"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 26 de abril de 2014

O PIOR É NOSSO E NÃO ABRIMOS MÃO

 Em 2003, tive acirrada polêmica com universitários americanos a respeito das cotas raciais. Recebi cerca de 300 respostas – uma delas com 48 páginas – reação que nunca tive no Brasil. Em minha réplica, eu afirmava que, brasileiros, desconhecemos o racismo institucionalizado. Negros e brancos casam-se com brancas e negras, bebem e comem nos mesmos restaurantes, estudam e confraternizam nos mesmos bancos escolares.

Se há menos negros que brancos na universidade, isto se deve a fatores econômicos, mas jamais legais. O branco pobre – e eles são legião – tem a mesma dificuldade de acesso aos bancos universitários que o negro pobre. O negro rico – e eles também existem – tem a mesma facilidade de acesso que o branco rico. É inteligível o ódio que um negro americano possa sentir por um branco americano. Não há no entanto razão alguma para que este ódio seja exportado ao Brasil. Neste país, do ponto de vista legal, o negro nunca foi discriminado. Nunca tivemos, entre nós, as famigeradas leis Jim Crow.

Há décadas afirmo que o Brasil costuma importar as piores práticas do Primeiro Mundo. No censo de 2.000, quase sete milhões de norte-americanos, pela primeira vez, foram autorizados a identificar-se como integrantes de mais de uma raça. As categorias inter-raciais mais comuns citadas foram branco e negro, branco e asiático, branco e indígena americano ou nativo do Alasca e branco e "alguma outra raça". Os Estados Unidos deixam de lado a onedrope rule, pela qual um cidadão é considerado negro mesmo que tenha uma única gota de sangue negro em sua ascendência, e descobrem o mestiço.

Enquanto os Estados Unidos reconhecem a multi-racialidade, alguns movimentos negros no Brasil pretenderam que até os mulatos se declarassem negros no último censo. O propósito é óbvio, exercer pressão legislativa. A população negra do Brasil, em 99, era de apenas 5,4%. Com o acréscimo de 39,9% do contingente de mulatos, o Brasil estaria perto de ser definido como um país majoritariamente negro, como aliás é hoje considerado por muitos americanos e europeus. Lula, em sua já proverbial incultura, caiu nesta armadilha, ao afirmar que o Brasil é a segunda nação negra do mundo. Não é. Negro é minoria ínfima no Brasil. A menos que, como fizeram os EUA, se pretenda negar este espécime híbrido, o mulato.

Quando os americanos descobrem o mestiço, os ativistas negros brasileiros querem eliminá-lo do panorama nacional. Em uma imitação servil da imprensa ianque, os jornais tupiniquins passam a usar o termo afrodescendente para definir a população que o IBGE classifica como negra ou parda. Mas se um negro é obviamente afrodescendente, o pardo é tanto afro como eurodescendente. A adotar-se a nova nomenclatura, sou forçado a declarar-me eurodescendente. E não vejo nisso nenhum desdouro.

A palavra racismo, pouco freqüente na imprensa brasileira em décadas passadas, passou a inundar as páginas dos jornais a partir da queda do Muro de Berlim. Apparatchiks saudosos da Guerra Fria, vendo desmoralizadas suas bandeiras de luta de classes, proletariado versus burguesia, trabalho versus capital, trataram logo de encontrar uma nova dicotomia, para lançar irmãos contra irmãos. Existem negros e brancos no Brasil? Maravilha. Vamos então lançá-los em luta fratricida.

Criaram-se leis absurdas que, a pretexto de combater o racismo, só servem para estimulá-lo. Hoje, no Brasil, se você insultar um negro, incorre em crime hediondo, com prisão firme e sem direito à fiança. Mas se matar um negro, a lei é mais leniente. Se você for primário, pode responder ao processo em liberdade. Ou seja: se você, em um momento de ira, insultou um negro e quer escapar de uma prisão imediata, só lhe resta uma saída: mate-o. Segundo a lei absurda, assassinato é menos grave que ofensa verbal.

Vamos às cotas. Em virtude deste hábito nosso de importar do Primeiro Mundo seus piores achados, acabamos instituindo as cotas raciais na universidade. Mais uma dessas tantas leis que fabricam racismo. Como pode um jovem pobre e branco encarar sem animosidade um negro que lhe tomou a vaga na universidade, só porque é negro? Quando o juiz federal Bernard Friedman determinou o fim da política de ação afirmativa da faculdade de Direito da Universidade de Michigan, os americanos começaram a perceber que a política de cotas era uma péssima idéia.

Em 1977, a estudante branca Barbara Grutter abriu processo depois de não ter sido aceita pela faculdade de Direito. Para Friedman, levar em consideração a raça dos estudantes como fator para decidir se os aceita ou não é inconstitucional. Segundo o juiz, a política de ação afirmativa da faculdade assemelha-se ao sistema de cotas, que determina que uma certa porcentagem de estudantes pertença a grupos minoritários. Ao ordenar que a faculdade deixe de praticar essa política, escreveu: “Aproximadamente 10% das vagas em cada turma são reservadas para membros de uma raça específica, e essas vagas são retiradas da competição”.

Em 2002, o programa 60 Minutes entrevistou um professor que mostrava a injustiça do sistema. De 51 estudantes brancos candidatos a um programa da faculdade, apenas um foi aceito. Entre dez candidatos negros, foram aceitos os dez. A universidade adota uma espécie de lei Jim Crow às avessas, aceitando qualquer candidato negro e recusando brancos. Quando os americanos descobrem que a política de afirmação positiva não constituiu uma idéia boa ou justa, autoridades brasileiras aderem a esta política infame.

Leio hoje, no UOL, notícia à primeira vista alvissareira. A Suprema Corte invalidou o mecanismo das cotas em universidades de Michigan, sustentando o resultado de um referendo em 2006. A decisão vale para mais sete Estados que acabaram com as cotas por meio de consultas junto à população.

Escreve Isabel Fleck, correspondente da Folha de São Paulo em Nova York:
Os defensores de ações afirmativas sofreram ontem uma significativa derrota na mais alta instância da Justiça americana. A Suprema Corte sustentou, por 6 votos a 2, o resultado de referendo realizado em 2006 em Michigan, que determinou a proibição de cotas raciais em universidades públicas do Estado. Com isso, veta qualquer "tratamento preferencial a indivíduos ou grupos com base em raça, sexo, cor, etnia ou origem" na admissão a instituições públicas de ensino superior de Michigan.

A decisão é mais ampla, no entanto, porque acaba endossando medidas semelhantes tomadas em outros sete Estados americanos, como Califórnia, Flórida, Arizona e Nebraska. Pode ainda servir de impulso para que grupos contrários às cotas pressionem pela realização de plebiscitos em outros Estados.

Para ela, a decisão coloca às minorias um obstáculo que não é enfrentado por outros candidatos e, por isso, viola a defesa da igualdade pela Constituição dos EUA. "A Constituição não protege as minorias raciais da derrota política. Mas também não dá à maioria sinal verde para erguer barreiras seletivas contra elas".


Notícia à primeira vista alvissareira, disse. Porque alvissareira para os americanos. Enquanto o país onde surgiram as cotas descobre que a idéia foi de jerico, no Brasil ela se estende desde o mundo das artes ao serviço público. Quando os Estados Unidos finalmente descobrem o mulato, o Brasil tenta extingui-lo.

Chez nous, o melhor pouco interessa aos homens que fazem as leis. Importamos o pior e dele não abrimos não.

 
26 de abril de 2014
janer cristaldo

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