Carolus Linnaeus (Lineu), o pai fundador da taxonomia biológica, sugeriu uma divisão da espécie humana em quatro raças: europeanus (brancos), asiaticus (amarelos), americanus (vermelhos) e africanus (negros). Naturalmente, explicou Linnaeus, a raça europeia era formada por indivíduos inteligentes, inventivos e gentis, enquanto os asiáticos experimentavam inatas dificuldades de concentração, os nativos americanos deixavam-se dominar pela teimosia e pela irritação e os africanos dobravam-se à lassidão e à preguiça. Isso foi em meados do século XVIII, na antevéspera do surgimento do “racismo científico”. Como admitir que uma linguagem paralela seja utilizada por Ricardo Noblat, um jornalista culto e respeitado, na segunda década do século XXI?
O presidente do STF, Joaquim Barbosa, moveu representação contra Noblat, acusando-o dos crimes de injúria, difamação e preconceito racial. Três frases numa coluna do jornalista publicada no GLOBO (18 de agosto de 2013) formam um alvo legítimo da representação criminal: “Para entender melhor Joaquim acrescente-se a cor — sua cor. Há negros que padecem do complexo de inferioridade. Outros assumem uma postura radicalmente oposta para enfrentar a discriminação.” Noblat resolveu “explicar” Joaquim Barbosa a partir de presumidos traços gerais do caráter dos “negros”: é Lineu, no século errado...
As três frases deploráveis — e preconceituosas, sim! — oferecem aos “negros” as alternativas de sofrerem de “complexo de inferioridade” ou de arrogância, que seria a “postura radicalmente oposta”. Contudo, no conjunto do raciocínio, há algo pior: a cassação da personalidade de Joaquim Barbosa, a anulação de sua individualidade. Joaquim não existe como indivíduo, mas como representação simbólica de uma “raça”; ele é o que é pois “sua cor” esculpe sua alma — eis a mensagem de Noblat. Podemos aceitar assertivas sobre caráter e atitudes baseadas na “raça” dos indivíduos? Essa é a questão que Joaquim Barbosa decidiu repassar para tribunais criminais.
O problema de fundo da representação é que o Estado brasileiro oficializou as “raças”, por meio de políticas raciais adotadas pelo Executivo, votadas pelo Congresso e avalizadas pelo Judiciário — inclusive, pessoal e diretamente, por Joaquim Barbosa. De acordo com as políticas raciais em vigor, fundaram-se “direitos raciais” ligados ao ingresso no ensino superior, na pós-graduação e em carreiras do funcionalismo público.
Os indivíduos beneficiários das cotas privilegiadas são descritos como “representantes” de uma “raça” — do presente e, também, do passado histórico dos “negros”. Foi o próprio Estado que introduziu a “raça” (e, com ela, a linguagem racial!) no ordenamento político brasileiro. Os juízes que darão um veredicto sobre a ação contra Noblat provavelmente circundarão o problema de princípio — mas isto não o suprime.
Na democracia, a linguagem tem importância maior que a força. A linguagem racial introduziu-se entre nós a partir do alto. Pais são compelidos a definir a “raça” de seus filhos nas fichas de matrícula na escola. Jovens estudantes devem declarar uma “raça” nos umbrais de acesso às universidades. Na política, a cor e a “raça” converteram-se em referências corriqueiras.
Lula da Silva invocou a cor da pele de Joaquim Barbosa como motivação para sua indicação ao Supremo (algo mencionado, aliás, em outra linha da coluna de Noblat). “Brancos” e “negros”, essas entidades da imaginação racial, transformaram-se em objetos discursivos oficializados. Joaquim Barbosa tem sua parcela de responsabilidade nisso, junto com seus colegas do STF.
Cotas raciais não existem para promover justiça social, mas para convencer as pessoas a usarem rótulos de identidade racial. Anos atrás, um amigo dileto confessou-me que, para produzir artigos contrários às políticas de raça, tinha de superar uma profunda contrariedade íntima. Perdemos cada vez que escrevemos as palavras “branco” e “negro”, explicou-me com sabedoria, pois contribuímos involuntariamente na difusão da linguagem racial. Raças não existem — mas passam a existir na consciência dos indivíduos quando se cristalizam na linguagem cotidiana. Caminhamos bastante na estrada maldita da naturalização das raças, como atesta a coluna de Noblat.
Na sua defesa, Noblat talvez argumente que apenas jogou de acordo com as regras implícitas nas políticas de raça julgadas constitucionais por um STF pronto a ignorar as palavras da Lei sobre a igualdade entre os cidadãos. Seu advogado poderia dizer que o jornalista não inventou a moda de julgar as pessoas pela cor da pele — que isso, agora, é prática corrente das autoridades públicas e das universidades. Mas ele continuará errado: a resistência à racialização da sociedade brasileira exige, antes de tudo, que se rejeite a linguagem racial. Temos a obrigação de ser subversivos, de praticar a desobediência civil, de colocar os termos “raça”, “brancos” e “negros” entre as devidas aspas.
A “pedagogia da raça” entranhou-se nas políticas de Estado. Dez anos atrás, um parecer do Conselho Nacional de Educação, que instruiu o “Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, alertou os professores sobre “equívocos quanto a uma identidade humana universal”.
Segundo o MEC, os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos constituem, portanto, “equívocos”: humanidade é uma abstração; a realidade encontra-se nas “raças”. As três frases de Noblat, que abolem a individualidade de Joaquim Barbosa, situam-se no campo de força daquele parecer. A resposta antirracial a elas pode ser formulada em duas frases simples — mas, hoje, subversivas:
1) Joaquim Barbosa é igual a todos os demais seres humanos, pois existe, sim, “uma identidade humana universal”;
2) Joaquim Barbosa é um indivíduo singular, diferente de todos os demais seres humanos, que são diferentes entre si.
30 de março de 2014
Demétrio Magnoli é Sociólogo. Originalmente publicado em O Globo em 27 de Março de 2014.
Demétrio Magnoli é Sociólogo. Originalmente publicado em O Globo em 27 de Março de 2014.
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