"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

O PT E O JUDICIÁRIO: A CRIATURA VOLTOU-SE CONTRA O CRIADOR?

A tese de que foram os governos do PT que lançaram as bases da autonomia e protagonismo das instituições de controle lato senso (Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas) incorre em erro argumentativo sério. Essas características são o produto da delegação ampla de poderes a tais instituições ocorrida na Constituinte de 1987-88, na qual o PT detinha 2,9% dos assentos.

É acurada a conclusão do então procurador-geral da República ao afirmar, quando a nova Carta foi promulgada, que "poucos textos constitucionais terão confiado tanto no Poder Judiciário e nele, em particular, o Supremo Tribunal Federal". O Ministério Público converteu-se "no mais poderoso do mundo, após o italiano," como afirmou o cientista político especializado no tema Carlo Guarnieri (Universitá di Bologna).

Que fatores explicam tal delegação de poderes? Em primeiro lugar, o fato de que a Constituinte estava fragmentada politicamente: não havia setor hegemônico. O próprio presidente da República —historicamente o formador da agenda— não teve protagonismo, salvo quanto a questões pontuais. Como mostra uma extensa literatura, face à incerteza em relação ao futuro, os atores, ao criar regras, delegam amplos poderes que lhes garantam proteção.

Essa delegação foi articulada por uma coalizão de setores liberais e da esquerda que formavam a oposição ao regime militar. Para os primeiros, o fundamental era o controle do abuso do Poder Executivo. Para o segundo, os direitos e garantias individuais eram essenciais e sua agenda refletia o arbítrio e perseguição de que foram vítimas.

A extensa delegação também imbricava-se em um dilema de segunda ordem. Havia virtual unanimidade nos setores de alto escalão da burocracia pública e juristas, desde a década de 1950 —vide os trabalhos da Comissão de Reforma Constitucional de 1956—, de que era necessário fortalecer o Poder Executivo na área administrativa, orçamentária e legislativa. Como o país saía de um regime ditatorial, forte delegação de poder às instituições de controle se fazia ainda mais necessária para controlá-lo: "para um cachorro grande, uma coleira forte".

O que permitiu a consolidação e sustentabilidade dos fins perseguidos pelo desenho institucional foi a robusta competição e alternância política ocorrida nos últimos 30 anos. Como um dos polos dessa competição, o PT contribuiu certamente para lhes dar sustentação (iniciativas recentes —por exemplo, a Lei de Organizações Criminosas— serão objeto de nova coluna). Recentemente a ação dessas instituições estendeu-se do Poder Executivo ao Legislativo.

Foi, assim, a democracia —e o pluralismo— que permitiu a autonomização das instituições de controle, não partidos ou governantes.

29 de janeiro de 2018
Marcus André Melo, Folha de SP

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