Devido a condições especiais de relevo e correntes marítimas, o litoral da Califórnia é rico em diversidade marinha. Com a corrida do ouro, no final do século XIX, uma colônia de imigrantes chineses, e depois italianos, se estabeleceu na região de Monterey, passando a viver da pesca de sardinhas. Em 1902, um norueguês montou a primeira fábrica de latas, resolvendo o problema da perecibilidade do produto e ampliando consideravelmente o mercado consumidor.
Durante as duas guerras mundiais, as sardinhas de Monterey aplacaram a fome dos exércitos aliados com suas latinhas práticas e ricas em proteína. Com a demanda em alta, dezenas de fábricas foram abertas, milhares de pessoas migraram para a região para trabalhar na pesca e no processamento do produto e uma nova tecnologia de barcos foi desenvolvida para capturar os imensos cardumes da região. Em 1946 chegaram a ser pescadas 142 mil toneladas de sardinhas na região.
ESCASSEZ – Em 1953, subitamente, as sardinhas desapareceram. Os loucos anos anteriores não respeitaram o tempo de reprodução da espécie, levando as fábricas à falência e milhares de pessoas ao desemprego. A decadência da região de Monterey perdurou por décadas, até o turismo surgir como opção, já no final do século XX. No antigo cais da cidade, as antigas fábricas de sardinhas deram lugar a restaurantes e a um imenso aquário criado por David Packard, um dos criadores da HP, para celebrar a importância da diversidade marinha. Sinal dos tempos.
O caso da indústria de sardinhas no litoral da Califórnia é um exemplo clássico da “tragédia dos comuns”, uma expressão cunhada pelo economista britânico William Forster Lloyd no século XIX e, muito tempo depois, em 1968, popularizado pelo filósofo e ecologista Garrett Hardin: recursos naturais à disposição de todos tendem a ser extintos porque não há limites à ganância humana. Na lógica do cada um por si, da maximização do lucro individual, acabamos matando nossas galinhas dos ovos de ouro. Em outras palavras, um recurso de uso coletivo está fadado à escassez se não houver regras claras de propriedade ou de regulação que limitem a sanha individualista e garantam a sua exploração sustentável ao tempo.
TRAGÉDIA DOS INCOMUNS – No Brasil do início do século XXI, porém, estamos sujeitos a outro problema, que eu chamarei aqui de “tragédia dos incomuns”: um bem de uso coletivo (os recursos públicos) vem sendo explorado de modo desenfreado por políticos e grupos de pressão (os incomuns) que agem visando estritamente seu interesse particular em detrimento da coletividade. E assim estamos avançando de modo acelerado rumo a uma tragédia social de escassez e crise, onde em breve não teremos recursos para mais nada.
Quem acompanha este blog é testemunha de como, no último ano, venho chamando a atenção para diversos aspectos dessa superexploração dos recursos públicos pelos incomuns da política brasileira. De subsídios governamentais a regras especiais de imposto de renda para setores com grande poder de pressão, passando por políticas de incentivo sem qualquer avaliação de sua eficácia, nosso orçamento público vem sendo comprometido pelo apetite voraz de quem só enxerga seu benefício privado.
EMENDA DE JUCÁ – Para demonstrar como nossos políticos incomuns estão levando o país à tragédia de modo sorrateiro, veja o caso da Emenda Constitucional nº 98/2017, promulgada pelo Congresso no final do ano passado. O objetivo dessa emenda foi possibilitar a qualquer pessoa que tenha participado da criação dos Estados de Roraima e Amapá ser admitido, sem concurso público, como servidor da União.
A nova EC nº 98, por sua vez, abriu a maior de todas as janelas. A proposta foi capitaneada pelo senador Romero Jucá (MDB) e faz um agrado ao seu curral eleitoral à custa de todos os brasileiros. Em tempos de Lava Jato e com os velhos caciques políticos na berlinda, o senador de Roraima agiu estrategicamente visando o benefício próprio para angariar milhares de votos oferecendo a seus eleitores a possibilidade de se tornarem servidores públicos federais, com estabilidade no emprego e salários acima do mercado.
04 de agosto de 2018
Bruno Carazza
Folha
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