A discussão em torno da ação dos black blocs tem sido frequentemente enviesada, senão deturpada, por não estar focada no uso que tem sido dado à violência por esse grupo utilizada e nas consequências dela derivadas. Não se trata de uma manifestação “espontânea”, nem da ação de bandos desorganizados, mas de um tipo de intervenção que se define por um propósito claramente político.
Pesquisas sobre o que dizem os que assim agem terminam por apenas arranhar superficialmente o problema, porque os seus agentes não são meros indivíduos, mas membros de uma organização que usa método em suas ações. Suas falas individuais, neste sentido, são necessariamente limitadas, senão encobridoras, na medida em que as suas ações de muito transcendem manifestações individuais.
Propugnar, também, por um diálogo com eles como se fossem a expressão de um descontentamento “social” significa tirar a questão de seu ponto central. A violência é avessa a qualquer diálogo, quando mais empreendido por grupos que se chegam a declarar alguma proposta é com o intuito de que ela seja necessariamente inexequível. Por exemplo, a extinção do “lucro”, a sociedade de “mercado” e assim por diante.
Note-se que tais grupos se caracterizam por ações metódicas e organizadas. São como se fossem células que respondem a um comando, dotadas de extrema mobilidade e que conseguem frequentemente distrair a atenção policial. Atrair a atenção sobre um ato determinado de vandalismo e depredação, com o objetivo de empreender outro muito maior em outro local.
Agem quando de manifestações pacíficas, fazendo com que essas sempre terminem em violência, visualizada com grande estardalhaço pela mídia. A finalidade reside em ocupar a cena pública. Quanto maior for o impacto televisivo, maior será o seu “ganho”, pois tais imagens se propagarão com força por todo o país e, mesmo, para além dele. Para quem não gosta do crescimento e da competitividade internacional do país, o “ganho” terá ainda um “reconhecimento” extra. Fora de nossas fronteiras, tais imagens adquirem o estatuto de uma manifestação “popular”, como se o país estivesse à beira de um problema institucional sério.
As jornadas de junho foram uma impressionante manifestação de cidadania, com mais de um milhão de pessoas nas ruas, clamando contra a corrupção e a má qualidade dos serviços públicos, com foco, em um primeiro momento, na mobilidade urbana. As pessoas, com toda a razão, estão cansadas de pagar altos impostos, tendo como “retribuição” andar de pé em ônibus, apertadas e em péssimas condições. O transporte se torna um calvário. Filas em postos de saúde e em hospitais, com atendimentos sofríveis, junto com o baixo nível da educação pública, configuram um quadro lamentável: a feia pintura de nosso país.
O exercício da autonomia expresso em tais manifestações, não obedecendo a qualquer orientação partidária, mostrou um outro país possível, alerta com os desmandos vigentes, não aceitando nenhum tipo de instrumentalização. Naquele momento era como se o país, surpreso, estivesse vendo desfilar uma banda da liberdade e da indignação.
Contudo, essa irrupção do novo assustou. Assustou aqueles que até então dominavam as ruas ou dela procuravam ter o monopólio, como os diferentes partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais organizados, tendo, então, a intenção de se apropriarem deste sopro de autonomia. A heteronomia entrou na pauta. O resultado foram “greves” e “manifestações” que terminaram em um grande fiasco, expondo a completa dissociação entre a tentativa de manipulação e a legítima indignação das ruas.
Neste contexto, a ação dos ditos “vândalos” passou a ter um maior protagonismo, atuando em qualquer tipo de manifestação, relegando os demais a uma posição secundária. Na verdade, houve um processo de estranhamento. Ou seja, os manifestantes autônomos e indignados não mais se reconheceram naqueles protagonistas mascarados. A violência exposta não era um espelho seu.
O resultado foi imediato. O refluxo completo das manifestações autônomas e legítimas. A expectativa nascida quando das Jornadas de Junho foi progressivamente minguando. Por enquanto, pode-se dizer que desapareceu, embora possa ressurgir em outro contexto. A violência enxotou os indignados da rua.
Logo, o efeito objetivo dos agentes da violência, os black blocs ou outros nomes que se queira dar, foi o esvaziamento das manifestações autônomas e, mais do que isto, de suas bandeiras. Expulsaram da rua as bandeiras contra a corrupção, por um melhor serviço público e menos impostos. Eis a verdadeira consequência de suas ações. Ou melhor, eis o seu verdadeiro objetivo. A quem interessa isto?
Curiosamente, os que se dizem “anarquistas”, em tese os defensores da autonomia e da liberdade, são os que procuram diretamente inviabilizar toda manifestação livre e autônoma. Nada têm eles de anarquistas no sentido estrito da palavra, sendo meros representantes de uma esquerda que usa irrestritamente da violência, segundo suas próprias conveniências políticas.
Observe-se que muitas agremiações que participaram das Jornadas de Junho, como o Movimento do Passe Livre, e outras posteriores de certos sindicatos de professores, nutrem simpatia por esses “vândalos”, com se sua causa fosse a mesma, apesar de seus meios divergirem. Comportam-se como “companheiros”. Companheiros de quê precisamente? Da desmobilização popular? Do abandono das bandeiras contra a corrução, o desvio de recursos públicos e a péssima qualidade dos serviços públicos? Da desresponsabilização dos seus responsáveis?
Expressão disto é o fato, politicamente inquietante, de que bradam contra a “criminalização dos movimentos sociais”. Traduzindo: a violência deveria ser permitida e defendida, pois os seus agentes sustentam uma “causa social”. O seu objetivo consiste em deixar a impunidade reinar e as instituições democráticas se enfraquecerem.
04 de novembro de 2013
Denis lerrer Rosenfield, O Globo
Pesquisas sobre o que dizem os que assim agem terminam por apenas arranhar superficialmente o problema, porque os seus agentes não são meros indivíduos, mas membros de uma organização que usa método em suas ações. Suas falas individuais, neste sentido, são necessariamente limitadas, senão encobridoras, na medida em que as suas ações de muito transcendem manifestações individuais.
Propugnar, também, por um diálogo com eles como se fossem a expressão de um descontentamento “social” significa tirar a questão de seu ponto central. A violência é avessa a qualquer diálogo, quando mais empreendido por grupos que se chegam a declarar alguma proposta é com o intuito de que ela seja necessariamente inexequível. Por exemplo, a extinção do “lucro”, a sociedade de “mercado” e assim por diante.
Note-se que tais grupos se caracterizam por ações metódicas e organizadas. São como se fossem células que respondem a um comando, dotadas de extrema mobilidade e que conseguem frequentemente distrair a atenção policial. Atrair a atenção sobre um ato determinado de vandalismo e depredação, com o objetivo de empreender outro muito maior em outro local.
Agem quando de manifestações pacíficas, fazendo com que essas sempre terminem em violência, visualizada com grande estardalhaço pela mídia. A finalidade reside em ocupar a cena pública. Quanto maior for o impacto televisivo, maior será o seu “ganho”, pois tais imagens se propagarão com força por todo o país e, mesmo, para além dele. Para quem não gosta do crescimento e da competitividade internacional do país, o “ganho” terá ainda um “reconhecimento” extra. Fora de nossas fronteiras, tais imagens adquirem o estatuto de uma manifestação “popular”, como se o país estivesse à beira de um problema institucional sério.
As jornadas de junho foram uma impressionante manifestação de cidadania, com mais de um milhão de pessoas nas ruas, clamando contra a corrupção e a má qualidade dos serviços públicos, com foco, em um primeiro momento, na mobilidade urbana. As pessoas, com toda a razão, estão cansadas de pagar altos impostos, tendo como “retribuição” andar de pé em ônibus, apertadas e em péssimas condições. O transporte se torna um calvário. Filas em postos de saúde e em hospitais, com atendimentos sofríveis, junto com o baixo nível da educação pública, configuram um quadro lamentável: a feia pintura de nosso país.
O exercício da autonomia expresso em tais manifestações, não obedecendo a qualquer orientação partidária, mostrou um outro país possível, alerta com os desmandos vigentes, não aceitando nenhum tipo de instrumentalização. Naquele momento era como se o país, surpreso, estivesse vendo desfilar uma banda da liberdade e da indignação.
Contudo, essa irrupção do novo assustou. Assustou aqueles que até então dominavam as ruas ou dela procuravam ter o monopólio, como os diferentes partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais organizados, tendo, então, a intenção de se apropriarem deste sopro de autonomia. A heteronomia entrou na pauta. O resultado foram “greves” e “manifestações” que terminaram em um grande fiasco, expondo a completa dissociação entre a tentativa de manipulação e a legítima indignação das ruas.
Neste contexto, a ação dos ditos “vândalos” passou a ter um maior protagonismo, atuando em qualquer tipo de manifestação, relegando os demais a uma posição secundária. Na verdade, houve um processo de estranhamento. Ou seja, os manifestantes autônomos e indignados não mais se reconheceram naqueles protagonistas mascarados. A violência exposta não era um espelho seu.
O resultado foi imediato. O refluxo completo das manifestações autônomas e legítimas. A expectativa nascida quando das Jornadas de Junho foi progressivamente minguando. Por enquanto, pode-se dizer que desapareceu, embora possa ressurgir em outro contexto. A violência enxotou os indignados da rua.
Logo, o efeito objetivo dos agentes da violência, os black blocs ou outros nomes que se queira dar, foi o esvaziamento das manifestações autônomas e, mais do que isto, de suas bandeiras. Expulsaram da rua as bandeiras contra a corrupção, por um melhor serviço público e menos impostos. Eis a verdadeira consequência de suas ações. Ou melhor, eis o seu verdadeiro objetivo. A quem interessa isto?
Curiosamente, os que se dizem “anarquistas”, em tese os defensores da autonomia e da liberdade, são os que procuram diretamente inviabilizar toda manifestação livre e autônoma. Nada têm eles de anarquistas no sentido estrito da palavra, sendo meros representantes de uma esquerda que usa irrestritamente da violência, segundo suas próprias conveniências políticas.
Observe-se que muitas agremiações que participaram das Jornadas de Junho, como o Movimento do Passe Livre, e outras posteriores de certos sindicatos de professores, nutrem simpatia por esses “vândalos”, com se sua causa fosse a mesma, apesar de seus meios divergirem. Comportam-se como “companheiros”. Companheiros de quê precisamente? Da desmobilização popular? Do abandono das bandeiras contra a corrução, o desvio de recursos públicos e a péssima qualidade dos serviços públicos? Da desresponsabilização dos seus responsáveis?
Expressão disto é o fato, politicamente inquietante, de que bradam contra a “criminalização dos movimentos sociais”. Traduzindo: a violência deveria ser permitida e defendida, pois os seus agentes sustentam uma “causa social”. O seu objetivo consiste em deixar a impunidade reinar e as instituições democráticas se enfraquecerem.
04 de novembro de 2013
Denis lerrer Rosenfield, O Globo
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