"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

ENSAIO CRÍTICO: WILLIAM S. BURROUGHS

       
FOTO BURROUGHS ALLEN GINSBERG/ CORBIS

Por gatos mais livres

Celebrado em todo o mundo por ser um dos percursores da geração beat, William S. Burroughs, que completaria 100 anos neste mês, ainda não teve desvelada sua fixação pelos bichanos, aos quais entregou sua intimidade    

Uma vida tranquila na pequena e pacata cidade de Lawrence, em Kansas, interior dos Estados Unidos, que nem de longe lembra a acidentada biografia de um dos ícones da geração beat. Mas foi assim que o poeta brasileiro Rodrigo Garcia Lopes encontrou William S. Burroughs em 1991, já na casa dos 70 anos e em companhia de seus gatos, quando o entrevistou para sua dissertação de mestrado sobre um dos nomes mais influentes da contracultura americana. “Levei um choque, pois esperava alguém, digamos, irascível e fechado, e encontrei um velhinho extremamente simpático e de raciocínio rápido, alguém que podia ser meu avô”, conta.
Nascido em 5 de fevereiro de 1914, o autor de clássicos experimentais como Almoço nu e Junky – e que comemoraria seu centenário neste ano –, após um passado de andanças pelo mundo e experiências com substâncias químicas, mudou-se para o Meio-Oeste americano em 1981, onde morou até falecer, no dia 2 de agosto de 1997, em função de complicações de um ataque cardíaco que havia sofrido um dia antes. Nessa época, suas companhias mais frequentes eram os gatos, os quais ele gostava de observar para, inclusive, tirar insights a respeito do comportamento humano, que foram reunidos no livro O gato por dentro, de 1986.
Tradutor da obra, a qual define como um mimo para quem gosta de Burroughs e/ou de felinos, o editor Edmundo Barreiros acredita que, por morar sozinho, o escritor americano adquiriu uma fixação pelos bichanos. Alguns deles apenas passavam por ali, ficavam e muitas vezes nem recebiam nome, o que, segundo Barreiros, devia acontecer também com os amigos que frequentavam seu sítio.

“Talvez sem poder circular pelo mundo, ele transformou os bichos de estimação em personagens, que ganhavam personalidades, e muitas vezes até criou gatos oníricos e malucos, os quais parecia preferir muitas vezes às pessoas”, observa o editor, que também traduziu obras de Jack Kerouac, outro importante nome da geração beat.  Ele defende que o escritor americano admirava a independência dos gatos, muito parecida com a dele próprio, que sempre fez o que quis ao longo de sua vida. Também parecia representar algo muito valorizado para alguém que cresceu em um ambiente repressivo, em que as demonstrações de afeto eram consideradas constrangedoras.

;“O gato não oferece serviços. Ele se oferece. Claro que ele quer carinho e abrigo. O amor não é de graça. Como todas as criaturas puras, os gatos são pragmáticos”, observa em um dos textos. “Alguém disse que os gatos são o animal mais distante do modelo humano. Isso depende da linhagem de humanos a que você está se referindo e, é claro, a de gatos. Acho que, às vezes, os gatos são estranhamente humanos”, acrescenta em outro. Burroughs dizia que cada um de seus felinos lembrava amantes e amigos que conheceu no passado e, por esse motivo, segundo o escritor Rodrigo Garcia Lopes, via-os “como companheiros psíquicos, como familiares”. Prestes a lançar seu primeiro romance, O trovador, Lopes conta que Burroughs não gostava de cães por achar que eles tinham justamente os piores tipos de características humanas: “São ambiciosos, vingativos e acham que estão sempre certos!”.

 No entanto, em uma das passagens do livro O gato por dentro, a aversão aos caninos é relativizada: “Não sou uma pessoa que odeia cães. Odeio aquilo em que o homem transformou seu melhor amigo. O rosnado de uma pantera, sem dúvida, é mais perigoso que o rosnado de um cão, mas não é feio. A fúria de um gato é bela, incandescente como a pura chama felina, todo o seu pelo eriçado lançando fagulhas azuladas, os olhos ardentes e crepitantes. Mas o rosnado de um cão é feio, o rosnado de uma multidão de brancos racistas no linchamento de um paquistanês...”, escreveu Burroughs.
 O gato por dentro é um belo conjunto de crônicas autobiográficas. Mas, dentre os beats, vamos encontrar a mesma preferência em Kerouac. E Baudelaire já havia se manifestado a favor dos gatos, no poema O gato, de As flores do mal, e contra os cachorros, nos poemas em prosa O cão e o frasco e Os bons cães – pelas mesmas razões que Burroughs, pelos cães serem submissos e assimilarem características humanas e os gatos, independentes, livres”, comenta o escritor Claudio Willer, um estudioso do movimento Beat, que lançará, em março, o livro Os rebeldes: Geração beat e anarquismo místico.
Os escritos sobre gatos da brasileira Lygia Fagundes Telles são os que mais encantam Aline Ponce, autora do blog Gatos e Letras, em que estuda como os bichanos foram retratados na literatura.
 
“As características que mais me atraem nos felinos são a independência (ficam sozinhos em casa numa boa enquanto os donos saem), não são submissos (discutem se não concordam com alguma coisa) e têm uma divertida altivez (fingem não estar nem aí para o dono, quando este o desagrada). Os gatos também são extremamente companheiros. Eles adoram a companhia do dono e, o melhor de tudo, são silenciosos. São capazes de passar horas ao lado do dono só pelo prazer da companhia. Como muitos escritores passam horas escrevendo e a maioria gosta de silêncio, os gatos são a companhia perfeita”, explica.
No entanto, o professor americano Oliver Harris, autor de mais de dez livros a respeito de Burroughs, incluindo o relançamento da Cut-Up Trilogy, feito para comemorar seu centenário, frisa que a afinidade dele com os felinos mudou ao longo dos anos. “A relação dele com gatos é fascinante: ele gostava de torturá-los (como descrito em seu primeiro romance, Junky, escrito em 1950); em sua velhice, no entanto, escreveu sobre eles carinhosamente como ‘familiares’ – criaturas espirituais para as quais desempenhou o papel de ‘guardião’.
 
Ele viu muitos de seus gatos como a reencarnação de pessoas que tinha conhecido na vida. Também usou os gatos para controlar uma conversa ou uma entrevista. Eu o visitei muitas vezes no Kansas, entre 1980 e 1990. Quando ele não quis responder a uma pergunta, levantou um de seus gatos e começou a falar com ele. Foi a maneira delicada e comovente de mudar de assunto – e como um amante de gatos, entendi completamente”, relata Harris.


REPRESENTAÇÃO DO REAL
Homossexual assumido, Burroughs foi casado com a judia Ilse Klapper e com Joan Vollmer, que ele matou acidentalmente, em 1951, com uma arma de fogo. Seu primeiro ensaio, Magnetismo pessoal, foi publicado em 1929 no John Burroughs Review, mas só se tornou conhecido após a publicação de Almoço Nu (Naked Lunch), em 1959. “Em Naked Lunch, obra matricial devido à quebra de limites (e importante como marco na luta pela liberdade de expressão, pois sua liberação acabou com a censura a obras literárias nos Estados Unidos – se aquilo podia, então, não havia mais o que censurar), ao ataque à linguagem, à narrativa como mimese, às representações do real. Em Junky é o antropólogo que fala, observando a cena dos viciados com neutralidade enquanto, ao mesmo tempo, faz parte dela. Seu relativismo já está presente”, analisa Willer.
 
Tendo como um de seus lemas a frase “Lembre-se sempre: ‘Nada é verdadeiro. Tudo é permitido’” (creditada no livro Cartas do Yage, de 1963, a Hassan Sabbah, conhecido como O Velho da Montanha), Burroughs, segundo Oliver Harris, teve como um de seus maiores méritos o objetivo de, por escrito ou por outros meios de comunicação, como gravações, fotografias, colagens e filmes, buscar sempre a criação de algo novo, redefinindo a ideia e a prática da literatura como algo experimental, evitando tudo o que já havia sido feito antes, principalmente o romance tradicional. “Burroughs era um amigo próximo de Jack Kerouac e Allen Ginsberg (para quem escreveu cartas a respeito de sua experiência com ayahuasca na Amazônia, reunidas no mesmo livro), conhecia muitos outros associados à geração beat e, em seus primeiros dias – na década de 1940 –, desempenhou um papel muito importante na promoção de ideias da contracultura literária.”

 William Burroughs destacou-se mesmo por desenvolver uma nova técnica de escrita que ficou conhecida como cut up. “Por meio de uma apropriação da pintura, essa técnica consiste em recortes de textos orais e/ou escritos, uma espécie de colagem, montagem. Naked Lunch, por exemplo, foi escrito assim. Ele saía pelas ruas na década de 1950 e, se visse um ciclista tentando atravessar uma via e, de repente, quase atropelasse uma senhora, ele anotava tudo em um caderninho para compor o romance. Nesse período, os Estados Unidos viviam o auge da indústria do consumo e Burroughs criticou isso por meio dessa técnica. Seus companheiros beats o viam como um homem sábio e, por isso, o respeitavam”, avalia Flavia Benfatti, mestre em Letras pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com a dissertação Geração beat: O discurso da crítica à sua recepção no Brasil, e professora da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).  

Influência de escritores cyberpunks e de ficção científica, além de vários cineastas, como David Cronenberg e Gus Van     Sant, que adaptaram algumas de suas obras, Burroughs foi uma referência importantíssima para a música underground e de vanguarda.
Portanto, diante de uma vida tão intensa, não foi de todo inesperado o fato de, nos últimos anos, o escritor americano ter optado pela reclusão, na companhia dos amigos e, principalmente, dos gatos.
 
16 de fevereiro de 2014
Por Ana Rodrigues e Guilherme Bryan 
in Revista da Cultura

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