A ‘esquerda’ lulista escolheu o capitalismo selvagem do consumo privado, do crédito popular, do cartão magnético, das Casas Bahia e do Magazine Luiza
Os três desembargadores do TRF-4 serviram-se do tríplex na Praia de Astúrias, no Guarujá, para contar uma história sobre o Brasil. Nos seus votos unânimes de condenação de Lula, eles discorreram sobre poder e patrimônio: a tenda do capitalismo de compadrio na qual convivem políticos e empresários. O futuro julgamento do caso do sítio de Atibaia, que também “não é do Lula”, provavelmente funcionará para o mesmo fim. Contudo, tríplex e sítio abrem-nos uma janela para outra paisagem, outra história e outro crime — um crime que só existe na esfera da política.
“Quem está no banco do réu é o Lula, mas quem foi condenado é o povo brasileiro com o golpe que eles deram”, reclamou Lula na Praça da República, perante duas dúzias de sindicalistas, reiterando o hábito deplorável de identificar-se com o “povo brasileiro”. E prosseguiu, usando sua fórmula predileta: “Lula é apenas um homem de carne e osso (nota minha: modéstia!). Podem prender o Lula, mas as ideias já estão colocadas na cabeça da sociedade brasileira. As pessoas já sabem que é gostoso comer bem, morar bem, viajar de avião, comprar carro novo, ter casa com televisão e computador.” Tríplex no Guarujá, sítio em Atibaia — é “gostoso” isso?
O paradoxo não terá escapado à percepção pública. Sob o governo Lula e a tríplice aliança PT-PMDB-PP, a Petrobras foi saqueada em R$ 88,6 bilhões, segundo cálculos da própria estatal, em balanço divulgado (e depois removido) em janeiro de 2015. Qual foi a contrapartida patrimonial do “garantidor geral do esquema”, como os desembargadores qualificaram Lula, se dermos como certo que o ex-presidente recebeu como presentes tanto o tríplex quanto o sítio? O primeiro está avaliado em menos de R$ 1,2 milhão. O segundo foi adquirido, em 2010, por R$ 1,5 milhão, e sua reforma custou R$ 700 mil, segundo planilha do departamento de propina da Odebrecht. São valores insignificantes, diante da operação de rapina da Petrobras.
Corrupção é corrupção, os valores são secundários. Mas o cotejo evidencia que o sonho de Lula era perenizar seu poder político e seu prestígio pessoal, não acumular patrimônio notável. Imóvel de novo-rico em edifício de estilo mais que duvidoso, o tríplex situa-se em praia atingida por vazamento de esgotos. Já o sítio de Atibaia, com seu lago, seus marrecos, seus pedalinhos e a improvável estátua de um Cristo Redentor, pertence à categoria das casas de campo da alta classe média paulista. “Gostoso”, segundo Lula, é trotar numa praia urbana com os netos, assar churrascos e derrubar cervejas em rodas de puxa-sacos do domingão. Os seus sonhos suburbanos converteram-se, desde 2003, na fonte de inspiração de um programa de governo. Até certo ponto, o Brasil foi reinventado a partir delas.
Releia o trecho programático do discurso da Praça da República. “Morar bem”, a laje e o puxadinho, “viajar de avião”, a CVC de janeiro, “comprar carro novo”, o Onix com caixas de som no compartimento traseiro, “ter casa com televisão”, a de plasma e tela grande — o “gostoso” do lulismo concentra-se no consumo privado, uma refração popular da receita tríplex mais sítio. Durante 13 anos, os oito de Lula e os cinco de Dilma, que abrangem o mais longo ciclo de expansão das economias emergentes, entre 2003 e 2010, o Brasil aplicou seus recursos naquilo que é “gostoso”. Quando as rendas extraordinárias se esgotaram, a Nova Matriz Macroeconômica dilmista conferiu um impulso derradeiro ao programa “gostoso”, catapultando a dívida pública às alturas de 74% do PIB e, de quebra, falindo a Petrobras, a Eletrobras e a Caixa Econômica.
O Brasil do lulismo está em todos os lugares, da periferia paulistana à Baixada Fluminense, passando pelos povoados de praia nordestinos, nas paisagens em alta definição de semianalfabetos com smartphones, puxadinhos sem massa corrida adornados de parabólicas, montanhas de lixo plástico e latinhas de cerveja arrastadas pelas chuvas, correntes de esgotos infiltrando-se pelos córregos — tudo sob a zoeira nauseante de igrejas barulhentas e o funk-pancadão de sentenças abomináveis. O capital social não é “gostoso” — ao menos no horizonte imediato da próxima eleição. Nos anos dourados que não voltam mais, nos esquecemos da escola, da praça, do parque, da calçada, da quadra pública, do saneamento básico, do ônibus, do metrô. A “esquerda” lulista escolheu o capitalismo selvagem do consumo privado, do crédito popular, do cartão magnético, das Casas Bahia e do Magazine Luiza.
Leandro Paulsen, o revisor da turma do TRF-4, classificou os atos de Lula como uma “imoralidade gravíssima”. A corrupção deve, certamente, experimentar a devida punição. Mas que ninguém se iluda. O tríplex, o sítio e mesmo a montanha de bilhões de reais extraída das arcas da Petrobras não formam a alma do lulismo nem o crime principal. O crime mais relevante, que não será identificado por um tribunal ou descrito na linguagem do Código Penal, são “as ideias” que “já estão colocadas na cabeça da sociedade brasileira”. Lula caminha rumo ao ocaso. Sua herança permanece, como ética e estética da destruição.
29 de janeiro de 2018
Demétrio Magnoli é sociólogo
Os três desembargadores do TRF-4 serviram-se do tríplex na Praia de Astúrias, no Guarujá, para contar uma história sobre o Brasil. Nos seus votos unânimes de condenação de Lula, eles discorreram sobre poder e patrimônio: a tenda do capitalismo de compadrio na qual convivem políticos e empresários. O futuro julgamento do caso do sítio de Atibaia, que também “não é do Lula”, provavelmente funcionará para o mesmo fim. Contudo, tríplex e sítio abrem-nos uma janela para outra paisagem, outra história e outro crime — um crime que só existe na esfera da política.
“Quem está no banco do réu é o Lula, mas quem foi condenado é o povo brasileiro com o golpe que eles deram”, reclamou Lula na Praça da República, perante duas dúzias de sindicalistas, reiterando o hábito deplorável de identificar-se com o “povo brasileiro”. E prosseguiu, usando sua fórmula predileta: “Lula é apenas um homem de carne e osso (nota minha: modéstia!). Podem prender o Lula, mas as ideias já estão colocadas na cabeça da sociedade brasileira. As pessoas já sabem que é gostoso comer bem, morar bem, viajar de avião, comprar carro novo, ter casa com televisão e computador.” Tríplex no Guarujá, sítio em Atibaia — é “gostoso” isso?
O paradoxo não terá escapado à percepção pública. Sob o governo Lula e a tríplice aliança PT-PMDB-PP, a Petrobras foi saqueada em R$ 88,6 bilhões, segundo cálculos da própria estatal, em balanço divulgado (e depois removido) em janeiro de 2015. Qual foi a contrapartida patrimonial do “garantidor geral do esquema”, como os desembargadores qualificaram Lula, se dermos como certo que o ex-presidente recebeu como presentes tanto o tríplex quanto o sítio? O primeiro está avaliado em menos de R$ 1,2 milhão. O segundo foi adquirido, em 2010, por R$ 1,5 milhão, e sua reforma custou R$ 700 mil, segundo planilha do departamento de propina da Odebrecht. São valores insignificantes, diante da operação de rapina da Petrobras.
Corrupção é corrupção, os valores são secundários. Mas o cotejo evidencia que o sonho de Lula era perenizar seu poder político e seu prestígio pessoal, não acumular patrimônio notável. Imóvel de novo-rico em edifício de estilo mais que duvidoso, o tríplex situa-se em praia atingida por vazamento de esgotos. Já o sítio de Atibaia, com seu lago, seus marrecos, seus pedalinhos e a improvável estátua de um Cristo Redentor, pertence à categoria das casas de campo da alta classe média paulista. “Gostoso”, segundo Lula, é trotar numa praia urbana com os netos, assar churrascos e derrubar cervejas em rodas de puxa-sacos do domingão. Os seus sonhos suburbanos converteram-se, desde 2003, na fonte de inspiração de um programa de governo. Até certo ponto, o Brasil foi reinventado a partir delas.
Releia o trecho programático do discurso da Praça da República. “Morar bem”, a laje e o puxadinho, “viajar de avião”, a CVC de janeiro, “comprar carro novo”, o Onix com caixas de som no compartimento traseiro, “ter casa com televisão”, a de plasma e tela grande — o “gostoso” do lulismo concentra-se no consumo privado, uma refração popular da receita tríplex mais sítio. Durante 13 anos, os oito de Lula e os cinco de Dilma, que abrangem o mais longo ciclo de expansão das economias emergentes, entre 2003 e 2010, o Brasil aplicou seus recursos naquilo que é “gostoso”. Quando as rendas extraordinárias se esgotaram, a Nova Matriz Macroeconômica dilmista conferiu um impulso derradeiro ao programa “gostoso”, catapultando a dívida pública às alturas de 74% do PIB e, de quebra, falindo a Petrobras, a Eletrobras e a Caixa Econômica.
O Brasil do lulismo está em todos os lugares, da periferia paulistana à Baixada Fluminense, passando pelos povoados de praia nordestinos, nas paisagens em alta definição de semianalfabetos com smartphones, puxadinhos sem massa corrida adornados de parabólicas, montanhas de lixo plástico e latinhas de cerveja arrastadas pelas chuvas, correntes de esgotos infiltrando-se pelos córregos — tudo sob a zoeira nauseante de igrejas barulhentas e o funk-pancadão de sentenças abomináveis. O capital social não é “gostoso” — ao menos no horizonte imediato da próxima eleição. Nos anos dourados que não voltam mais, nos esquecemos da escola, da praça, do parque, da calçada, da quadra pública, do saneamento básico, do ônibus, do metrô. A “esquerda” lulista escolheu o capitalismo selvagem do consumo privado, do crédito popular, do cartão magnético, das Casas Bahia e do Magazine Luiza.
Leandro Paulsen, o revisor da turma do TRF-4, classificou os atos de Lula como uma “imoralidade gravíssima”. A corrupção deve, certamente, experimentar a devida punição. Mas que ninguém se iluda. O tríplex, o sítio e mesmo a montanha de bilhões de reais extraída das arcas da Petrobras não formam a alma do lulismo nem o crime principal. O crime mais relevante, que não será identificado por um tribunal ou descrito na linguagem do Código Penal, são “as ideias” que “já estão colocadas na cabeça da sociedade brasileira”. Lula caminha rumo ao ocaso. Sua herança permanece, como ética e estética da destruição.
29 de janeiro de 2018
Demétrio Magnoli é sociólogo
O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário