Entre as seis idosas de cadeira de rodas, estava a diva do teatro Tônia Carrero. Elegante como sempre, aos 91 anos
Quando vi a fila de seis idosas em cadeiras de rodas numa praça do Leblon, à luz do sol de inverno, com acompanhantes, passei direto – mas voltei para registrar a imagem terna com meu celular. Pareciam amigas. Unidas pelos anos e limites físicos, fofocavam coisas da vida, dos netos e bisnetos.
Não desconfiei que a da ponta, elegante, com óculos escuros de aro branco, colar, camisa branca, calça estampada e chapéu de aba frondosa sobre os cabelos louros curtos fosse uma de nossas maiores divas do teatro e cinema, talvez a mais bela: Tônia Carrero, que acaba de fazer 91 anos.
Não desconfiei que a da ponta, elegante, com óculos escuros de aro branco, colar, camisa branca, calça estampada e chapéu de aba frondosa sobre os cabelos louros curtos fosse uma de nossas maiores divas do teatro e cinema, talvez a mais bela: Tônia Carrero, que acaba de fazer 91 anos.
Ao me aproximar do grupo com a curiosidade de quem tem pai e mãe de 91 anos, ouvi uma cuidadora me dizer: aquela é a atriz Tônia Carrero. Senti zero de pena, porque Tônia não merece nem precisa disso. Até hoje é cercada de amigos, tem um filho, Cecil Thiré, quatro netos e cinco bisnetos. Dessa prole, seis são atores. No ano passado, celebrou os 90 com uma festa vespertina. Escolheu o bolo e as taças de champanhe. Não quis maquiagem. Pediu ao filho: “Quero receber todos de cara limpa”.
O que senti ao ver Tônia na minha frente, com o rosto abaixado, foi emoção. Era um encontro mudo com o “monstro de olhos azuis” – título de seu livro de memórias, lançado em 1986 e reeditado no ano passado. Tônia não dá mais entrevista. Vive reclusa como Greta Garbo, a atriz sueca que foi muito mais radical. Garbo sumiu aos 36 anos, para viver anonimamente em Nova York por meio século. Não é o caso de Tônia. Não há covardia. Apenas cansaço e pudor. Ela jamais receou envelhecer sob os holofotes, algo difícil para as extremamente belas. Hoje, acha que já disse tudo. Aos 80, afirmou, em entrevista a ÉPOCA: “Estou velha sim. A melhor coisa de ficar velha é que hoje estou acima do bem e do mal. Digo o que bem entendo, não tenho medo”.
Disse tudo o que outras atrizes escondem. Revelou amores extraconjugais e plásticas. “Fiz três no corpo: uma na barriga, outra na coxa e uma terceira nos seios. Todas com Pitanguy. Depois, fiz mais duas no rosto. E manutenções periódicas, com aplicações de Botox. Aconselho qualquer mulher que tenha dinheiro a fazer plástica. Sou a favor.”
“Ela fala pelos cotovelos!.. Mas que cotovelos”, disse certa vez o escritor e cronista Rubem Braga no Degrau, bar do Leblon, sobre a mulher por quem nunca se desapaixonou. Braga foi um dos casos tórridos dessa atriz assumidamente desinibida. “Tudo na minha vida aconteceu em decorrência de paixões e por isso não me arrependo de nada. Sempre casei com quem eu quis, mas nunca deu certo.”
Filha de um militar e uma dona de casa, Maria Antonietta Portocarrero nasceu no Rio de Janeiro. “Mariinha”– como o pai a chamava – apaixonou-se aos 14 anos por um rapaz de 19, Carlos Arthur Thiré. Quando foi a sua casa, Carlos levou uma patinete de presente, tão menina achava ser a namorada. Tônia se casou aos 17 anos. “Estava muito atraída por ele e queria fugir da minha família.” Teve mais dois maridos: o italiano e homem de teatro Adolfo Celi e o empresário César Thedim. Com o ator Paulo Autran, foi paixão fulminante. “O melhor amante de todos”, dizia a amigas.
Tônia optou pela reclusão, por não conseguir mais falar ou andar direito. Sua última aparição pública foi em abril de 2011, para ver o filho no palco. Sofre de hidrocefalia, acúmulo de água no cérebro. Aos 76 anos, caiu da escada em casa, bateu a cabeça. Dois anos depois, pôs um dreno embaixo do couro cabeludo. “É como ter um ladrão na minha caixa-d’água”, disse com humor. Um novo dreno há quatro anos não surtiu efeito.
Atuou no último filme, de Laís Bodanski, aos 87 anos. O nome do filme, Chega de saudade, é sugestivo. A saudade pode alegrar, em vez de amargurar. E Tônia tem recordações de gata de sete vidas. Em mais de 60 anos de carreira, atuou em 54 peças, 19 filmes, 15 novelas e nove programas especiais de TV. “O que me entristece mais é perder amigos, vê-los partir”, disse. Ela mora com o sobrinho, Leonardo Thierry, além da governanta e duas cuidadoras, no Leblon, a dois quarteirões do filho.
Como continua lúcida, Tônia deve ter sabido que Jack Nicholson, segundo “fontes de Hollywood”, decidiu se aposentar da carreira de ator por perda de memória. Não consegue mais lembrar suas falas. Nicholson não atua desde 2010. Não quer tributo algum. Parece estar feliz por se juntar ao clube dos aposentados, como Sean Connery.
O tempo é assim, impiedoso e implacável. Com anônimos e famosos. Tira-nos o vigor, o viço físico e intelectual. É isso ou a morte. Tônia chegou a dizer: “Se um dia eu perder o entusiasmo pela minha profissão, prefiro desaparecer”.
Desapareceu do palco, mas continua presente. Na praça e em nossas lembranças de uma atriz excepcional.
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