"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 26 de abril de 2014

PORTEIRA ABERTA

Quando uma palavra se desgasta historicamente, urge trocá-la por outra. Acontecer com a palavra negro. Pelo jeito, a fama da raça já não desfrutava de muito prestígio. Passaram então a chamar-se afrodescendentes. Ou pretenderam passar a chamar-se. Se a moda pegou nos Estados Unidos, a grande nação criadora de eufemismos, aqui não pegou bem. Verdade que muito jornal a adotou, pelo menos de início. Mas soou como ridícula.

Outra palavrinha que, pelo jeito, já andava com a barra suja, é homossexual. O mesmo aconteceu com esta outra palavrinha, ao que parece em declínio. Segundo o ministro Carlos Ayres Britto, do STF, homossexuais não mais existem. Agora são todos homoafetivos. Mas o neologismo do poeta e magistrado – mal construído, diga-se de passagem – não vai colar, a não ser talvez em sentenças judiciais. Suponho que até um homossexual se sentiria constrangido ao definir-se como homoafetivo.

Uma das últimas palavras em mutação é adultério. Como já constituiu crime em nossas leis, ficou com má fama. Dizer que fulano é adúltero não fica bem em sociedade. Melhor falar em poliamor.

Comentei o novo achado ano passado. Há seis anos, em Porto Velho, Rondônia, uma mulher obteve na Justiça o direito de receber parte dos bens do amante com quem conviveu durante quase 30 anos. Ele era casado e morreu em 2007, aos 71 anos. O juiz Adolfo Naujorks, que concedeu à moça o direito de herança, baseou-se em artigo publicado num site jurídico segundo o qual uma teoria psicológica, denominada "poliamorismo", admitia a coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas em que casais se conhecem e se aceitam em uma relação aberta.

Em 2012, em Tupã, no interior de São Paulo, foi registrada em cartório a primeira união entre três pessoas, o poliamor. Sites jurídicos não só estão substituindo o Legislativo, como modificando o regime de transmissão de bens entre herdeiros. Mais ainda, estão legitimando a poligamia. Nada contra. Estou apenas constatando. Poliamorismo soa mais elegante. Procurei a palavrinha nos dicionários. Não encontrei. Nem meu processador de texto reconhece a palavra, sempre a sublinha em vermelho.

Fui ao Google. Já está lá. Escreve um jurista: “As relações interpessoais de cunho amoroso, por vezes destoam do padrão habitual da monogamia entre os casais formados por pessoas de sexos diferentes. Assim, encontramos relacionamentos afetivos que envolvem um casal, vale dizer um dos cônjuges e um parceiro ou parceira, os quais se desenvolvem simultaneamente. Ditas relações são denominadas de poliamorismo ou poliamor, e se constituem na coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas ao matrimônio”.

Ah! As palavras... Eu conhecia poligamia, poliandria, até mesmo policromia. Mas o tal de poliamorismo foi para mim novidade. Quem diria? Cheguei aos sessenta e ainda descubro palavrinhas exóticas. Me restam no entanto algumas dúvidas. Já que a palavrinha amor é parte constitutiva do novo palavrão, me pergunto: é preciso que exista o tal de amor? Ou sexo puro também serve? O conceito é extensivo a todas as profissionais que curtimos em nossas vidas, ou profissional não vale? Aquela distante namorada, que encontramos de ano em ano, é poliamor? Ou um amorzinho mixuruca, sem direito à herança?

Os muçulmanos são mais práticos. Todo crente tem direito a quatro mulheres e estamos conversados. Não se fala em amor nem poliamor. Mas não precisamos ir até o Islã. No livro que embasa a cultura ocidental, temos o rei Salomão. “Tinha ele setecentas mulheres, princesas, e trezentas concubinas; e suas mulheres lhe perverteram o coração”, lemos no I Reis. Poliamantíssimo, o sábio rei. Bem que gostaria de ter meu meigo coração assim pervertido.

Alexandre também cultivava intensamente o tal de poliamor. Mas no fundo preferia os meninos de seu exército. Na época, perguntei-me: homoafetividade exclui o tal de poliamor? Obviamente não. Se um homem pode amar duas mulheres, por que não poderia amar dois homens? Nada impede. Se obedecermos à boa lógica, em breve teremos três ou mais homens (ou mulheres, por que não?) registrando suas relações estáveis em cartório. O velho casamento católico vai virar partouse. (Nada contra. Apenas constato).

Não se passaram dois anos, e a resposta veio. Dos Estados Unidos, é claro. Doll, Kitten e Bryn, americanas de Massachusetts, viviam juntas desde 2011 e, ano passado, resolveram oficializar a união. Todas usaram vestidos brancos e foram levadas ao altar por seus pais, em uma cerimônia com visual tradicional. Mas a história só foi divulgada agora que elas esperam seu primeiro bebê. Os pais acompanharam suas filhas ao altar. A notícia não diz se houve casamento civil.

Para quando os casamentos entre cinco ou dez pessoas? A porteira foi aberta.

 
26 de abril de 2014
janer cristaldo

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