Chegamos cedo, dez da manhã. O ex-deputado José Aparecido, o poeta Gerardo Mello Mourão, eu. Era um belo domingo de sol em São Paulo, na Rua Santo Amaro, 5. Jânio Quadros veio abrir o portão, feliz, sorridente. Cortava a grama com um carrinho anavalhado. Era 1970, a ditadura militar corria feroz. Todo mês, quando em São Paulo, Aparecido arrebanhava alguns amigos para almoçarmos com Jânio. Foram chegando o padre Godinho, Roberto Cardoso Alves, Luís Carlos Santos. Esperávamos Oscar Pedroso Horta. Tomávamos uísque ou vinho. Aparecido pediu um vinho branco. Janio escandia as sílabas:
– Não há vinho branco, Zé. O Nery, que foi quase bispo, sabe que vinho é tinto. Vinho branco é uma bebida dos homens. A bebida de Deus é o vinho tinto. Se vinho branco fosse vinho, a missa seria com vinho branco. Já viu missa com vinho branco? Os grandes porres da Bíblia, o de Noé, o de Davi, foram com vinho tinto Quando Jesus transformou água em vinho nas Bodas de Caná o vinho saiu tinto. E era tinto o vinho da Ultima Ceia.
Fomos para o almoço. A mesa, farta e colorida. Já estávamos no cafezinho, antes do conhaque e do charuto, quando dona Eloá chega perto de Jânio e diz-lhe alguma coisa ao ouvido. Jânio encrespa as mãos, revolve os olhos, passa os dedos retorcidos pelos cabelos e geme fundo: – Não pode ser! Meu Deus, não pode ser!
As lágrimas desabam pelo rosto, ele se levanta e grita: – Muriçoca! Muriçoca morreu!
Pensei que era alguma desgraça com a filha Tutu. Perplexos, levantamo-nos todos. Ele andando na frente, nós atrás. No fim do jardim, deitada na grama, morta, uma cachorrinha branca, meio amarelada. Jânio senta-se no chão, pega-a nos braços, aperta contra o peito, beija-a em soluços, chorando convulsivamente.
Dona Eloá tenta levantá-lo: – Jânio, temos outros cães no jardim. Ela foi, os outros ficaram.
– Cães, Eloá! Cães! Cães há muitos, eu o sei. Mas a Muriçoca era única. E não porque a rainha Elizabeth m`a deu. Quando o algoz fardado caiu sobre mim, todos me abandonaram, Eloá, até tu. E tu também, Aparecido. Até tu. Só a Muriçoca me acompanhou na solidão e na dor.
Dona Eloá olhou para nós, desolada:
– Não diga isso, Jânio. Você sabe que não é verdade. Aqui estão seus amigos. Aqui está o Aparecido.
– Amigos, Eloá. Mas a Muriçoca era um pedaço da minha alma.
Ele ali no chão, soluçando, a cachorrinha no colo, e nós abestalhados, sem ter o que fazer. Revirava os olhos e arquejava: – Deixem-me só. Deixem-me com minha dor.
Aparecido quis acabar com aquilo: – Presidente, vamos para o gabinete. Os empregados enterrarão a Muriçoca debaixo das árvores.
Ele deu um salto, ficou de pé, a cachorrinha nos braços, com o pescoço caído, como uma boneca de Chaplin: – Eles não, Zé. Eu. Sepultá-la-ei eu mesmo, com minhas mãos e minhas lágrimas, no vértice do jardim. Ficará eterna na minha saudade, sob uma lápide de bronze. Prometi-lhe, cumprirei.
E saiu andando a passos largos, os olhos tortos, os cabelos desgrenhados, para o centro do jardim, beijando e apertando a cachorrinha contra o peito. E nós atrás. Uma tensa procissão medieval, como em um filme de Buñuel na Andaluzia. No meio do gramado, Jânio parou, olhou para os quatro cantos, deu um passo, bateu o pé no chão:
– Será aqui, no vértice. Ela sempre comigo, até o último dia.
JANIO EM LÁGRIMAS
Um rapaz trouxe uma picareta, Janio começou a cavar. Vermelho, em lágrimas, cavava e suava. Luis Carlos Santos e Robertão chegaram com a cal. A cova estava pronta. Dona Eloá pediu flores ao empregado. Jânio pôs Muriçoca na cova, cobriu-a de flores, disse uma série de coisas incompreensíveis, chamou o padre Godinho:
– Padre, uma prece última, por favor. Ela era um ser humano. Reze liturgicamente a derradeira prece.
Padre Godinho, entre a liturgia, que não permitia, e o amigo enlouquecido, olhou para mim e começou a recitar, em seu perfeito latim, um belo poema do poeta romano Horácio. Jânio olhava para o céu, procurando a alma de Muriçoca na tarde fria que caía.
Voltei lá outros dias. No vértice do jardim, com o nome da Muriçoca e a saudade de Janio, uma lápide de bronze cobria o túmulo de Muriçoca. Jânio enganou São Paulo e o Brasil. Não enganou a Muriçoca.
DÍVIDA PÚBLICA
No final de fevereiro, a dívida bruta da União, Estados e Municípios ultrapassou R$ 4 trilhões, crescendo R$ 4,2 bilhões por dia. A dívida pública federal responde por R$ 2,9 trilhões. No ano passado, a União, os Estados e municípios cortaram 35% dos investimentos. Em contrapartida os investimentos privados seguiram no mesmo rumo. O investimento público e o privado é que elevam a capacidade produtiva da economia.
11 de maio de 2016
Sebastião Nery
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