Não é só caso de polícia. Há, nisso tudo, a questão da percepção popular de que as instituições faliram, e um dos culpados são os políticos
Falar em violência no Brasil, nos últimos 30 anos, chega a ser redundância. Há, é certo, políticas públicas que, em algumas regiões metropolitanas, como as do Rio e São Paulo, conseguiram reduzir bastante a taxa de homicídios, termômetro usual para mensurar-se o nível de segurança pública. Mas há um outro tipo de violência em ascensão, algo diferente, tão ou até mais grave, a qual esses indicadores clássicos não conseguem captar na sua totalidade.
O noticiário tem trazido uma mistura indigesta de atos de pura selvageria em linchamentos espalhados pelo país. Destacou o caso não menos bárbaro do torcedor assassinado ao ser atingido por um vaso sanitário jogado de cima do estádio do Arruda, no Recife, e tem acompanhado a sucessão sem-fim de embates violentos nas ruas de grandes cidades, principalmente São Paulo e Rio. Tudo junto compõe o clima de mau humor e exasperação que toma conta do país. Parece haver no ar uma eletricidade capaz de produzir faíscas a partir de qualquer qualquer situação banal. Rixa no trânsito, fila no banco, e assim por diante.
Pode-se fixar em junho do ano passado, na explosão de manifestações de ruas, inicialmente espontâneas, o marco zero do atual processo de degradação da convivência social. Mais precisamente quando aquelas manifestações foram sufocadas pelo oportunismo de grupos radicais, aproveitando-se daquela mobilização contra precariedades na infraestrutura e serviços públicos para estabelecer um padrão de atos cada vez mais violentos, com depredações de bens públicos, privados e agressões. Entre os alvos, policiais e a imprensa profissional. A intolerância também ganhou as ruas. O ápice da escalada foi o assassinato do cinegrafista Santiago Andrade, da TV Bandeirantes, em fevereiro, na Central do Brasil, pelo disparo criminoso de um rojão por Fábio Raposo e Caio Barbosa, dois integrantes dos grupos de vândalos que atuam nesses ataques. A devida reação das instituições de Estado, Polícia e Justiça fez arrefecer a ação de black blocs e aparentados. Mas eles estão de volta.
O motivo inicial foi a tarifa dos transportes públicos. Logo, a Copa entrou na agenda dessas organizações e, nas últimas semanas, em São Paulo e Rio, cresce nesta agenda a questão da moradia, com a atuação orquestrada, nas duas cidades, de invasores de imóveis e terrenos. O modelo é o de sempre: ocupação, resistência e passeatas, com desfecho violento — depredações, barricadas erguidas com rapidez e logo incendiadas, para dificultar o avanço dos batalhões de choque. Qualquer grupo de poucas dezenas de pessoas tem conseguido paralisar áreas vitais de São Paulo e Rio. O Código Penal e a própria Constituição, no sentido mais amplo, têm sido revogados na prática, diante de um poder público inerte. Ou quase. É correto o cuidado das autoridades em não produzir um cadáver que possa ser manipulado a fim de turbinar os protestos. Mas a paralisia catatônica também não é a melhor postura.
Está evidente que há algo em curso, planejado, na linha da radicalização e intolerância anárquicas. Até mesmo o atual momento de tensão em algumas favelas cariocas, em que o tráfico tenta retomar espaços perdidos para UPPs, tem sido aproveitado para se espalhar a violência em bairros da cidade, numa aliança espúria, tácita ou não, com criminosos.
Militantes desses movimentos chegam a perseguir pessoas em locais públicos, no estilo dos grupos nazifascistas nas décadas de 30 e 40, na Alemanha, Itália e Áustria. Há dias, o próprio ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, conhecido pelo trânsito fácil com organizações sociais, foi afrontado por um desses militantes, no Rio. A questão vai, portanto, além de divergências partidárias —, embora se saiba que esquemas políticos têm aproveitado a radicalização com objetivos eleitorais. Esta infiltração é detectada há algum tempo no Rio de Janeiro.
A insegurança pública ganhou, portanto, de meados do ano passado para cá, este ingrediente explosivo de organizações semiclandestinas radicais. Elas têm todo o direito de se pronunciar, mas desde que nos limites da lei. Não é o que acontece.
O clima, já ruim, se deteriora, e o surto de incivilidade em todo o país é ainda mais aprofundado pela onda de linchamentos e atos de selvageria cometidos já para além das fronteiras da barbárie. Mesmo que linchamentos sejam um trágica tradição no país, segundo especialistas, eles aumentam seu espaço no noticiário, num momento nacional já de nervos à flor da pele.
Em janeiro, foi chocante o grupo de jovens “justiceiros” cariocas prender num poste, nu, um jovem delinquente negro. Casos vinham se sucedendo até que, na segunda-feira, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus foi trucidada por vizinhos, na periferia do Guarujá, litoral nobre paulista, por ter sido acusada, na página no Facebook do “Guarujá Alerta”, de sequestrar crianças, para sacrificá-las em cerimônias de magia negra. Era mentira. E mesmo que fosse verdade, ali o Brasil retornou à Idade Média da caça literal às bruxas, a serem incineradas em praça pública.
O sociólogo José de Souza Martins, professor da Faculdade de Filosofia da USP, estimou, em entrevista ao “O Estado de S.Paulo”, que haja três ou quatro casos no Brasil, por semana. Souza Martins fala com a autoridade de quem estuda linchamentos há 30 anos, já tendo catalogado 2 mil. O Brasil deve ser o país em que mais se faz “justiça” pelas próprias mãos, afirma o sociólogo. O sintoma de descrença no Estado é claro. Como diz o professor em um dos seus livros: “o linchamento não é uma manifestação da desordem, mas de questionamento da desordem”.
Desordem existente porque há um poder público — todo ele, nos mais diversos níveis — incapaz de agir para que a lei seja cumprida. Por black-blocs ou quem seja. Que esta sucessão de selvagerias, país afora, faça todos refletirem sobre os rumos que a sociedade toma. No caso das autoridades, elas devem redobrar a atenção com a ordem pública.
Mas não se trata apenas de um caso de polícia. Há uma séria questão nisso tudo que é a percepção popular — mesmo que não seja verbalizada por todos — da falência de instituições. A situação se agrava com o péssimo exemplo dado por partidos políticos, do PT ao PSDB, pelo envolvimento de correligionários em casos de corrupção. O mau exemplo do PT chega a ser mais daninho, por ter conquistado o poder com a aura de extrema seriedade e honestidade. Ao trair as promessas de defesa intransigente da ética, dá grande contribuição, infelizmente, ao descrédito da população diante dos poderes constituídos. Não há culpado único por todo este drama social.
Falar em violência no Brasil, nos últimos 30 anos, chega a ser redundância. Há, é certo, políticas públicas que, em algumas regiões metropolitanas, como as do Rio e São Paulo, conseguiram reduzir bastante a taxa de homicídios, termômetro usual para mensurar-se o nível de segurança pública. Mas há um outro tipo de violência em ascensão, algo diferente, tão ou até mais grave, a qual esses indicadores clássicos não conseguem captar na sua totalidade.
O noticiário tem trazido uma mistura indigesta de atos de pura selvageria em linchamentos espalhados pelo país. Destacou o caso não menos bárbaro do torcedor assassinado ao ser atingido por um vaso sanitário jogado de cima do estádio do Arruda, no Recife, e tem acompanhado a sucessão sem-fim de embates violentos nas ruas de grandes cidades, principalmente São Paulo e Rio. Tudo junto compõe o clima de mau humor e exasperação que toma conta do país. Parece haver no ar uma eletricidade capaz de produzir faíscas a partir de qualquer qualquer situação banal. Rixa no trânsito, fila no banco, e assim por diante.
Pode-se fixar em junho do ano passado, na explosão de manifestações de ruas, inicialmente espontâneas, o marco zero do atual processo de degradação da convivência social. Mais precisamente quando aquelas manifestações foram sufocadas pelo oportunismo de grupos radicais, aproveitando-se daquela mobilização contra precariedades na infraestrutura e serviços públicos para estabelecer um padrão de atos cada vez mais violentos, com depredações de bens públicos, privados e agressões. Entre os alvos, policiais e a imprensa profissional. A intolerância também ganhou as ruas. O ápice da escalada foi o assassinato do cinegrafista Santiago Andrade, da TV Bandeirantes, em fevereiro, na Central do Brasil, pelo disparo criminoso de um rojão por Fábio Raposo e Caio Barbosa, dois integrantes dos grupos de vândalos que atuam nesses ataques. A devida reação das instituições de Estado, Polícia e Justiça fez arrefecer a ação de black blocs e aparentados. Mas eles estão de volta.
O motivo inicial foi a tarifa dos transportes públicos. Logo, a Copa entrou na agenda dessas organizações e, nas últimas semanas, em São Paulo e Rio, cresce nesta agenda a questão da moradia, com a atuação orquestrada, nas duas cidades, de invasores de imóveis e terrenos. O modelo é o de sempre: ocupação, resistência e passeatas, com desfecho violento — depredações, barricadas erguidas com rapidez e logo incendiadas, para dificultar o avanço dos batalhões de choque. Qualquer grupo de poucas dezenas de pessoas tem conseguido paralisar áreas vitais de São Paulo e Rio. O Código Penal e a própria Constituição, no sentido mais amplo, têm sido revogados na prática, diante de um poder público inerte. Ou quase. É correto o cuidado das autoridades em não produzir um cadáver que possa ser manipulado a fim de turbinar os protestos. Mas a paralisia catatônica também não é a melhor postura.
Está evidente que há algo em curso, planejado, na linha da radicalização e intolerância anárquicas. Até mesmo o atual momento de tensão em algumas favelas cariocas, em que o tráfico tenta retomar espaços perdidos para UPPs, tem sido aproveitado para se espalhar a violência em bairros da cidade, numa aliança espúria, tácita ou não, com criminosos.
Militantes desses movimentos chegam a perseguir pessoas em locais públicos, no estilo dos grupos nazifascistas nas décadas de 30 e 40, na Alemanha, Itália e Áustria. Há dias, o próprio ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, conhecido pelo trânsito fácil com organizações sociais, foi afrontado por um desses militantes, no Rio. A questão vai, portanto, além de divergências partidárias —, embora se saiba que esquemas políticos têm aproveitado a radicalização com objetivos eleitorais. Esta infiltração é detectada há algum tempo no Rio de Janeiro.
A insegurança pública ganhou, portanto, de meados do ano passado para cá, este ingrediente explosivo de organizações semiclandestinas radicais. Elas têm todo o direito de se pronunciar, mas desde que nos limites da lei. Não é o que acontece.
O clima, já ruim, se deteriora, e o surto de incivilidade em todo o país é ainda mais aprofundado pela onda de linchamentos e atos de selvageria cometidos já para além das fronteiras da barbárie. Mesmo que linchamentos sejam um trágica tradição no país, segundo especialistas, eles aumentam seu espaço no noticiário, num momento nacional já de nervos à flor da pele.
Em janeiro, foi chocante o grupo de jovens “justiceiros” cariocas prender num poste, nu, um jovem delinquente negro. Casos vinham se sucedendo até que, na segunda-feira, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus foi trucidada por vizinhos, na periferia do Guarujá, litoral nobre paulista, por ter sido acusada, na página no Facebook do “Guarujá Alerta”, de sequestrar crianças, para sacrificá-las em cerimônias de magia negra. Era mentira. E mesmo que fosse verdade, ali o Brasil retornou à Idade Média da caça literal às bruxas, a serem incineradas em praça pública.
O sociólogo José de Souza Martins, professor da Faculdade de Filosofia da USP, estimou, em entrevista ao “O Estado de S.Paulo”, que haja três ou quatro casos no Brasil, por semana. Souza Martins fala com a autoridade de quem estuda linchamentos há 30 anos, já tendo catalogado 2 mil. O Brasil deve ser o país em que mais se faz “justiça” pelas próprias mãos, afirma o sociólogo. O sintoma de descrença no Estado é claro. Como diz o professor em um dos seus livros: “o linchamento não é uma manifestação da desordem, mas de questionamento da desordem”.
Desordem existente porque há um poder público — todo ele, nos mais diversos níveis — incapaz de agir para que a lei seja cumprida. Por black-blocs ou quem seja. Que esta sucessão de selvagerias, país afora, faça todos refletirem sobre os rumos que a sociedade toma. No caso das autoridades, elas devem redobrar a atenção com a ordem pública.
Mas não se trata apenas de um caso de polícia. Há uma séria questão nisso tudo que é a percepção popular — mesmo que não seja verbalizada por todos — da falência de instituições. A situação se agrava com o péssimo exemplo dado por partidos políticos, do PT ao PSDB, pelo envolvimento de correligionários em casos de corrupção. O mau exemplo do PT chega a ser mais daninho, por ter conquistado o poder com a aura de extrema seriedade e honestidade. Ao trair as promessas de defesa intransigente da ética, dá grande contribuição, infelizmente, ao descrédito da população diante dos poderes constituídos. Não há culpado único por todo este drama social.
07 de maio de 2014
Editorial O Globo
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