Escrevi semana passada sobre a diferença entre a Lisboa de hoje, que apaixona o mundo, e aquela em que morei a trabalho nos anos 70, carrancuda, fechada, silenciosa —típica de uma ditadura de décadas, que sustentava uma guerra colonial condenada pelos órgãos internacionais, aos quais o governo português respondia com sua atitude do “orgulhosamente sós”. O mundo, ao ouvir isto, dizia OK e deixava Portugal para lá.
Não se ouviam outras línguas nas ruas. As praias, desertas. Turismo, aparentemente zero. A economia, parada —aluguéis, táxis, produtos nas prateleiras, tudo a preços de 20 anos antes. Para proteger os vinhos, a Coca-Cola era proibida no país —comprava-se de contrabando, vinda da Espanha.
PARAÍSO NA TERRA – Nos jornais lisboetas, Portugal era o paraíso e as notícias desagradáveis só se referiam ao estrangeiro —o próprio Brasil, velho aliado do regime e também sob ditadura, era, já então, um país caótico e violento. Às 23h, Lisboa ia dormir.
Um dos poucos lugares com vestígios de vida era uma galeria comercial perto da Praça de Touros, a Apolo 70. Continha uma loja de revistas, um cinema (onde, em fins de 1973, aos sábados à noite, assisti a um festival Fred Astaire-Ginger Rogers) e, no subsolo, um snack-bar onde eu beliscava alguma coisa depois do filme. Só anos depois, ao ler as memórias de Otelo Saraiva de Carvalho, descobri que, no snack, justamente naquelas noites, deram-se reuniões dos jovens oficiais que, em abril de 1974, fariam a Revolução dos Cravos. Ou seja, em meio à pasmaceira, devo ter me sentado a uma mesa ao lado dos que tramavam a queda do regime.
O Apolo 70 está lá até hoje. Mas agora é uma galeria como muitas, sem qualquer importância. A cidade à sua volta é que despertou, abriu-se para o mundo e inaugurou o século 21.
27 de dezembro de 2017
Ruy Castro
Folha
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