O tema assédio está na moda. Entre os extremos, a vida segue seu curso, às vezes, dando a impressão de que poderá se tornar irrespirável em algum momento.
Num lado extremo dessa realidade das relações sexuais, homens violentos (ou mulheres violentas, em bastante menor número) que tornam a vida no trabalho ou nos espaços de lazer um inferno para suas vítimas. No outro extremo, o sentimento de risco (real) que muitos homens sentem de que a simples demonstração de desejo por uma mulher poderá ser tachada de assédio.
Ou, pior, de que, mesmo tendo tido seu consentimento, ela poderá, posteriormente, dizer que o "retirou", ou que o cara mentiu sobre ela ter dado o consentimento, ou que a entendeu errado e que, portanto, o suposto "date" foi estupro.
É justamente na área privada do consentimento que residem algumas das paranoias contemporâneas que ameaçam transformar as relações cotidianas entre homens e mulheres num tédio contínuo preenchido por pessoas civilizadas, limpinhas e imóveis. Mas, como tudo mais no mundo contemporâneo, principalmente em se tratando de relações humanas e serviços, o espírito do Vale do Silício oferece uma solução.
Os holandeses criaram um aplicativo chamado Legal Fling, que visa garantir que pessoas (principalmente, homens) se defendam da acusação de assédio ou estupro quando houve consentimento prévio para o ato sexual ou a abordagem.
A expressão em inglês "fling" é ambivalente. Entre o substantivo, que nos remete à ideia de um momento de diversão, gostoso, e o verbo, que pode significar um arremesso violento de algo, ou seja, algum tipo de ato com risco de violência, reside a realidade ambivalente do tema.
"Legal fling" seria, portanto, essa ambivalência tornada "legítima", levando essa arriscada ambivalência para o universo "garantido" pelo novo oráculo, a tecnologia blockchain (base de registro que funciona como prova de um acordo ou transação). Será verdade um aplicativo assim?
Nem todos concordam que o aplicativo ofereça de fato a segurança absoluta contra acusações de que consentimentos supostamente dados se transformem em acusações supostamente falsas. O "supostamente" aqui é essencial.
Voltamos ao caráter privado do tema. É difícil saber o que acontece entre quatro paredes. O combate à violência sexual tem razão em se preocupar com os abusos em geral. A crítica feita à tentativa de judicializar as relações entre homem e mulher também tem razão quando aponta a cultura da paranoia como fato dado no mundo presente.
É possível um "meio-termo" ou "bom senso" nesse assunto? Não creio. O mundo vai, pouco a pouco, sucumbindo à ambivalência criada pela modernização, na sua contínua tentativa de organizar e limpar tudo.
Zygmunt Bauman (1925-2017) acertou em cheio no seu "Modernidade e Ambivalência" ao apontar para esse caráter de "jardineiro" que o Estado moderno (e a sociedade como um todo) tem em querer fazer do mundo um "jardim do bem".
O aplicativo funciona basicamente assim: você preenche um cadastro onde afirma aceitar ou não sair e fazer sexo com fulano, depois detalha o que gosta, tipo, sei lá, sexo anal, no carro, oral, se gosta ou não de apanhar, se gosta ou não de ser tratada ou tratado de forma humilhante, se gosta de ser chamado ou chamada por termos como "cachorra", "vadia", "filho da puta" e por aí vai.
Sei. Pensar numa lista assim parece ridículo. Mas, se você tiver como princípio de entendimento do mundo contemporâneo o fato de que caminhamos para um contrato social baseado no ridículo como forma de vínculo, não estranhará tanto assim um aplicativo como esse.
O aplicativo lançará então esse "contrato" numa plataforma blockchain e, portanto, você não terá como impedir que a "humanidade em cadeia" tenha ciência de que, sim, você gosta de apanhar no sexo ou que você, sim, aceitou ser amante do seu chefe, quem sabe, em troca de uma promoção no trabalho.
O que salvaguardará juridicamente a legitimidade do ato sexual em questão será de uma ordem análoga à de uma moeda virtual, como o bitcoin. Neste caso, a "moeda" é a exposição pública da intimidade, em nome da segurança de cada cidadão envolvido em atos sexuais.
29 de janeiro de 2018
Luiz Felipe Pondé, Folha de SP
Num lado extremo dessa realidade das relações sexuais, homens violentos (ou mulheres violentas, em bastante menor número) que tornam a vida no trabalho ou nos espaços de lazer um inferno para suas vítimas. No outro extremo, o sentimento de risco (real) que muitos homens sentem de que a simples demonstração de desejo por uma mulher poderá ser tachada de assédio.
Ou, pior, de que, mesmo tendo tido seu consentimento, ela poderá, posteriormente, dizer que o "retirou", ou que o cara mentiu sobre ela ter dado o consentimento, ou que a entendeu errado e que, portanto, o suposto "date" foi estupro.
É justamente na área privada do consentimento que residem algumas das paranoias contemporâneas que ameaçam transformar as relações cotidianas entre homens e mulheres num tédio contínuo preenchido por pessoas civilizadas, limpinhas e imóveis. Mas, como tudo mais no mundo contemporâneo, principalmente em se tratando de relações humanas e serviços, o espírito do Vale do Silício oferece uma solução.
Os holandeses criaram um aplicativo chamado Legal Fling, que visa garantir que pessoas (principalmente, homens) se defendam da acusação de assédio ou estupro quando houve consentimento prévio para o ato sexual ou a abordagem.
A expressão em inglês "fling" é ambivalente. Entre o substantivo, que nos remete à ideia de um momento de diversão, gostoso, e o verbo, que pode significar um arremesso violento de algo, ou seja, algum tipo de ato com risco de violência, reside a realidade ambivalente do tema.
"Legal fling" seria, portanto, essa ambivalência tornada "legítima", levando essa arriscada ambivalência para o universo "garantido" pelo novo oráculo, a tecnologia blockchain (base de registro que funciona como prova de um acordo ou transação). Será verdade um aplicativo assim?
Nem todos concordam que o aplicativo ofereça de fato a segurança absoluta contra acusações de que consentimentos supostamente dados se transformem em acusações supostamente falsas. O "supostamente" aqui é essencial.
Voltamos ao caráter privado do tema. É difícil saber o que acontece entre quatro paredes. O combate à violência sexual tem razão em se preocupar com os abusos em geral. A crítica feita à tentativa de judicializar as relações entre homem e mulher também tem razão quando aponta a cultura da paranoia como fato dado no mundo presente.
É possível um "meio-termo" ou "bom senso" nesse assunto? Não creio. O mundo vai, pouco a pouco, sucumbindo à ambivalência criada pela modernização, na sua contínua tentativa de organizar e limpar tudo.
Zygmunt Bauman (1925-2017) acertou em cheio no seu "Modernidade e Ambivalência" ao apontar para esse caráter de "jardineiro" que o Estado moderno (e a sociedade como um todo) tem em querer fazer do mundo um "jardim do bem".
O aplicativo funciona basicamente assim: você preenche um cadastro onde afirma aceitar ou não sair e fazer sexo com fulano, depois detalha o que gosta, tipo, sei lá, sexo anal, no carro, oral, se gosta ou não de apanhar, se gosta ou não de ser tratada ou tratado de forma humilhante, se gosta de ser chamado ou chamada por termos como "cachorra", "vadia", "filho da puta" e por aí vai.
Sei. Pensar numa lista assim parece ridículo. Mas, se você tiver como princípio de entendimento do mundo contemporâneo o fato de que caminhamos para um contrato social baseado no ridículo como forma de vínculo, não estranhará tanto assim um aplicativo como esse.
O aplicativo lançará então esse "contrato" numa plataforma blockchain e, portanto, você não terá como impedir que a "humanidade em cadeia" tenha ciência de que, sim, você gosta de apanhar no sexo ou que você, sim, aceitou ser amante do seu chefe, quem sabe, em troca de uma promoção no trabalho.
O que salvaguardará juridicamente a legitimidade do ato sexual em questão será de uma ordem análoga à de uma moeda virtual, como o bitcoin. Neste caso, a "moeda" é a exposição pública da intimidade, em nome da segurança de cada cidadão envolvido em atos sexuais.
29 de janeiro de 2018
Luiz Felipe Pondé, Folha de SP
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