Era linda a nossa árvore, um pinheiro de verdade, que escolhíamos e enfeitávamos juntos. Ali, insisto, o menino não morrera, permanecia qual um milagre
Na véspera de Natal, grupos saíram de madrugada para doar comida e roupas aos sem-teto que vivem nas ruas do Centro do Rio. Perdi meu pai cedo, aos 9 anos — dias depois de completar 9 anos. Embora já fosse idade para memória, lembro-me de pouco. Lembro-me pouco de pouco. E é mesmo provável que esses poucos nem sequer isso sejam; que minhas recordações sejam terceirizadas, extraídas das fotos. Precisei me tornar adulto para compreender e admitir esse bloqueio. Um embaraço — obstrução — que é tão parte minha quanto a saudade. Sinto saudade de meu pai — e de ter pai. Sofri, sofro ainda, a angústia — espécie de culpa — por intuir que essa segunda fosse maior, mais legítima, que a primeira.
Havia a questão perturbadora: como posso sentir falta se tenho dúvida sobre se lembro dele? A questão se transformaria — pai que hoje sou: como posso falar para minha filha do avô se me falta a certeza de que me recordo dele? É o progresso da corrupção da intimidade: da desconfiança de que me enganava à de que engano. A questão transforma-se sempre — transtorna-se, ramifica-se. Sou um filho fingido, um pai fingidor? E poderia ser diferente? Poderei? Será fé excessiva crer que minha pequena possa me curar do cinismo afetivo em que me refugiei? Será sinal de esperança esse de que só hoje — pai — vim a temer a morte, a minha? Temeria a morte papai? Terá morrido sem temê-la? Terá lhe faltado tempo até para o medo, meu Deus?
Por anos fantasiei uma súbita recuperação da memória, especulei sobre gatilhos que provocariam o destravar das lembranças, e só fui me apaziguar quando, derrotado desde sempre, enfrentei o luto de que aquilo que desejava reconstituir — a vida de papai — era ouvi-lo me contar de nós dois. Meu pai morreu duas vezes. A última, não faz muito, quando enterrei o moleque que devo ter sido; aquele que meu velho, morto tão jovem, jamais poderia confirmar — chancelar. Não era a minha memória o que sonhava recompor; mas a dele comigo. A morte de papai foi também a morte de minha infância, com uma exceção, um sobrevivente: o Natal.
Talvez fossem — sejam — ainda as fotografias, mas me habituei a acreditar que me haviam sobrado reminiscências, poucas de pouco, de Natais com meu pai. O ideal fundador da integridade por muitos anos; meu primeiro núcleo duro reunido — juro que me lembro das manhãs de cada dia 25 de quando a criança vivia: papai, mamãe, meu irmão, minha irmã e eu. Era linda a nossa árvore, um pinheiro de verdade, que escolhíamos e enfeitávamos juntos. Ali, insisto, o menino não morrera — permanecia qual um milagre da memória.
Mas quem disse que era bom, que tinha de ser simples?
Porque me lembrava, ou porque acreditava me lembrar, o ideal da integridade se tornou o ideal da integridade corrompida, perdida. Exatamente porque me lembrava, passei a odiar o Natal, tornado depois indiferente, e eu, apaziguado — conformado? — ano afora, para sempre um ressentido em dezembro: eu me recordava, recordo, eu sinto, vejo mesmo as cores, os detalhes dos enfeites; e aquilo, porém, isso de que ainda me lembro, até do cheiro, isso acabara, estancara, me fora tomado, quebrado, confinado ao passado, sem futuro, esmigalhado na bolinha de papel em que se havia convertido o automóvel.
Como não ser cínico? Se a opção era o ressentimento, como não ser cínico? Como não blefar com a hipocrisia de que melhor seria não lembrar?
Ocorre que também as sentenças se transformam — porque a humanidade se impõe, desafia a desfaçatez, e porque a natureza, sobretudo a natureza, dá novas chances. Falo de amor — o único lugar de fala, a única revolução. E então me reencontro, reinvento-me: meu pai não morreu duas vezes. Ou talvez tenha morrido, a última sendo mesmo aquela em que enterrei o moleque que devo ter sido. É que — tento explicar a confusão — o moleque renasceu, ressuscitou, reinventou-se. O moleque — por que não? — nasceu duas vezes; a última, há pouco mais de dois anos, no exato instante em que minha Carol deu à luz. É ele, o menino, quem escreve este texto. O menino que é pai; que é menino porque pai. É que nos veio a Manuela, a graça que descongelou — reanimou — o Natal em mim; que me recosturou à tradição familiar; que me devolveu a infância naquela que embalo; que me fez atentar novamente para o canto da cigarra; que me deu a fortuna de uma nova manhã do dia 25.
Sei que cada um é suas circunstâncias, mas creio no efeito de valor universal — creio que minha palavra encontrará as circunstâncias de cada um — para desejar a todos que reencontrem o Natal.
27 de dezembro de 2017
Carlos Andreazza, O Globo
Na véspera de Natal, grupos saíram de madrugada para doar comida e roupas aos sem-teto que vivem nas ruas do Centro do Rio. Perdi meu pai cedo, aos 9 anos — dias depois de completar 9 anos. Embora já fosse idade para memória, lembro-me de pouco. Lembro-me pouco de pouco. E é mesmo provável que esses poucos nem sequer isso sejam; que minhas recordações sejam terceirizadas, extraídas das fotos. Precisei me tornar adulto para compreender e admitir esse bloqueio. Um embaraço — obstrução — que é tão parte minha quanto a saudade. Sinto saudade de meu pai — e de ter pai. Sofri, sofro ainda, a angústia — espécie de culpa — por intuir que essa segunda fosse maior, mais legítima, que a primeira.
Havia a questão perturbadora: como posso sentir falta se tenho dúvida sobre se lembro dele? A questão se transformaria — pai que hoje sou: como posso falar para minha filha do avô se me falta a certeza de que me recordo dele? É o progresso da corrupção da intimidade: da desconfiança de que me enganava à de que engano. A questão transforma-se sempre — transtorna-se, ramifica-se. Sou um filho fingido, um pai fingidor? E poderia ser diferente? Poderei? Será fé excessiva crer que minha pequena possa me curar do cinismo afetivo em que me refugiei? Será sinal de esperança esse de que só hoje — pai — vim a temer a morte, a minha? Temeria a morte papai? Terá morrido sem temê-la? Terá lhe faltado tempo até para o medo, meu Deus?
Por anos fantasiei uma súbita recuperação da memória, especulei sobre gatilhos que provocariam o destravar das lembranças, e só fui me apaziguar quando, derrotado desde sempre, enfrentei o luto de que aquilo que desejava reconstituir — a vida de papai — era ouvi-lo me contar de nós dois. Meu pai morreu duas vezes. A última, não faz muito, quando enterrei o moleque que devo ter sido; aquele que meu velho, morto tão jovem, jamais poderia confirmar — chancelar. Não era a minha memória o que sonhava recompor; mas a dele comigo. A morte de papai foi também a morte de minha infância, com uma exceção, um sobrevivente: o Natal.
Talvez fossem — sejam — ainda as fotografias, mas me habituei a acreditar que me haviam sobrado reminiscências, poucas de pouco, de Natais com meu pai. O ideal fundador da integridade por muitos anos; meu primeiro núcleo duro reunido — juro que me lembro das manhãs de cada dia 25 de quando a criança vivia: papai, mamãe, meu irmão, minha irmã e eu. Era linda a nossa árvore, um pinheiro de verdade, que escolhíamos e enfeitávamos juntos. Ali, insisto, o menino não morrera — permanecia qual um milagre da memória.
Mas quem disse que era bom, que tinha de ser simples?
Porque me lembrava, ou porque acreditava me lembrar, o ideal da integridade se tornou o ideal da integridade corrompida, perdida. Exatamente porque me lembrava, passei a odiar o Natal, tornado depois indiferente, e eu, apaziguado — conformado? — ano afora, para sempre um ressentido em dezembro: eu me recordava, recordo, eu sinto, vejo mesmo as cores, os detalhes dos enfeites; e aquilo, porém, isso de que ainda me lembro, até do cheiro, isso acabara, estancara, me fora tomado, quebrado, confinado ao passado, sem futuro, esmigalhado na bolinha de papel em que se havia convertido o automóvel.
Como não ser cínico? Se a opção era o ressentimento, como não ser cínico? Como não blefar com a hipocrisia de que melhor seria não lembrar?
Ocorre que também as sentenças se transformam — porque a humanidade se impõe, desafia a desfaçatez, e porque a natureza, sobretudo a natureza, dá novas chances. Falo de amor — o único lugar de fala, a única revolução. E então me reencontro, reinvento-me: meu pai não morreu duas vezes. Ou talvez tenha morrido, a última sendo mesmo aquela em que enterrei o moleque que devo ter sido. É que — tento explicar a confusão — o moleque renasceu, ressuscitou, reinventou-se. O moleque — por que não? — nasceu duas vezes; a última, há pouco mais de dois anos, no exato instante em que minha Carol deu à luz. É ele, o menino, quem escreve este texto. O menino que é pai; que é menino porque pai. É que nos veio a Manuela, a graça que descongelou — reanimou — o Natal em mim; que me recosturou à tradição familiar; que me devolveu a infância naquela que embalo; que me fez atentar novamente para o canto da cigarra; que me deu a fortuna de uma nova manhã do dia 25.
Sei que cada um é suas circunstâncias, mas creio no efeito de valor universal — creio que minha palavra encontrará as circunstâncias de cada um — para desejar a todos que reencontrem o Natal.
27 de dezembro de 2017
Carlos Andreazza, O Globo
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