Na sociedade brasileira grassa uma onda de ódio e dilaceração que raramente tivemos em nossa história. Chegamos a um ponto em que a má vontade generalizada impede qualquer convergência em função de uma saída da avassaladora crise que afeta toda a sociedade. Immanuel Kant (1724-1804), o mais rigoroso pensador da ética no Ocidente moderno, fez uma afirmação em sua “Fundamentação para uma Metafísica dos Costumes” (1785): “Não é possível se pensar algo que, em qualquer lugar no mundo, e mesmo fora dele, possa ser tido irrestritamente como bom senão a boa vontade (der gute Wille)”.
Kant reconhece que qualquer projeto ético possui defeitos. Entretanto, todos os projetos possuem algo comum que é sem defeito: a boa vontade, que é o único bem que é somente bom e ao qual não cabe nenhuma restrição.
SEM BASE COMUM – Há aqui uma verdade com graves consequências: se a boa vontade não for a atitude prévia a tudo que pensarmos e fizermos, será impossível criar uma base comum que a todos envolva. Em momento de crise como o nosso, é a boa vontade o fator principal de união de todos para uma resposta viável que supere a crise.
Essas reflexões valem tanto para o mundo globalizado quanto para o Brasil atual. Se não houver boa vontade da grande maioria da humanidade, não vamos encontrar uma saída para a desesperadora crise social que dilacera as sociedades periféricas, nem uma solução para o alarme ecológico que põe em risco o sistema Terra.
No Brasil, se não contarmos com a boa vontade da classe política, em grande parte corrompida e corruptora, nem com a boa vontade dos órgãos jurídicos, não superaremos a corrupção que se encontra na estrutura mesma de nossa fraca democracia. Se essa boa vontade não estiver também nos movimentos sociais e na grande maioria dos cidadãos que com razão resistem às mudanças antipopulares, não haverá nada, nem governo, nem alguma liderança carismática que seja capaz de apontar para alternativas esperançadoras.
TÁBUA DE SALVAÇÃO – A boa vontade é a última tábua de salvação que nos resta. A situação mundial é uma calamidade. Vivemos em permanente estado de guerra civil mundial. Não há ninguém, nem as duas santidades, o papa Francisco e o Dalai-Lama, nem as elites intelectuais mundiais, nem a tecnociência, nada que forneça uma chave de encaminhamento global.
O Brasil reproduz, em miniatura, a dramaticidade mundial. A chaga social produzida em 500 anos de descaso com a coisa do povo significa uma sangria desatada. Nossas elites nunca pensaram uma solução para o Brasil como um todo, mas somente para si. Está aqui a razão do golpe parlamentar que foi sustentado pelas elites opulentas que querem continuar com seu nível absurdo de acumulação, especialmente o sistema financeiro e os bancos, cujos lucros são inacreditáveis.
BENEFÍCIOS SOCIAIS – Por isso, os que tiraram a presidente Dilma Rousseff do poder, por tramoias político-jurídicas, ousam modificar a Constituição em questões fundamentais para a grande maioria do povo, como a legislação trabalhista e a Previdência Social, visando, em último termo, desmontar os benefícios sociais de milhões.
Se a boa vontade é assim tão decisiva, então urge suscitá-la em todos. Em momento de risco, todos, até os corruptores, se sentem obrigados a ajudar com o que lhes resta de boa vontade. Já não contam as diferenças partidárias, mas o destino comum da nação, que não pode cair na categoria de um país falido. Em todos vigora um capital inestimável de boa vontade que pertence a nossa natureza de seres sociais. Se cada um, de fato, quisesse que o Brasil desse certo, com a boa vontade de todos, ele seguramente daria certo.
27 de maio de 2017
Leonardo Boff
O Tempo
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