Quando, na década de 1970, eu era uma criança, estudei numa escola pública. Morando a cerca de cem quilômetros de Porto Alegre, meu pai era médico numa cidadezinha que, na época, não tinha mais do que 30 mil habitantes. Lembro, um por um, dos nomes das professoras que chamávamos de “tias”. Toda vez que uma delas entrava em sala de aula, era nosso costume se levantar e não se começava lição alguma sem antes rezar o “Pai Nosso” ou a “Ave Maria”.
Esses hábitos, firmados pelo tempo e pelo costume, davam sentido ao meu universo, então o universo de um menino, alheio à vida política do país. Alheio a qualquer necessidade ou obrigação da rotina adulta que aos poucos nos vai roubando essa impressão de realidade fantástica em que transcorre o cotidiano do mundo infantil.
Tenho, desse tempo, uma lembrança inesquecível: em certas ocasiões faltava, por um motivo ou outro, uma de nossas professoras. Era costume então que uma outra “tia” nos levasse a um grande salão – na verdade imenso aos olhos de uma criança – onde assistíamos filmes que a secretaria estadual de educação distribuía em suas unidades pelo Rio Grande do Sul.
Eram eles, os filmes, pequenos documentários... pequenas aulas sobre países e fatos da história ou da natureza que, no Brasil dos anos 70, constituíam uma raridade...uma verdadeira iguaria numa década em que sequer se poderia imaginar uma coisa chamada internet... Escutar rádio em ondas curtas era o que de mais próximo havia para quem buscava escapar do Jornal Nacional, da Novela das Oito, do Cassino do Chacrinha ou dos Trapalhões.
Nessa época, em 1976 ou 77, eu não tinha a menor ideia de quem eram Médici ou Geisel... Eu não conseguia entender o significado das palavras ditadura ou democracia e olhava curioso para multidão que se reuniu, quase em frente à casa em que morávamos, para receber a estátua do General Costa e Silva numa praça da cidadezinha em que eu vivia e na qual ele havia nascido.
Naqueles dias, ninguém me poderia explicar por que os temas dos documentários que a escola nos mostrava eram tão distantes da realidade brasileira...Por que nós precisávamos assistir filmes sobre a vida na China antiga ou sobre as usinas termoelétricas da Alemanha?...Qual o sentido de mostrar a um menino de 11 ou 12 anos, nascido no Rio Grande do Sul, os filmes em super oito que os consulados em Porto Alegre pareciam oferecer como presente para minha imaginação que, uma vez despertada, obrigava meu pai a voltar da antiga Livraria do Globo com sacolas e mais sacolas de livros?
Quarenta anos depois disso que eu descrevi... depois de tudo que aconteceu no país... depois de homem feito e pai de família, não é difícil dar sentido aos filmes que a escola me apresentava. Era o próprio distanciamento, o próprio esquecimento do Brasil que se fazia necessário impor nos bancos escolares: a ditadura nos oferecia “viagens”... nos mostrava outros países e outras histórias... Não se “politizava” estudantes... Não se alimentava a “subversão”...
Ontem, 26 de janeiro de 2015, durante todo o dia, eu tive pela TV, pelo rádio e pela internet brasileiros, uma quantidade maior de informações sobre a tempestade de neve nos Estados Unidos do que qualquer outro assunto. Eu fiquei sabendo tudo sobre a preparação de Nova Iorque para enfrentá-la. Eu assisti entrevistas, eu vi o prefeito dando declarações...
Vi comparações com tempestades anteriores... Eu vi tudo isso na mesma semana em que o Brasil do PT, em virtude da falta d'água, desliga sua segunda usina hidroelétrica e a maior cidade do mundo abaixo da linha do Equador, São Paulo, segue ameaçada por apagões e pelo racionamento de luz e de energia...
Eu voltei no tempo e me senti mais uma vez um menino da década de 70... Uma criança para quem as palavras “atentado à bomba” ou “subversão” precisavam ser esquecidas nos documentários que eu assistia e que marcaram minha vida para sempre... Vida que hoje, já no seu outono, ainda enxerga esse mundo de 2015 com os mesmos olhos de um menino da Taquari da década de 70 assistindo quietinho, impressionado, no salão da velha escola um filme lindo e sem sentido repetido dezenas e dezenas de vezes ….. “A Primavera no Japão”
Para o meu pai... que me ensinou a ler...
28 de janeiro de 2015
Milton Simon Pires é Médico.
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