O Senado de Renan Calheiros aprovou ontem a urgência da tramitação de um projeto de Lei para tratar sobre abuso de autoridade. Existente desde 2009 e nascido de uma iniciativa promovida pelo ministro do STF Gilmar Mendes, com aval de Teori Zavascki (ele ainda não era ministro do STF naquela época) e sob autoria de Raul Jungmann, o projeto foi resgatado dos arquivos do Congresso recentemente. Membros da força-tarefa da Lava Jato, assim como o juiz Sérgio Moro, associações de magistrados e o Procurador Geral da República Rodrigo Janot se posicionaram radicalmente contra o projeto, vendo nele graves riscos para o andamento das investigações em andamento contra políticos. Do outro lado da balança, políticos e jornalistas ligados a partidos políticos dizem que a Lei é urgente e necessária, que representaria um enorme avanço institucional.
Quem quiser entrar em minúcias deve fazer um exercício: ler o Projeto de Lei endossado entusiasticamente por Renan Calheiros neste link e compará-lo com os artigos 3o e 4o da Lei 4898/1965, neste link. Porém, para quem não tiver tanto tempo, sugiro um raciocínio básico que vale para o debate desta Lei e de qualquer outra proposta, um mínimo que deixa de ser observado nessa urgência contemporânea que há de se opinar sobre tudo.
Leis não nascem do vácuo. Especialmente as que lidam com tipos penais, devem ser uma resposta da sociedade a algo que se condena, se quer proibir ou evitar. Como não cabe ao legislador e ao Estado criar em lei prêmios ao bom comportamento, resta-lhe coibir o que é prejudicial à vida em comunidade. E é assim que elas são criadas combinando um equilíbrio entre a filosofia por trás delas e a aplicação prática temporal. Como exemplo, não é correto a priori que um governo obrigue os cidadãos a se protegerem de determinados males mas, quando tais são tão recorrentes e há formas simples de coibi-los, abre-se exceção e a sociedade aceita de bom grado essa tutoria. São assim por exemplo as leis que tratam do consumo e comercialização de drogas, do abuso de álcool, do controle de determinados remédios, da comercialização de alguns componentes químicos e até mesmo a obrigatoriedade de se usar o cinto de segurança. Se algum dia os veículos automotores deixarem de ser usados, então todas as leis de condução e segurança deles se tornariam obsoletas, esquecidas. Este ajuste entre a filosofia por trás da lei, a situação temporal e a aplicabilidade não é fácil de equilibrar e é daqui que nascem as maiores polêmicas. Mas isto não é tudo.
Uma outra evidência sobre a temporalidade das leis e sua resposta aos problemas é que não as criamos para problemas que não existem e não se apresentam como possibilidades problemáticas. É óbvio, por exemplo, que leis que tipificam criminalmente certos comportamentos na internet só se tornaram urgentes quando a internet passou a ser algo comercial e acessível. Esta é a razão pela qual não temos legislação para tráfego aéreo individual em grandes cidades. Se um dia inventarem carros e motocicletas que se locomovem a poucos metros do solo será então necessário criar um novo Código de Trânsito, verificar também a ocupação do espaço aéreo por carros estacionados no ar ou coisas do tipo.
Se a filosofia em que se baseia a lei é boa e em determinado local e tempo há uma necessidade de se instituí-la para combater algo de ruim que acontece e que não é coberto pelas leis atuais, ela então é perfeita como resposta institucional.
Voltemos então ao caso desta lei para combater abusos de autoridades. A existência de algo assim só é justificável pelo fato de nossas autoridades não respeitarem outras leis e códigos de conduta. Logo, é muito claro que esta lei é inspirada num bom princípio, o de combater maus funcionários públicos. O que não se justifica na proposta acelerada por Renan Calheiros e pela classe política é a temporalidade dela. Afinal de contas, desde quando se passou a ter novas modalidades destes abusos que tenham criado tal urgência? Qual é o fator novo para acelerar um projeto de 2009 que estava esquecido? Quem se deu ao trabalho de ler a nova lei e compará-la com a atual verá que não há nada de novo objetivamente, apenas citações subjetivas que PODEM ser usadas contra juízes e promotores. Por exemplo, o artigo 9o tipifica a punição para quem “ordenar ou executar captura, detenção ou prisão fora das hipóteses legais ou sem suas formalidades”. Oras, há alguém sendo preso abruptamente nos últimos tempos fora das hipóteses legais? Aliás, do artigo 9 ao 38, que tratam das penas e sanções, só há casos aplicáveis a juízes e promotores.
A Lei está batizada como combate ao abuso de autoridade e diz na introdução ser voltada também a punir legisladores mas, a bem da verdade, não menciona um ato sequer de abuso que seja possível de praticado por deputados e senadores. Mas o exemplo mais estranho é o artigo, passível de múltiplas interpretações:
“Promover interceptação telefônica, de fluxo de comunicação informática e telemática, ou escuta ambiental, sem autorização judicial ou fora das demais condições, critérios e prazos fixados no mandado judicial, bem assim atingindo a situação de terceiros não incluídos no processo judicial ou inquérito”.
Oras, quer dizer que uma interceptação telefônica ou escuta ambiental só será válida se os dois que estiverem conversando forem alvos do mesmo inquérito? Neste caso, a nova lei proposta fala em prisão de um a quatro anos. O artigo 28 é outro criado perfeitamente sob encomenda para proteger políticos e autoridades:
Reproduzir ou inserir, nos autos de investigação ou processo criminal, diálogo do investigado com pessoa que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, deva guardar sigilo, ou qualquer outra forma de comunicação entre ambos, sobre fatos que constituam objeto da investigação:
A punição para este caso variaria de seis meses a dois anos de prisão.
Não há como mentir. A lei de abuso de autoridade tem todas as características de ação casuística para proteger bandidos, especialmente da delação da Odebrecht que deve arrastar para a lama toda a elite política to país e também muitos jornalistas. O pedido de urgência conduzido por alguém como Renan Calheiros só facilita o trabalho de reconhecer como pilantragem aquilo que tem cara de pilantragem, é conduzido por pilantras e defendido com argumentos pilantras. Quem não fala isso de pronto é porque está comprometido demais para falar.
Revisado por Maíra Pires
27 de novembro de 2016
in da cia
Quem quiser entrar em minúcias deve fazer um exercício: ler o Projeto de Lei endossado entusiasticamente por Renan Calheiros neste link e compará-lo com os artigos 3o e 4o da Lei 4898/1965, neste link. Porém, para quem não tiver tanto tempo, sugiro um raciocínio básico que vale para o debate desta Lei e de qualquer outra proposta, um mínimo que deixa de ser observado nessa urgência contemporânea que há de se opinar sobre tudo.
Leis não nascem do vácuo. Especialmente as que lidam com tipos penais, devem ser uma resposta da sociedade a algo que se condena, se quer proibir ou evitar. Como não cabe ao legislador e ao Estado criar em lei prêmios ao bom comportamento, resta-lhe coibir o que é prejudicial à vida em comunidade. E é assim que elas são criadas combinando um equilíbrio entre a filosofia por trás delas e a aplicação prática temporal. Como exemplo, não é correto a priori que um governo obrigue os cidadãos a se protegerem de determinados males mas, quando tais são tão recorrentes e há formas simples de coibi-los, abre-se exceção e a sociedade aceita de bom grado essa tutoria. São assim por exemplo as leis que tratam do consumo e comercialização de drogas, do abuso de álcool, do controle de determinados remédios, da comercialização de alguns componentes químicos e até mesmo a obrigatoriedade de se usar o cinto de segurança. Se algum dia os veículos automotores deixarem de ser usados, então todas as leis de condução e segurança deles se tornariam obsoletas, esquecidas. Este ajuste entre a filosofia por trás da lei, a situação temporal e a aplicabilidade não é fácil de equilibrar e é daqui que nascem as maiores polêmicas. Mas isto não é tudo.
Uma outra evidência sobre a temporalidade das leis e sua resposta aos problemas é que não as criamos para problemas que não existem e não se apresentam como possibilidades problemáticas. É óbvio, por exemplo, que leis que tipificam criminalmente certos comportamentos na internet só se tornaram urgentes quando a internet passou a ser algo comercial e acessível. Esta é a razão pela qual não temos legislação para tráfego aéreo individual em grandes cidades. Se um dia inventarem carros e motocicletas que se locomovem a poucos metros do solo será então necessário criar um novo Código de Trânsito, verificar também a ocupação do espaço aéreo por carros estacionados no ar ou coisas do tipo.
Se a filosofia em que se baseia a lei é boa e em determinado local e tempo há uma necessidade de se instituí-la para combater algo de ruim que acontece e que não é coberto pelas leis atuais, ela então é perfeita como resposta institucional.
Voltemos então ao caso desta lei para combater abusos de autoridades. A existência de algo assim só é justificável pelo fato de nossas autoridades não respeitarem outras leis e códigos de conduta. Logo, é muito claro que esta lei é inspirada num bom princípio, o de combater maus funcionários públicos. O que não se justifica na proposta acelerada por Renan Calheiros e pela classe política é a temporalidade dela. Afinal de contas, desde quando se passou a ter novas modalidades destes abusos que tenham criado tal urgência? Qual é o fator novo para acelerar um projeto de 2009 que estava esquecido? Quem se deu ao trabalho de ler a nova lei e compará-la com a atual verá que não há nada de novo objetivamente, apenas citações subjetivas que PODEM ser usadas contra juízes e promotores. Por exemplo, o artigo 9o tipifica a punição para quem “ordenar ou executar captura, detenção ou prisão fora das hipóteses legais ou sem suas formalidades”. Oras, há alguém sendo preso abruptamente nos últimos tempos fora das hipóteses legais? Aliás, do artigo 9 ao 38, que tratam das penas e sanções, só há casos aplicáveis a juízes e promotores.
A Lei está batizada como combate ao abuso de autoridade e diz na introdução ser voltada também a punir legisladores mas, a bem da verdade, não menciona um ato sequer de abuso que seja possível de praticado por deputados e senadores. Mas o exemplo mais estranho é o artigo, passível de múltiplas interpretações:
“Promover interceptação telefônica, de fluxo de comunicação informática e telemática, ou escuta ambiental, sem autorização judicial ou fora das demais condições, critérios e prazos fixados no mandado judicial, bem assim atingindo a situação de terceiros não incluídos no processo judicial ou inquérito”.
Oras, quer dizer que uma interceptação telefônica ou escuta ambiental só será válida se os dois que estiverem conversando forem alvos do mesmo inquérito? Neste caso, a nova lei proposta fala em prisão de um a quatro anos. O artigo 28 é outro criado perfeitamente sob encomenda para proteger políticos e autoridades:
Reproduzir ou inserir, nos autos de investigação ou processo criminal, diálogo do investigado com pessoa que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, deva guardar sigilo, ou qualquer outra forma de comunicação entre ambos, sobre fatos que constituam objeto da investigação:
A punição para este caso variaria de seis meses a dois anos de prisão.
Não há como mentir. A lei de abuso de autoridade tem todas as características de ação casuística para proteger bandidos, especialmente da delação da Odebrecht que deve arrastar para a lama toda a elite política to país e também muitos jornalistas. O pedido de urgência conduzido por alguém como Renan Calheiros só facilita o trabalho de reconhecer como pilantragem aquilo que tem cara de pilantragem, é conduzido por pilantras e defendido com argumentos pilantras. Quem não fala isso de pronto é porque está comprometido demais para falar.
Revisado por Maíra Pires
27 de novembro de 2016
in da cia
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