pré-selecionados para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Torço por ele.
Para os amigos filósofos, uma sugestão (já antiga): "Aesthetics and Ethics: Essays at the Intersection", de J. Levinson (Cambridge).
Nenhum comentário:
Postar um comentário